domingo, 20 de abril de 2014

A infestação de baianos, goianos e polacos

Moisés Mendes*
Uma trouxa de roupa e um sonho bastam para que alguém ponha o pé na estrada. É por isso que as migrações no século 21 ainda têm muito das migrações bíblicas. Você aí, quantas vezes já migrou com uma mala quase vazia? Migra-se porque o pão acabou, para fugir da guerra, ou os filhos cresceram ou porque dá vontade de arriscar.

O prefeito de Carlos Barbosa, que ganhou manchete nacional ao dizer que teme imigrantes – e depois se arrependeu –, sabe que as feições do mundo são refeitas sem parar pelas migrações, mais do que qualquer outro fenômeno.

O prefeito Fernando Xavier da Silva disse que a chegada de gente de fora pode causar uma “infestação de baianos e goianos” e levar a fome à sua cidade. Carlos Barbosa está no centro de uma região de descendentes de imigrantes europeus.

O prefeito se desculpou depois. Estava tentando evitar que os forasteiros fossem atraídos pela prosperidade de Carlos Barbosa. Poderiam passar trabalho, pagar aluguel (como ele pagou por 21 anos), se entristecer e enfrentar sofrimentos.

Aí por 1870, quando começaram a chegar os imigrantes italianos ao lugar onde mora o prefeito, o sofrimento já veio junto. Quem ainda ignora o que significou a imigração deveria ler um livro que, segundo meu amigo Ticiano Osório, eu cito pelo menos uma vez por ano. Vou citá-lo pela primeira vez em 2014. É a mais densa obra sobre a formação do Rio Grande do Sul.

Chama-se Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, de Fernando Henrique Cardoso, de 1962. Deveria ser lido nas escolas, mas os colégios ainda preferem que os adolescentes leiam causos sobre os bandeirantes. Quem lê FH pode escapar da armadilha de escorraçar gente estranha. O livro é sobre escravidão e também sobre como a imigração acelera a quebra da estrutura do escravismo.

A imigração italiana talvez seja a mais emblemática. Num país fracionado, que sofre para ser um só, famílias sem futuro juntam as trouxas e os filhos e vêm conferir se o Brasil pode mesmo ser menos doloroso do que o Vêneto e a Lombardia. A primeira discriminação sofrida aqui pelos imigrantes – como as que sofrem baianos e goianos – é implacável. Se os europeus fugiam da desesperança e muitos eram miseráveis, que fossem transformados em escravos brancos das charqueadas.

Vou repetir uma história que já contei e está no livro de FH. Gente da região de Pelotas, a terra onde nasceu o prefeito, explicitou em cartas às autoridades que os imigrantes europeus deveriam desembarcar no Porto de Rio Grande e ir direto para a matança de bois. A escravidão definhava, já faltavam negros no Estado.

O governo da Província rejeita a ideia, e os europeus se vingam trabalhando. Desenvolvem a agricultura e a indústria e inauguram o capitalismo no Estado. O italiano acaba por forjar aqui uma identidade que, nas suas origens, era difusa, por todos os conflitos que levaram enfim à unificação.

A Pelotas dos escravistas tinha uma relação ambígua com os imigrantes. Um grupo pretendia escravizá-los, enquanto outros sonhavam em atrair colônias de alemães para a região. O sociólogo FH escreve: “A mística do progresso encarnara nos braços livres dos colonos-proprietários”.

O Rio Grande do Sul teve uma infestação de alemães, italianos, poloneses, austríacos, letos, gregos, libaneses, japoneses, sírios, suecos, holandeses, checos, russos. Juntaram-se a portugueses, africanos, espanhóis.

Os negros, libertos mas desamparados, sem acesso às colônias oferecidas aos imigrantes, passaram a ser os goianos e baianos do fim do século 19.

Que não se cometa o engano de achar que as ideias do prefeito sobre forasteiros são pontuais e esdrúxulas. O “medo” de imigrantes é irmão disfarçado do racismo e tem simpatizantes radicais entre descendentes dos colonos. É o nosso paradoxo de um fenômeno mundial, que recrudesce na Europa.

Sou migrante desde os 19 anos. E minha perpetuação neste mundo, com minhas heranças mamelucas, já está assegurada também pelo sangue de imigrantes europeus do século 19.

As mães de meus dois netos têm ascendência polonesa. Lisiane, mãe de Joaquim, de três anos, é Panasink. E Karine, mãe de Murilo, de um ano e meio, é Summienski.

Meus dois polacos são a minha garantia de que a eternidade existe. Viva a infestação de poloneses.
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*Jornalista
Imagem da Internet
Fonte: ZH on line, 20/04/2014

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