sábado, 17 de maio de 2014

Machado mais simples

 Luís Augusto Fischer*
 

Para jovens leitores ou adultos com pouca escolaridade, há uma grande diferença entre o desafio saudável de leitura e a barreira intransponível

Ganhou manchete nos últimos dias um tema de aparência trivial, que encerra no entanto um vasto problema de educação no país: noticiou-se que a escritora paulista Patrícia Secco estaria por lançar edição adaptada de textos clássicos da literatura brasileira. Agora estão no forno dois volumes, O Alienista, de Machado de Assis, e A Pata da Gazela, de José de Alencar. Seriam 300 mil exemplares da cada um, distribuídos gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor, com patrocínio via Lei Rouanet.

Para discutir o caso, este comentário se obriga a um esclarecimento preliminar: o acima-assinado coordena uma coleção de clássicos, brasileiros e estrangeiros, adaptados, pela editora L&PM. O foco ali é o que chamamos de “neoleitor”, categoria nova e um tanto imprecisa, mas que definimos como sendo o jovem e o adulto de escassa escolaridade, ou recém-alfabetizado, ou em retorno ao mundo escolar e da leitura, ou ainda o jovem e adulto que aprende o português como segunda língua, gente para quem não se pode oferecer textos simples mas escritos para crianças, nem textos complexos concebidos para adultos falantes nativos de escolaridade regular. A forma da adaptação, neste caso, obedece a um conjunto de critérios sociolinguísticos explicitados com clareza, visando tanto ao neoleitor quanto ao professor que tome a edição para trabalho.

Visto isso, é claro que sou favorável às adaptações, em regra. Sei que nunca se deve oferecer ao aluno, em qualquer nível, apenas aquilo que ele já conhece – e nisso me oponho a toda uma perspectiva que quer reduzir o repertório das aulas ao mundo já vivido pelo aluno, que deve ser apenas e tão-somente o ponto de partida da conversa. Sei também que se deve ajudar o aluno a inventar seu próprio caminho de aprendizado, por exemplo ensinando a usar o dicionário. Mas há uma diferença entre desafio saudável e barreira intransponível. Aqui entra em cena a adaptação.

Assim, meu ok total para a passagem de um conto para a narrativa em quadrinhos, de um romance para um longa-metragem, o aproveitamento de um poema para uma melodia. Mas também outras formas de adaptação: escritura em forma de conto de um texto originalmente concebido para teatro – tal é um caso clássico, os Contos de Shakespeare, livro publicado por Charles e Mary Lamb em 1807, contendo adaptações de clássicos como Romeu e Julieta ou Hamlet. Ou outro caso bem conhecido para os iniciados: edição em prosa dos clássicos homéricos, Ilíada e Odisseia, escritos ambos em versos.

Em sentido mais remoto mas ainda pertinente ao tema, toda tradução é uma adaptação. Por mais próximas que sejam duas línguas, sempre ocorre algum tipo de concessão, de negociação, de mudança entre o original e o traduzido, alterações que são tanto maiores e mais profundas quanto mais inventiva seja a linguagem do original: poemas experimentais traduzidos perdem muito mais na tradução do que romances convencionais.

Há outro exemplo de grande interesse para o caso. Todo estudante de inglês que tenha passado minimamente pela experiência de leitura literária na nova língua conhece o caso: há décadas existem no mercado do inglês edições adaptadas de obras clássicas. Algumas chegam a ter mais de uma adaptação, conforme o volume de vocabulário empregado no texto de chegada: um mesmo clássico pode ser vertido para mil , 1, 5 mil ou 2 mil palavras.

Este caso dá o que pensar e foi, aliás, a inspiração direta da coleção da L&PM. Em inglês se faz isso para alcançar o leitor não nativo aprendiz dessa língua, a mais importante do mundo ocidental; ao redor do planeta há gente aprendendo o idioma de Shakespeare a todo momento, mas não é no texto original do grande dramaturgo que se pode começar a conhecê-lo.

Algo análogo ocorre com o neoleitor, nos sentidos acima mencionados. Ele ganha muito em ter acesso a textos adaptados, com vocabulário simplificado e atualizado e com sintaxe direta, com relativamente pouco rebuscamento (poucas orações subordinadas por período, por exemplo), assim como com notas e outros aportes ao texto.

Pessoalmente, tenho outro grande motivo para ser favorável às adaptações: eu me tornei um leitor autônomo, lá pelos 13 anos, justamente por ter lido adaptações de clássicos. Foi uma coleção da editora Abril, que contava com maravilhas como o Dom Quixote, recontado por Orígenes Lessa, Os Irmãos Corsos, de Dumas pai, refeito por Myriam Campello, a mesma responsável pela edição de Oliver Twist, de Dickens.

Adulto, li o Quixote e o Twist em edições completas, mas nunca mais li o livro de Dumas, de que porém guardo uma lembrança muito vívida. Assim imagino que possa acontecer com qualquer um que, apresentado ao grande mundo da melhor ficção ocidental em versões simples, guarda em sua experiência profunda de leitor um caminho aberto para as obras integrais.

                                                                                 -

O caso momentoso tem a ver com isso tudo? Sim, em tese trata-se de adaptar o texto, simplificando-o, para formar leitores, que com toda certeza deve ser a baliza magna da conversa toda. A novela satírica de Machado de Assis e o romance açucarado de Alencar são cabíveis para adaptação? Sim. Se se tratasse de uma tentativa de recontar Grande Sertão: Veredas em linguagem simplificada, estaríamos diante de outro caso, porque aqui o trabalho da linguagem está no centro de interesse da obra.

No site da editora dessas adaptações está o texto facilitado de Machado de Assis; a julgar por ele, as mudanças feitas são pequenas e nem sempre precisas, nos dois sentidos desse termo. Primeiro, não se especifica qual leitor se tem em vista, o que pode ser decisivo. E há problemas. Exemplo: na p. 39, há uma nota para “Averróis”: “médico e filósofo hispano-árabe”. É uma nota inútil para quem não souber de quem se trata, e a redação é obscura (o que é, para o leitor iniciante, “hispano-árabe”? Quando ele viveu? Ser médico e filósofo era trivial?) Já na p. 67, o título do cap. 13, o derradeiro, Plus Ultra, expressão latina nada transparente, não recebe nenhuma nota ou explicação.

Quanto ao texto em si, há substituições que mudam pouco, como, na primeira frase do texto, “filho da nobreza da terra” por “filho de nobres”. O que se ganhou aí? Há alterações de pontuação equivocadas: a edição acrescentou vírgulas totalmente dispensáveis em adjuntos adverbiais em começo de frase, que Machado sistematicamente não usava.
-------------
* Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: ZH online, 18/05/2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário