sábado, 17 de maio de 2014

O garfo de Brooklyn

 Pedro Bidarra*
(Para as minhas pequenas sobrinhas)

Num dia de sol e céu azul vê-se Manhattan pela janela da cozinha. Ao longe, por cima dos edifícios de tijolo escuro com fachadas marcadas pelas escadas de ferro em z, adivinham-se as buzinas, as máquinas e a agitação de quem não pára. O contraste com vida em Williamsburg não podia ser maior. Embora animada e jovial, a vida nesta zona de Brooklyn é pacata comparada com o ruidoso bulício de Manhattan. Aqui a cidade tem dimensão humana, de bairro, quase de aldeia. Ouvem-se vozes e não apenas máquinas e, mesmo sendo Nova Iorque, as pessoas sorriem e cumprimentam-se. Mas tudo isto é irrelevante para a nossa história porque o nosso herói vive numa gaveta. Numa gaveta de cozinha. Esta, é história dos sonhos de um garfo de Brooklyn. Um garfo que vivia na primeira gaveta do móvel da cozinha do apartamento 5G de um edifício de tijolo na esquina da 5th North Street com a Bedford.

A vida de um garfo em Brooklyn não é diferente da vida de um garfo em qualquer outra parte do mundo. Como qualquer outro garfo, o nosso garfo não vivia sozinho. Vivia num compartimento encaixado noutros garfos. Ao seu lado viviam, também amontoadas, facas e colheres. Uma vizinhança metálica, inerte e silenciosa: nem uma palavra se dizia naquela gaveta dia após dia. E ainda assim não havia privacidade. Os compartimentos eram abertos e a vizinhança não era grande coisa; principalmente as colheres, vizinhos snobs e insuportáveis. Com as facas ainda havia uma relação funcional, mas com as colheres nem isso. Garfos e colheres não se dão nem quando são chamados à mesa. Cada um fica do seu lado do prato.

O nosso garfo não gostava de viver onde vivia nem gostava do que fazia.

Talvez nunca tenham pensado como é triste a vida de um garfo, mas, se pararem para pensar, verão que é uma vida triste cuja tristeza não acaba nunca se o garfo for, como este, de aço inoxidável.
A vida de um garfo é passada no escuro à espera. Embora um garfo tenha uma visão muito aguçada, têm quatro olhinhos mesmo na ponta dos dentes para ver o que espeta – mais três que uma colher que tem apenas um, côncavo de um lado e convexo de outro –, e apesar de alguns raios de luz entrarem pelas gavetas quando elas são abertas três vezes por dia, lá dentro não há nada para ver nem para fazer. A maior parte do tempo um garfo está deitado, encaixado entre outros garfos, à espera de ser chamado. Podem passar-se semanas, meses sem que um garfo seja chamado. E quando é chamado, é chamado para quê? É chamado para espetar os seus dentes afiados e enterrar os olhinhos em coisas mortas, cozinhadas e muitas vezes mal passadas. Depois, às cegas, é levado por uma mão a depositá-las em línguas esponjosas que se contorcem em bocas escuras e molhadas por cuspo quente. É esta, em resumo, a triste vida de um garfo.

O único momento de que este garfo gostava, era quando o pousavam à mesa de olhinhos para cima, antes da refeição,. Ai sim encontrava paz na contemplação. Olhava os livros da estante, o candeeiro que baloiça, a televisão e o casal que habita o lugar: o Samir e a Maritka. Era às suas bocas que o garfo levava a comida.
Garfo

Mas um dia a vida deste garfo mudou.

Um dia Maritka – que das duas bocas era a boca mais bonita –, enquanto punha a mesa e pensava no jantar que nesse dia teria convidados, foi à casa de banho levando, inadvertidamente, o garfo na mão. Foi uma revelação.

Talvez vocês achem que uma ida à casa de banho é uma viagem trivial, mas imaginem-se garfos que passam a vida em gavetas sem nada verem do mundo; ainda por cima com quatro olhinhos! Há garfos que nascem na fábrica, são enfiados em caixas e só veem a luz do dia quando são transferidos para a gaveta. Há relatos de garfos que tiveram o azar nunca ter saído da gaveta, de nunca terem tido a sorte de ser usados. Imagine-se, pois, o que foi para este garfo a ida à casa de banho.

Quando entrou na casa de banho, o garfo viu pela primeira vez um mundo de luzes, de cores bonitas e de espelhos. Um mundo muito mais sexy que a sala de jantar que era o que de melhor tinha visto.

Ao entrar na casa de banho, e depois de ter pousado o garfo no móvel com os quatro olhinhos virados para o espelho, Maritka pegou num pente e começou a pentear os seus longos cabelos negros. Era uma tarefa complicada porque os cabelos de Maritka, como é normal nas gentes do subcontinente indiano, eram crespos, fortes e muito embaraçados. Eram lindos quando ela acabava de os desembaraçar e pentear; ficavam volumosos, negros e selvagens, a contrastar com a sua cara doce, bem desenhada e feminina. Mas a tarefa não era fácil e, como era dia de jantar com convidados, Maritka estava mais preocupada do que o normal em aparecer no seu melhor. Por isso penteou com paciência e determinação os seus longos e selvagens cabelos negros.

A tudo isto o garfo assistiu encantado durante uma boa meia-hora ou talvez mais. Encantado com o modo como o pente corria ao longo do cabelo e o desembaraçava criando volume.

Ora ai está uma bonita ocupação, pensou o garfo que, logo ali, quis também ele ser pente. Afinal tinha dentes e olhos como um pente. E tinha, pensava ele, a vantagem de ser mais robusto. Era de metal. Não se partiria com se partiam, às vezes, os dentes do pente no difícil cabelo da Maritka.

Depois de desembaraçar o cabelo, Maritka, num gesto automático e ausente, preocupada que estava com o jantar, arrumou o garfo numa prateleira da casa de banho cheia de tralha – uma daquelas onde se acumulam as coisas que não têm lugar, para um dia mais tarde arrumar – e saiu para a sala.

Passaram muitos anos desde aquele dia e daquele jantar e o garfo, que ficou esquecido na prateleira a olhar para o espelho à sua frente e a ver Maritka e o pente na luta diária contra os embaraços do cabelo, nunca mais foi o mesmo.

Claro que esta história acaba mal como acabam todas as histórias de garfos que querem ser pentes.

Vocês perceberão, e bem, que nenhuma mulher no seu perfeito juízo vai um dia olhar para um garfo e decidir usá-lo como pente. Talvez se fosse doida varrida... Mas não era o caso de Maritka. Às vezes parecia doida mas isso era porque o cabelo tinha dias de vontade própria; nesses dias parecia doida. Mas não era.

Um garfo pode ter dentes e olhos nos dentes. E pode até sonhar em ser pente. Mas há uma coisa que não tem: a capacidade de se mover sozinho. Ora para realizar o seu sonho, o garfo teria que ter alguém que decidisse a pegá-lo e a passá-lo pelo cabelo. Uma improbabilidade. Mais provável seria que Maritka ou Samir um dia se dessem conta de um garfo mal arrumado na casa de banho e resolvessem levá-lo de volta para a gaveta. Mas a verdade é que o seu sonho se realizou anos mais tarde, embora tragicamente.

Já dissemos que um adulto, no seu perfeito juízo, nunca pensaria transformar um garfo num pente. É verdade. Mas uma criança...

Alguns anos mais tarde Kaliani, a filha de Samir e Maritka entretanto nascida, e já com tamanho e força nas pernas para se empoleirar num banco e meter o nariz na prateleira de cima do armário da casa de banho, descobriu o garfo tresmalhado. Sendo muito nova, e vendo um garfo na casa de banho, Kaliani deduziu, com a lógica que decorria do contexto, que aquele objecto que parecia um garfo era, na verdade, um pente; e logo ali começou a pentear-se.

O que aconteceu é o que se imagina. O pente não era um pente, era um garfo. E um garfo é um garfo. Logo à segunda passagem pelo cabelo, o garfo, coitado, acabou espetado na cabeça do anjinho de cabelo crespo. Quatro dentes com olhinhos, espetados no cocuruto da criançinha que começou num pranto profuso e foi levada de ambulância ao hospital de crianças na 2ª Avenida em Manhattan onde o garfo foi removido e deitado, com desdém, como se de um animal culpado e raivoso se tratasse, para o balde do lixo reciclável.

Aí, no fundo do balde, em preces e orações compenetradas, o garfo pediu com fervor que o reciclassem como pente. Coisa que provavelmente não aconteceu pois não há memória de alguma vez terem sido atendidas preces de garfo.

E é esta a história do garfo que sonhava ser pente.
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* As pessoas vêm sempre de algum sítio. Eu vim dos Olivais-Sul, uma experiência arquitecto-sociológica que visava misturar todas as classes sociais para a elevação das mais baixas e que acabou por nos nivelar a todos pelo mais divertido. Venho também da Faculdade de Psicologia da clássica, Universidade Clássica de Lisboa onde li e estudei Psicologia Social e todas as suas mui práticas teorias. Venho do Instituto Gregoriano de Lisboa onde estudei os segredos da mais matemática, e por isso a mais emocional e intangível de todas as artes, a música. E venho sobretudo de casa: de casa das duas pessoas mais decentes que até hoje encontrei; e de casa dos amigos que me ajudaram a ser quem sou. Estes foram os sítios de onde parti. Como diz o poeta (eu): “Para onde vou não sei/ Mas vim aqui parar/ A este triste lugar.” 
Fonte:http://www.escreveretriste.com/2014/05/o-garfo-de-brooklyn/

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