sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Onde temos razão não podem crescer flores

Tatiana Salem Levy*
 
 Ao contrário do que pensam os fanáticos, não existe 
um mal-entendido essencial entre palestinos e 
 israelenses nem entre árabes e judeus. 
Trata-se de uma disputa pela terra. 
Uma disputa dolorosa, legítima para ambos os lados, 
que tem num acordo a única saída possível. 
Mas acontece que o fanatismo de um lado e de outro 
termina por ofuscar a palavra e o papel, 
fazendo que as armas se tornem o grande motor do conflito, perpetuando décadas de confronto.

Enquanto escrevo esta coluna, os principais jornais do mundo anunciam o início de uma trégua de 72 horas entre Israel e Palestina. Quando ela for publicada, o cenário já será outro. Sem sorte, os ataques terão sido retomados, de ambos os lados. Com sorte, a trégua terá se prolongado, o cessar-fogo, se concretizado. Mas, infelizmente, não me parece provável que em tão pouco tempo a paz já esteja reinando na região, nem que o Estado palestino tenha sido criado, nem que suas terras ocupadas tenham sido devolvidas, nem que Israel tenha sido reconhecido pelo Hamas. Portanto, o pequeno livro "Contra o Fanatismo", de Amos Oz, continuará sendo leitura obrigatória para quem quiser entender um pouco mais o conflito que se arrasta há mais de seis décadas no Oriente Médio. Mas não só: trata-se de um livro para todos os que se interessam pela natureza do fanatismo, em pequena ou grande escala.

As três conferências reunidas no livro foram proferidas no Fórum de Literatura da Universidade de Tubingen, na Alemanha, em 2002, poucos meses após o atentado às Torres Gêmeas, mas continuam atuais e poderiam ter sido realizadas hoje. Amos Oz, escritor israelense de algumas obras-primas como "A Caixa Preta" e "O Mesmo Mar" e ativista político, expõe algumas de suas reflexões sobre a natureza do fanatismo e, em seguida, aprofunda o conflito entre Israel e Palestina. Vou fazer o contrário: começar pelo conflito, para em seguida chegar ao fanatismo.

Mais precisamente vou tomar como ponto de partida algumas das reações que tenho visto proliferar na internet - em comentários nos sites de jornais, blogues ou Facebook - e me parecem extremamente nocivas. Falo mais especificamente daquelas que revelam um ódio assustador aos israelenses, e aos judeus em geral, e daquelas que, do outro lado, revelam um ódio igualmente assustador aos palestinos e aos árabes em geral. Ódios esses tomados de clichês e reducionismos que não contribuem em nada para o que deveria ser o único objetivo da região: a paz. Todos os que bramem essa raiva deveriam ser obrigados a ler o livro de Oz, que enfrenta com desenvoltura algumas das certezas inquietantes que se espalham por aí.

Em primeiro lugar, o conflito israelense-palestino não é tão linear quanto pode parecer. Embora a principal preocupação dos ocidentais bem-intencionados seja definir quem é o bom e quem é o mau da fita, a verdade é que não se trata de um filme de faroeste. "Não é uma luta entre o Bem e o Mal, mas antes uma tragédia no sentido mais antigo e rigoroso do termo: um choque entre quem tem razão e quem tem razão, um choque entre uma reivindicação muito convincente, muito profunda, muito poderosa, e outra reivindicação muito diferente, mas não menos convincente, não menos poderosa, não menos humana", define Oz, com precisão.

Os palestinos estão na Palestina porque essa é a única pátria do povo palestino, assim como os judeus israelenses estão em Israel porque como povo, como nação, é o único país que podem chamar de seu. Os palestinos foram expulsos de suas terras, perderam territórios ocupados por Israel, assim como foram rejeitados pelos libaneses, os sírios, os iraquianos e os egípcios. Sobre os judeus, Amos Oz nos conta que, quando criança, seu pai via as ruas da Polônia cobertas de inscrições tais como "judeus, vão para a Palestina!" Cinquenta anos depois, quando ele regressou à Europa, os muros estavam cobertos de inscrições: "Judeus, fora da Palestina!"

A questão é que, ao contrário do que pensam os fanáticos, nem os palestinos nem os judeus têm que ir embora. Ao contrário do que pensam os fanáticos, não existe um mal-entendido essencial entre palestinos e israelenses nem entre árabes e judeus. Trata-se de uma disputa pela terra. Uma disputa dolorosa, legítima para ambos os lados, que tem num acordo a única saída possível. Mas acontece que o fanatismo de um lado e de outro termina por ofuscar a palavra e o papel, fazendo que as armas se tornem o grande motor do conflito, perpetuando décadas de confronto.

