segunda-feira, 21 de abril de 2014

Entrevista com Aymen Hacen, poeta e ensaísta tunisiano

Rodrigo Menezes

Sinceridade e ironia, estilo e linguagem, "terrorismo literário", os diálogos entre filosofia e poesia, a recepção da obra de Cioran no mundo árabe, Beckett e outras figuras em órbita ao redor do "caso" Cioran; são estes e outros temas abordados por Aymen Hacen nesta entrevista concedida, exclusiva e generosamente, ao Portal EMCioran/Br

Aymen Hacen (1981) é poeta e ensaísta tunisiano, além de leitor/pesquisador da obra de Emil Cioran. O maior, senão o único, comentador do filósofo romeno no mundo de língua árabe. Nasceu em 1918 na cidade de Hammam-Sousse, na Tunísia. É formado em letras modernas na Escola Normal Superior de Túnis, onde atualmente leciona Letras Francesas. Entre muitos outros, é autor de livros como Stellaire. Découverte de l’homme gauche (Fata Morgana, 2006), Alphabet de l’heure bleue (Jean-Pierre Huguet éditeur, 2007), Le Gai désespoir de Cioran (Miskiliani, Tunisie, 2007), um ensaio sobre o trágico em literatura, além de ter traduzido ao árabe O Instante de Minha Morte, de Maurice Blanchot.  De Cioran à René Char e Mahmoud Darwich, passando por Samuel Beckett, Henri Michaux, Susana Soca, Armel Guerne, Pierre Alechinsky, Pascal Quignard, Yves Leclair, Pierre-Albert Jourdan, Salah Stétié e outros grandes clássicos modernos, seus ensaios interrogam a relação entre filosofia e poesia através de um novo gênero, o fragmento essais interrogent le rapport qui existe entre philosophie et poésie à travers un nouveau genre, le fragment, numa busca de fundo em que a escritura, trágica, aspira a uma palavra universal.

EMCioran/Br: Aymen, gostaria de lhe agradecer pela solicitude e a honra de nos conceder esta entrevista. Como Cioran apareceu na sua vida?
Aymen Hacen: Por acaso, como todas as coisas boas, mas devo dizer que se tratou de um acaso necessário. Da seguinte maneira... Descobri Cioran graças a Beckett há mais de 9 anos. Um breve corpo de texto recolhido em um dicionário (o Robert des grands écrivains de langue française) me pôs diante de uma voz que considero hoje como uma das mais nutritivas: “Para adivinhar este homme separé que é Beckett, seria necessário -sedemorar na locução “se tenir à l’écart” (algo como “manter-se fora”, “excluir-se”, notadamente de um grupo, de uma atividade), divisa de cada um de seus instantes, pelo que ela supõe de solidão e de obstinação subterrânea, pela essência de um ser [do lado] de fora, que persegue um trabalho implacável e interminável. Bastaria uma frase para que o milagre se produzisse. No entanto, isso não é espantoso, e o caso desse encontro se transformou logo em necessidade, aquela que consiste em beber cotidianamente dessa escritura que se revelou tão perigosa quanto consoladora, tão desesperada quanto jovial, dir-se-ia jubilosa. Um pano grandioso termina por se tramar sob meus olhos ao fio dos textos que me conduziram de Henri Michaux e Roger Caillois a Susana Soca, de Benjamin Fondane a Léon Chestov, de María Zambrano a Ortega y Gasset, e a tantos outros poetas, escritores e filósofos que eram ou íntimos de Cioran ou companheiros de rota e de pensamento cujos escritos ele devorava fervorosamente. E foi lendo os Cahiers de Cioran que descobri o nome de Armel Guerne, graças a este trecho de uma carta datada de 28 de maio de 1969: “A humanidade contemporânea das nações ditas civilizadas, em menos de trinta anos, ignorará o sorriso e o riso e não terá nenhum foco no olho.”

EMCioran/Br: Cioran é bastante conhecido, bastante lido na Tunísia? Há boas traduções de seus livros? Estão todos publicados aí? Enfim, quais seriam os traços fundamentais (culturais, linguísticos) da Tunísia com os quais Cioran teria podido se identificar?
Aymen Hacen: Não, Cioran não é nem um pouco conhecido na Tunísia, e menos ainda no mundo árabe. Certamente, existem traduções em árabe, textos jornalísticos, mas estes se assemelham ao que existia, a propósito de Cioran, na França, na Alemanha e na Itália nos anos 50 e 60. Nada de conclusivo, mas uma fortuna assegurada, à medida que é a intelligentsia que se interessa pelo menino de Rașinari e isso não é nada.
Devo então lhes confessar que os tunisianos, precisamente os intelectuais tunisianos, são os únicos a se interessar por Cioran, traduzindo-o e comentando-o. Creio saber a razão disto: Cioran é um estilo, uma língua, e a escola tunisiana, que subsiste graças à herança do primeiro presidente da Tunísia, Habib  Bourguiba (1903-2000), fez com que fôssemos sensíveis a este “sentimento da língia” do qual Cioran era o digno representante.
Penso que Cioran teria sido feliz na Tunísia. Como Bernard Nöel, Nicolas Grimaldi, Roland Jaccard e Gabriel Matzneff, para citar apenas estes nomes tão significativos quanto importantes. Cioran teria sido sensível ao modo de vida dos tunisianos... Dito isso, é ver para crer. Aqui, a ataraxia não é uma palavra, é quase uma prática, mesmo nestes tempos de “revolução”.

EMCioran/Br: Você é poeta e professor de letras francesas em Túnis. Poderia nos contar um pouco sobre sua produção poética e também sobre suas atividades acadêmicas: os autores, os períodos, os assuntos que você aborda nos cursos que ministra?
Aymen Hacen: Não ensino quase nunca sobre poesia. É uma decisão que tomei e que tento respeitar, para me sentir em harmonia comigo mesmo. Imagine que amo ensinar sobre teatro, não apenas o clássico (Corneille, Racine e Molière), mas também os mais contemporâneos com Yasmina Reza e Éric-Emmanuel Schmitt. Dito isso, possuo um gosto decidido, em meus trabalhos, pela relação entre a poesia e a filosofia, assim como pelo fragmento como gênero.
Gostaria também de dizer que me interesse bastante pelas Luzes, mas este mantém uma relação com a situação do meu país, com a ascensão do fanatismo, etc.

EMCioran/Br: Na sua opinião, como Cioran se insere no contexto de pensadores e escritores franceses do século XX? A pergunta parte deste comentário nos Cahiers, que sugere certa princípio de “se tenir à l’écart”, conforme a divisa beckettiana acima mencionada: “Da geração Sartre-Bataille, apenas Simone Weil me interessa.”
Aymen Hacen: Cioran tem seu lugar e basta abrir qualquer manual de história da literatura do respectivo século para saber disso. Cioran nem sempre era sincero e não se deve levá-lo ao pé da letra. É certo, Simone Weil, que ele diz ser inteligente, poeta, luminosa e sei lá que mais! Ele a teria pedido em casamento para se fazer uma boa consciência. Sejamos sérios, “a geração Sartre-Bataille” tem uma verdadeira ancoragem histórica na França e na Europa. Pode-se dizer que a dita geração vai de Baudelaire a Bernard-Henry Lévy, e o aspecto intello francês, que o fazia fantasiar, escapava a Cioran, ultrapassava-o. Trata-se de uma inversão de espírito, de uma espécie de “para-doxo”, de posição forçosamente contra!

EMCioran/Br: Você escreveu um livro sobre nosso autor romeno, Le Gai Désespoir de Cioran, ou “O desespero jovial de Cioran”, expressão que ele mesmo forjou recorrendo, paradoxalmente, aos ideários de Nietzsche e de Kierkegaard. Trata-se, então, de um desespero que não seria suicida, poder-se-ia mesmo dizer que não se trata nem mesmo de um desespero desesperado, com o perdão do pleonasmo, tampouco derrotista, resignado a si mesmo, mas de um desespero produtivo, criador, e também clarividente (“lúcido”), cheio de humor, leve e jovial. Os leitores lusófonos de Cioran certamente gostariam de saber: quais são as principais teses sustentadas no seu livro dedicado a este autor desconcertante e enigmático que é Cioran?
Aymen Hacen: Sim, é verdade que parto de uma reflexão, ou antes, de um juízo de Cioran, sobre seu amigo Mircea Zapratan, mas eu vou mais longe, no sentido de que, para mim, Cioran é um assunto farmacológico. Não afirmo isso no meu ensaio, que é originalmente uma tese defendida na Escola Superior de Túnis, onde leciono hoje, mas é isto: Cioran, um antídoto ao desânimo, ao tédio, ao suicídio e a um montão de coisas que não deveriam existir e que, já que existem, devem ser combatidas com uma flor no fuzil. Cioran não é pessimista nem anti-humanista nem nada do tipo, ele é mesmo trágico, logo, extremamente humano – humano, demasiado humano...

EMCioran/Br: Desdeo seu primeiro livro, Cioran diz “Adeus à Filosofia” (título de um aforismo do Breviário de Decomposição), ao menos à grande filosofia acadêmica, “profissional”, a favor de um pensamento que ele definiria em termos de uma “filosofia lírica”, ou seja, “uma filosofia na qual a ideia tem raízes tão profundas quanto a poesia.” Como se deve interpretar esta rejeição da Filosofia no caso de alguém que fez seus estudos universitários em filosofia, e que estava, em sua juventude, fascinado pelas obras de Bergson e Heidegger?
Aymen Hacen: Não concordo. Cioran amava a filosofia, mas não como uma disciplina ou especialidade, senão como uma mulher. Ele amava a Philosophia dos gregos, uma Sophia humana... O que é certo é que ela o decepcionou, assim como a primeira garota que ele amou em Sibiu e à qual se refere em alguma parte dos Cahiers ou das Entretiens.  Cioran amava a vida e tudo indica isso. A vida e a filosofia para ele eram sinônimas, de onde seu encarniçamento contra esta última a golpes de declarações passionais, com fórmulas como “Privat Denker”, “Lebensgefühl”, “Weltanschauung”, etc. Cioran era demasiado nietzscheano e não podia admiti-lo, por isso buscou ultrapassar seu mestre e tinha de se aplicar corajosamente para, mesmo assim, ousar dar seus adeuses à filosofia, falar de sua morte, etc. No meu próximo ensaio, a ser publicado em 2015 e intitulado Cioran. Le Corps du Texte (“Cioran. O Corpo do Texto”), estudo isso metodicamente, e ainda que eu adote o ponto de vista de Cioran, posso lhes dizer que isso não se sustenta, que é feito para desconcertar, nem mais nem menos! Isso é demasiado cioraniano e eis o charme desse tipo de asserções!

