domingo, 16 de fevereiro de 2014

O FUTEBOL, VACAS E PORCOS...

 Rubem Alves*
 
Eu havia acabado de me mudar de Minas para o Rio de Janeiro, ano de 1945. Caipira, desconhecia as regras da sociabilidade da capital. Foi então que um colega do curso de admissão chegou-se a mim sorrindo e, num gesto de amizade me disse: “Eu sou flu. E você?” Fiquei abobalhado. Ele era “flu”. “Flu” deveria ser uma coisa muito importante, ao ponto de ele me confessar ser “flu”. Mas eu não sabia o que era “flu”. Diante do meu silêncio ele se dirigiu a um outro colega e lhe disse a mesma coisa. “Eu sou flu...”, ele repetiu. “Eu sou ‘mengo’, o outro respondeu. Iniciavam-se assim as relações sociais não com a troca de cartões de visita mas com a troca de nomes de times. Eu não tinha nome a dizer. Portanto não existia...

Contaram-me de um palmeirense roxo que odiava o Corinthians. Já velho, na cama, em agonia, aguardava o apito do Grande Juiz que o expulsaria de campo. Chamou o filho e com voz trêmula lhe disse: “Filho, estou morrendo... Quero que você faça a minha última vontade. Vá lá no Corinthians e inscreva-me como torcedor...” O filho achou que o velho já estava tendo alucinações, estava mais pra lá que pra cá. Argumentou. Mas o pai foi irredutível. O filho fez, então, a vontade do pai. Voltou com a carteirinha de torcedor do Corinthians.

O velho, vendo o seu rosto na carteirinha, sorriu um sorriso angelical e disse: “Oh, a suprema alegria de ver mais um corintiano morrer...” Ditas essas palavras, entregou a alma.
Essa minha indiferença ao futebol, exceto quando o Brasil está jogando, tem sido causa de muitos embaraços e cheguei mesmo a levar esse problema à minha psicanalista. “Por que é que todo mundo se entusiasma com futebol e eu não me entusiasmo?” Ela me sugeriu que, com certeza, deveria haver algum trauma infantil não resolvido no início dessa perturbação.

Sugeriu-me entregar-me às associações livres, que eu me deixasse levar pelas minhas memórias da mesma forma como os urubus se deixam levar pelo vento. Voei. E eis que, de repente, uma cena esquecida me apareceu. Era um campo de futebol de roça, um pastinho. Dois times estavam jogando. Meu irmão me levara até aquele lugar. Eu nada entendia do que estava acontecendo, todos aqueles homens em calções correndo para chutar uma bola. Tudo estava acontecendo sem maiores percalços quando, de repente, veio pela estrada de terra um cavaleiro conduzindo uma vaca. A vaca, vendo aquele alvoroço, a bola que era chutada pra lá e chutada pra cá, resolveu entrar no jogo, arremeteu contra a bola, cabeça abaixada como os touros na arena. Os jogadores e o juiz fugiram espavoridos. Muitos subiram em árvores.

Eu, menino pequeno, não conseguiria subir numa. Meu irmão, pra me salvar, arrastou-me para um chiqueiro cheio de porcos e colocou-me lá dentro. Ele ficou de pé na segunda tábua do chiqueiro apreciando, de uma posição segura, o desenrolar do futebol bovino. A vaca, não contente em chifrar a bola, dispunha-se a chifrar tudo o que se movesse. Mas eu, dentro do chiqueiro, nada via, a não ser aqueles porcos peludos que grunhiam grunhidos que eu desconhecia. Fiquei com muito medo. Minha analista, comovida com o meu relato, concluiu que minha indiferença ao futebol se devia a essa experiência em que o jogo aparece ligado a uma vaca desembestada e a porcos mal cheirosos. Concordei.

Minha primeira experiência com o futebol foi traumática: bovina e suína. E não é raro que uma partida termine em tourada e seja ocasião para a manifestação do espírito de porco...
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* Colunista. Escritor.
Fonte: Correio Popular online, 16/02/2014
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