Segundo Oz, o fanatismo nasce com a adoção de uma atitude de superioridade moral que impede a obtenção de consensos. Sua essência reside no desejo de obrigar os outros a mudar, de "melhorar o vizinho, de corrigir a esposa, de fazer o filho engenheiro ou de endireitar o irmão, em vez de deixá-los ser". Nesse sentido, o fanático é um ser generoso, altruísta: está mais interessado nos outros do que em si próprio, quer nos salvar, nos redimir, nos libertar dos nossos horríveis valores. Está na sua natureza ser muito sentimental e, ao mesmo tempo, ele carece de imaginação. Este, para Amos Oz, pode ser um dos remédios possíveis contra o fanatismo: injetar imaginação nas pessoas.

Sammy Michael, outro escritor israelense, conta uma experiência que ocorreu com ele num táxi, quando o motorista afirmou que era importante, para os judeus, matar todos os árabes. Em vez de xingá-lo, Sammy Michael lhe perguntou: e quem você acha que deveria matá-los? Quem deveria fazer o trabalho? A polícia? O Exército? O Corpo de Bombeiros? O taxista coçou a cabeça e respondeu: "Cada um de nós devia matar alguns". Michael continuou o jogo: então cada um bate na porta de uma casa e pergunta se o outro é árabe, e se for dispara? E aí, vamos supor que, quando você vá embora, você ouve o choro de um bebê. Você voltaria para matá-lo? Sim ou não? Ao que o taxista retrucou: "Sabe, o senhor é um homem muito cruel".

A estratégia de Michael é justamente injetar imaginação no taxista. Assim, ele se sente incomodado e pode reduzir o fanático que há dentro de si. O mesmo tipo de pergunta deveria ser colocado ao ex-membro da inteligência militar de Israel que recentemente defendeu o estupro das mulheres palestinas. Ou à deputada israelense que defende a morte de todas as mães palestinas. Ou aos membros do Hamas que defendem a aniquilação do povo israelense.

Infelizmente, são esses fanáticos que conduzem a guerra, que sobrepõem as armas às palavras. Mas aos que não concordam com essa atitude de destruição de si mesmo e do outro - sejam eles palestinos, israelenses, europeus, latino-americanos - resta pensar, em vez de participar de um movimento de inflação do ódio. Por uma defesa parcial contra o fanatismo, Amos Oz propõe ao menos duas soluções: senso de humor e capacidade de imaginar o outro. Ele afirma nunca ter conhecido um fanático com senso de humor nem viu uma pessoa com senso de humor se converter num fanático, a não ser que tenha perdido o senso de humor. Podem ser sarcásticos, mas não têm humor, porque humor "implica a capacidade de rir de si próprio. Humor é relativismo, habilidade de nos vermos como os outros nos veem".

O outro é sempre a chave para se anular o fanatismo. Imaginar o que o outro sente, o que outro sentiria, imaginá-lo quando lutamos, quando nos queixamos e mesmo quanto acreditamos ter 100% de razão. Nesse sentido, a literatura, embora não seja a resposta, pode trazer um antídoto contra o fanatismo, visto que estimula a imaginação dos leitores. Em Shakespeare, por exemplo, toda forma de fanatismo termina em tragédia ou comédia. Gogol faz os leitores tomarem consciência do pouco que sabemos, mesmo quando estamos convencidos de ter razão. Kafka revela como há trevas mesmo quando acreditamos não ter feito nada de mal. Yehuda Amijai afirma que "onde temos razão não podem crescer flores". Oz diz que "gostaria de poder receitar simplesmente: leiam literatura e ficarão curados do fanatismo. Infelizmente, não é assim tão simples".

A literatura pode não salvar, não pôr fim ao conflito entre esses dois povos, mas o acordo de paz só será possível se israelenses e palestinos conseguirem se colocar no lugar do outro. A autoridade palestina precisa proferir que Israel é a pátria dos judeus israelenses, por mais doloroso que isso seja. Tal como os judeus israelenses têm que dizer em alto e bom som que a Palestina é a pátria do povo palestino, por mais inconveniente que isso lhes pareça. Vai doer para ambos, como num divórcio. Nenhum dos lados vai estar propriamente feliz. Todos terão que abrir mão de alguma coisa - Israel dos territórios ocupados, a Palestina de cidades que não voltarão a ser suas.

Em todo caso, a solução não está nas armas. Nem na opressão, na exploração, no derramamento de sangue, no terror, na violência. Por mais insatisfatório que seja, só um acordo trará a paz. Um acordo em que ambos os povos consigam se colocar na pele do outro. Imagino que possa haver leitores se dizendo que essa é uma posição pró-Israel demais; outros, que é muito pró-Palestina. Mas e se pensarmos nela como pró-Palestina e pró-Israel? E se todos aqueles que se manifestam sobre o Oriente Médio fossem a favor dos dois povos - será que não caminharíamos mais depressa em direção à paz?
-----------------------------
* Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente
Fonte: Valor Econômico online, 15/08/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário