terça-feira, 24 de junho de 2014

Rakan Ben Zolof 25

fotografia


O meu ver­da­deiro nome é Rakan Ben Zolof 25 e eu nasci nou­tro pla­neta. Algo que sem­pre des­con­fiei embora os meus pais adop­ti­vos, cheios de amor, sem­pre o tenham negado. Quando, em pequeno, lhes afir­mava cheio de cer­teza que não era daqui, respondiam-me tratar-se de deva­neios de uma cri­ança ima­gi­na­tiva que acre­di­tava na exis­tên­cia de naves espa­ci­ais e de outras civi­li­za­ções nou­tras galá­xias, mas ape­nas isso, ima­gi­na­ção; um dia pas­sa­ria. Diziam-me, ao con­trá­rio, que era daqui, como toda a gente, e que pre­ci­sava de pôr os pés no chão e concentrar-me em coi­sas con­cre­tas: como os tra­ba­lhos de casa, deus e o diabo.

Foram que­ri­dos, os meus pais adop­ti­vos, e quase me con­ven­ce­ram. Mas cedo se tor­nou apa­rente que os habi­tan­tes daqui eram seres muito dife­ren­tes de mim: super-homens e mulhe­res dota­dos de talen­tos e pode­res que me esca­pa­vam por com­pleto e que eu só podia admi­rar.

A pri­meira vez que per­cebi que não era daqui foi quando fiz dezas­sete erros numa cópia. Tinha dez anos. Todos os meni­nos me olha­ram com estra­nheza e a pro­fes­sora partiu-me uma régua de plás­tico na palma da mão. Quando che­guei a casa e disse aos meus pais adop­ti­vos que não era deste pla­neta, eles, con­des­cen­den­te­mente, passaram-me a mão pelo cabelo. Mas à noite, quando pen­sa­vam que eu estava a dor­mir, ouvi-os falar com pre­o­cu­pa­ção do assunto. Era ver­dade: eu tinha pro­ble­mas, diziam, não me adap­tava. Mais tarde, já cres­cido, os meus pais adop­ti­vos mos­tra­ram os docu­men­tos que vinham junto comigo no saco de lixo galác­tico que uma nave Vogon lhes tinha dei­xado à porta do quin­tal. Era ver­dade: não era daqui.

No meu pla­neta natal, que hoje sei estar numa galá­xia em anel situ­ada a 600 milhões de anos luz, a que vocês cha­mam de Objecto de Hoag, os habi­tan­tes falam pouco. Emi­tem alguns sons arti­cu­la­dos mas não têm o dom, ou melhor, o super­po­der da pala­vra. Não são mes­tres de voca­bu­lá­rio nem pro­du­zem tanto texto como os mag­ní­fi­cos espé­ci­me­nes deste pla­neta. No meu pla­neta natal não há muito a dizer, a memó­ria é coisa curta, a con­versa directa ao assunto e, tal­vez por isso, os habi­tan­tes andam quase sem­pre sor­ri­den­tes e pouco zan­ga­dos. Nada, ou quase nada, lhes lem­bra tris­teza por­que não se lem­bram de quase nada; e por­que não dei­xam que as pou­cas pala­vras que usam (por sabe­rem pou­cas) lhes enre­dem os pen­sa­men­tos em para­do­xos e con­tra­di­ções; a maior parte deles, dos pen­sa­men­tos, não são gran­des e sole­nes, como os dos super-homens e mulhe­res daqui, são antes peque­ni­nos pen­sa­men­tos e por isso pen­sa­men­tos muito livres e feli­zes.

Mas a grande dife­rença entre este pla­neta e o meu pla­neta natal é a memó­ria. Os habi­tan­tes do meu pla­neta natal têm pouca memó­ria. Quiçá por serem menos pro­li­xos, por terem menos léxico, no meu pla­neta natal cita-se pouco. A memó­ria, coisa a que nada escapa, é outro dos super­po­de­res deste pla­neta. No meu há menos memó­ria, inventa-se mais. Inventam-se vidas, his­tó­rias, pas­sa­dos. É um pla­neta onde não há His­tó­ria, só há fic­ção. Todos os dias a His­tó­ria é dife­rente, rein­ven­tada.

Quando eu era menino, as pro­fes­so­ras diziam que eu era inven­tivo. Ser inven­tivo era uma coisa que dava más notas. Os super­me­ni­nos e meni­nas não eram inven­ti­vos. Ale­gre­mente copi­a­vam e imi­ta­vam tudo o que era pre­sente e pas­sado; e pare­ciam feli­zes.

Mas estou agra­de­cido, mui­tís­simo agra­de­cido, aos meus pais adop­ti­vos por me terem encon­trado, reco­lhido e ensi­nado a estar aqui. Mesmo que de um modo desa­jei­tado, con­se­gui viver entre super-homens e mulhe­res e, às vezes, pas­sar por um deles. Claro que os ócu­los, que escon­dem a minha iden­ti­dade secreta, aju­da­ram muito.

Rakan Ben Zolof 25
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Texto: Publicado em por Pedro Bidarra
Fonte: http://www.escreveretriste.com/2014/06/rakan-ben-zolof-25/

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