EMCioran/Br: Em seu artigo publicado no volume colombiano (do núcleo de pesquisa sobre Cioran da UTP, na cidade de Pereira), organizado por Liliana Herrera e Alfredo Abad, você propõe uma interpretação de Cioran em termos de um “pensamento terrorista”. Certamente, trata-se aí de um terrorismo literário, filosófico ou mesmo metafísico, mas não político. Em todo caso, não seria este um terrorismo paradoxal e ambíguo, dir-se-ia mesmo um terrorismo “antiterrorista”, já que, como você mesmo escreve, implica “anular a vantagem da violência a favor da sabedoria, reconhecer o valor desastroso e trágico do pensamento terrorista. Repousando antes de tudo sobre a ascese à qual se submete o terrorista para aceder à sabedoria, a posição de Cioran é aquela de um filósofo trágico que, como afirma Clément Rosset, considera a aprovação (e seu contrário, o suicídio) como o único ato cuja disponibilidade se permite ao sujeito de ação, ou seja, ao homem, como a única forma de ato.”
Aymen Hacen: Não acrescentarei nada de extraordinário, não faço nada além de acompanhar Cioran em um dos seus estados de espírito. A questão da violência é, para ele, tanto como para os pensadores de sua geração, fundamental. Não esqueçamos de Adorno e sua forma que nos angustia a todos, mesmo que tenhamos vindo ao mundo quatro décadas mais tarde e em continentes muito distantes do lugar do massacre: “Escrever poesia após Auschwitz é um ato de barbárie.” Dito isso, tenho a precisar que a sabedoria de Cioran, por mais vacilante que seja, tão pouco sincera também, me tentava em meados de 2004, 2005, 2006, quando eu refletia sobre essas questões. Foi nosso amigo Eugène Van Itterbeek quem, me pediu, no Colóquio Cioran de 2006 em Sibiu, para inaugurar os trabalhos falando de Cioran e o mundo árabe. Confesso que não sou profeta, que eu não sabia que revoluções viriam a acontecer, e mesmo assim entrevi uma vontade de emancipação, portanto, de violência religiosa porvir. Certamente, a História me deu razão, e não cessa de fazê-lo, já que em 2012 escrevi Le Retour des Assassins e que, pouco tempo depois, uma violência extraordinária tomou conta de nós... Cioran contra o Corão: a meditar a respeito, hoje e sempre...

EMCioran/Br: Ao seu modo de ver, qual seria a importância de Cioran para nossos tempos? Por que lê-lo?
Aymen Hacen: Pegue qualquer página de Cioran, qualquer aforismos, e se dará conta da importância dessa voz, dessa língua, desse estilo, desse pensamento.

EMCioran/Br: Um livro favorito de Cioran, ou mais de um?
Aymen Hacen: Confesso que sou mais sensível à obra francesa de Cioran, que me parece ser uma ruptura com a romena. Não conhecendo a língua romena, não pude ler os textos romenos de Cioran no próprio texto, mas estou convencido de que a obra francesa é de longe mais forte, mais acabada. Todos os livros de Cioran me encantam e me suscitam admiração. De l’inconvenient d’être né é literalmente uma obra-mestra, tanto quanto o texto denominado Mon pays (“Meu país”), no qual Cioran se volta aos seus erros e errâncias de juventude.

EMCioran/Br: Quais os aforismos de Cioran que mais te encantam?
Aymen Hacen: Este aqui, tirado dos Silogismos da Amargura, talvez: “Deixa-se de ser jovem quando já não se escolhe mais os inimigos, quando a gente se contenta com os que tem à mão.”

EMCioran/Br: Prezado Aymen, gostaria de lhe agradecer pela entrevista. Para terminar, gostaria de deixar uma última mensagem?
Aymen Hacen: Nada de especial, ainda que queira dizer que existe um “mistério Cioran” e que este ainda não foi percebido. Sigamos, pois. Saudações da Tunísia ao Brasil, acrescentando que, segundo penso, Cioran teria amado estar no coração de uma amizade tunísio-brasileira!
Aymen Hacen – Rodrigo I. R. S. Menezes
Tunísia – Brasil, 21/04/2014,

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