sábado, 26 de julho de 2014

Jornalista e escritor francês conta em livro sua intensa relação com Michel Foucault


 

Mathieu Lindon frequentou apartamento do filósofo, onde descobriu a liberdade e uma amizade íntima e amorosa

PARIS — A vida do jovem Mathieu Lindon mudou aos 23 anos, em 1978. Naquele ano, conheceu e se tornou amigo do pensador Michel Foucault (1926-1984), celebridade francesa de reputação mundial por meio de obras como a “História da sexualidade” e “As palavras e as coisas”. No apartamento da Rua de Vaugirard, endereço parisiense de Foucault, Lindon descobriu a liberdade de uma amizade íntima, fraterna e amorosa, distante dos modelos aos que estava habituado. Seu pai, Jérôme Lindon (1925-2001), era igualmente um personagem do cenário intelectual francês — como diretor da prestigiada Éditions de Minuit, havia editado autores como Samuel Beckett e Marguerite Duras.


O pai e o amigo célebre são o centro narrativo de “O que amar quer dizer”, em que Lindon conta como Foucault lhe “salvou” a vida com “inteligência e bondade”. À margem, mas não menos importantes, emergem meia dúzia de personagens que compõem o grupo que frequentava o apartamento da Rua de Vaugirard. Lindon faz do leitor um voyeur privilegiado ao acompanhar curiosos jovens em busca de novas sensações, em aventuras e desventuras em torno do amor, sexo, homossexualidade, literatura, amizade, família, sonhos, afeto e fraternidade. O cotidiano na Rua de Vaugirard incluía escutar Mahler, jogar mikado, assistir a filmes dos Irmãos Marx e mergulhar em sessões coletivas de ácido, LSD, heroína ou ópio.


Lindon decidiu compartilhar este crucial período de sua vida quase dez anos após a morte de seu pai e vinte e cinco anos depois do desaparecimento de Foucault, morto em consequência da Aids, como um tipo de homenagem e de reconhecimento, em um livro premiado e elogiado pela crítica. Na Flip destre ano, o escritor, e também cronista do jornal “Libération”, participa de uma mesa com Silviano Santiago, autor de “Mil rosas roubadas”, no qual celebra sua amizade com o crítico e produtor musical Ezequiel Neves (1935-2010).


A única forma honrada de se “livrar” desse importante período de sua vida, em que conheceu Michel Foucault, e de abordar sua relação com seu pai era por meio de um livro?

E pelo reconhecimento que tinha em relação a Michel Foucault. A relação que tinha com ele é simbolizada pelo apartamento da Rua de Vaugirard, que é o centro do livro. Quando contava o que havia vivido lá para amigos, todo mundo achava formidável. Mas desde que começava a escrever, achava que não tinha nenhum interesse, e mesmo me incomodava. E me dei conta de que era preciso incluir esse apartamento no imenso território da minha educação. O personagem do meu pai foi introduzido no livro, o que não era minha ideia no início, e a partir daí as coisas se organizaram e pude trabalhar de outra forma.


A descoberta do texto em que a escritora Willa Cather (1873-1914) narra seu encontro com a sobrinha de Gustave Flaubert, em 1930, em um hotel no Sudeste da França destravou a escrita do livro. Por quê?

Não sabia muito bem como escrever. Às vezes queria fazer como uma autobiografia que não falasse de mim. Gostaria de aparecer como o narrador de romances ou de contos de Henry James, que ao mesmo tempo é um personagem secundário e principal na trama. Num momento não conseguia mais avançar no livro, abandonei. E aí me deparei com um livro em inglês que havia comprado há muito tempo, de textos de Willa Cather, escritora americana que adoro. Ela encontrou a sobrinha de Gustave Flaubert, que tinha 80 anos. Ela adorava Flaubert, não esperava encontrar essa mulher, ficou transtornada. E eu também fui tocado, achei magnífico, achei que tinha a ver comigo, guardadas todas as proporções. Meu pai era um editor muito importante na França, de escritores como Samuel Beckett, Marguerite Duras, Alain-Robe Grillet, Claude Simon... E me dei conta de que o livro que queria fazer era uma história de encontros. Me identifiquei com a forma do encontro delas, algo que me definia. Esse livro teve uma importância considerável para que eu pudesse escrever o meu.


Você tinha receio de que a história fosse desinteressante para o leitor...

Por muito tempo, me desencorajei, por achar que me encontrava num situação especial, de ter crescido em meio a todas essas pessoas, e depois conheci Michel Foucault, era algo demasiado singular, não interessaria a ninguém. Foi preciso que uma amiga me dissesse: “Você não está falando de Michel Foucault e Jérôme Lindon, você vai contar sobre um amigo, seu pai e suas relações, e isso é universal”.


Em seu livro, se vê o Foucault amigo, o homem. Como você percebe o intelectual e filósofo?

Tento não me meter no que diz respeito ao seu trabalho propriamente dito. Tenho uma posição privilegiada para falar dele. Já havia lido toda sua obra antes de encontrá-lo, era um dos intelectuais que mais admirava. Mas não tenho competência particular para falar sobre isso. Porém observo que o que se passa para os 30 anos de sua morte não tem nada a ver com o que ocorreu nos 20 anos. Ele estava muito menos na moda há dez anos. Penso que cada vez mais há um reconhecimento da importância de seu trabalho.


Michel Foucault mudou sua vida. Houve outros encontros na sua vida que tiveram semelhante impacto?

Tento falar de todos no livro. São as pessoas que mais contaram na minha vida. Michel tinha algo de especial. Quando o encontrei, em 1978, já era Michel Foucault, célebre mundialmente, tinha 52 anos, e eu 23. Ele representava algo nobre culturalmente, e para mim, sobretudo, um equilíbrio, porque meu pai trazia com ele a imagem de Beckett, de Deleuze, Duras. Era preciso alguém forte para contrabalançar isso. Ele foi um fator de equilíbrio considerável. E construiu meus afetos no futuro. Ele que me proporcionou esses encontros.


Como reagiu à sua morte?

Quando ele morreu, fui para o buraco. Veio a ideia de que isso não aconteceria nunca mais outra vez, de que deveria ser menos ambicioso em relação à minha vida. Ele simbolizou minha juventude. E quando ele morre... Há essa frase no livro: “Pensava que era a vida, mas era a juventude”. Hoje posso dizer que minha juventude terminou naquele dia. Me lembro muito bem, dois dias depois era a final do campeonato europeu de futebol de 1984, entre a França e a Espanha. Era a primeira vez que a França ganhava, meu amigo gritou “gol!”, mas eu me dizia que havia coisas mais importantes. Me lembro muito bem do dia de sua morte, quando Daniel (Defert, companheiro de Foucault) me telefonou, fui até o hospital. Era uma outra época. Hoje a Aids não é mais o que era na época de sua morte.


Vários de seus amigos morreram de Aids. Você escapou da doença e também saiu incólume de um período de dependência de drogas ditas duras, como a heroína...

Milagrosamente. Sou um sobrevivente. Por vezes com uma má consciência. Tenho um lado pragmático em relação às coisas, eu me cuidava em relação à Aids. Mas após a morte de Michel passei a ter um cuidado especial. Nunca mais fiz amor sem preservativo. Isso me salvou. Ele foi uma das primeiras pessoas a morrer de Aids na França. Há um livro de Hervé Guibert sobre ele intitulado “O amigo que não me salvou a vida”, e as pessoas que não o leram pensam que se trata de Michel Foucault, o que não é o caso. E no primeiro artigo que saiu aqui sobre meu livro colocaram como título “Um amigo que me salvou a vida”. Isso me comoveu.
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Reportagem  por

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