domingo, 26 de janeiro de 2014

Nós somos oriundos da Queda


Paulo Ghiraldelli*


 Deus fez Adão do barro, depois tirou da costela de Adão sua companheira, Eva. Então, ao menos até o Pecado Original, esses três únicos habitantes do mundo paradisíaco viveram em completa harmonia entre si. Mais que isso, eles estiveram como um trio de irmãos siameses. 
Sentiam e pressentiam e “conversavam” juntos, sem mediações, 
como se fossem Lloyd e Floyd de Nabokov.

O Pecado Original foi a operação de separação dos três, pensada impossível até então. Imaginava-se que não havia tecnologia para tal, mas a ciência é algo sem ética, vem dos lugares onde o mal não tem barreiras. Então, o médico Lúcifer conseguiu com bom bisturi a laser colocar em liberdades os três siameses.

O povo antigo que criou essa lenda conhecia a tecnologia da cerâmica. Desse modo, pensou Deus como quem trouxe para si um objeto feito pelas suas próprias mãos, o homem feito como que um vaso. Este objeto jamais se separaria dele. Afinal, o criador lhe deu o significado para além do que poderia significar para outros. Deus esteve sempre em comunhão com Adão, e sendo Eva uma peça do próprio Adão, assim se estabeleceu o contato sempre imediato entre os três. Não se esperava nenhuma avaria nesse mostrengo de três cabeças.

Mas um monstro de três cabeças é um monstro. Lúcifer surgiu, então, em nome da estética, para fazer o desligamento. Obcecado pelo belo ou, melhor, por uma perfeição incapaz de conviver com o acaso, que nada é senão Deus, Lúcifer não podia aceitar no mundo paradisíaco um monstro. Foi adiante com a sua “estética da destruição”.

Mas não podia fazer isso se surgisse como médico, então, veio como animal. Um animal é sempre alguém muito tolo para fazer alguma coisa como uma sofisticada operação. Mas, na condição de serpente, passou despercebido por Deus e por Adão, enquanto trocava ali algumas palavras com Eva. Despertou a moça para aquilo que a mulher tem de propriamente como uma sua característica: o homem é menos resignado que a mulher, no entanto, segue ordens, a mulher segue ordens até que você diga para ela que não pode espiar em um lugar, não pode contar uma fofoca, não pode namorar fulano de tal e, principalmente, não pode comer determinada coisa. Não dá outra: falou isso, é como que pedir para a mulher esquecer sua resignação e ir fazer o que lhe foi proibido. A mulher destrói facilmente um reino para fazer algo fútil que lhe é proibido.

Lúcifer contou para Eva que Deus escondia um poder. Claro que era um poder poderoso o de conversar por fora da relação de siameses, ou seja, o de usar o mistério da objetividade, de conhecer aquilo que não foi feito por nós e de falar sobre tal coisa sem necessariamente conhece-la em sua intimidade. Esse saber, que era o saber da árvore do conhecimento, completamente dispensável no paraíso, era um falso dom para quem estivesse fora do paraíso, ainda que cedesse aparente poder para quem viesse a imaginar possuí-lo e planejar contar essa novidade para outros. Aliás, era também a porta de saída do paraíso. Lúcifer disse quase tudo isso a Eva, mas não precisava tanto, qualquer curiosidade outra que ele despertasse em Eva, e ela  desobedeceria Deus e tentaria comer do fruto da árvore do conhecimento.

Quando Adão e Eva provaram a liberdade usufruindo da desobediência, deixaram de pressentir e sentir Deus de modo imediato, e também um ao outro. A liberdade que se iniciou com a desobediência, então, se completou com a individualidade. Assim, ouviram Deus como uma voz exterior. Ouviram a si mesmos como vozes exteriores. Notaram que existia algo em seus corpos que se movia sem que eles o comandassem. O pênis de Adão tinha ereção e os seios de Eva entumeciam e ela sentia uma estranha movimentação no interior da vagina, e esta foi tornada capaz de molhar como que uma boca que produz saliva. Tudo isso, como Santo Agostinho bem disse, já era praticamente o castigo divino de imediato. Uma vez como membros separados do corpo de Deus, o corpo triplo, passaram a experimentar o quão vergonhoso é ter membros de um corpo que passam a agir por conta própria. Deus ficou condoído quando viu seus parceiros xipófagos sendo separados dele, e tão isso foi ocorrendo e ele foi mostrando para Adão e Eva o quão dolorido era ter um membro de um corpo tomando decisões por si só. Não à toa a maior parte da filosofia nunca foi outra coisa que a capacidade de se autodominar, e a religião, então, pouco coisa a mais que isso. Sempre foram tentativas de reparar essa desunião.

Quando Deus apareceu para Adão e Eva já como elemento exterior, e eles ouviram sua voz fora de suas circulações sanguíneas, ficaram apavorados com o som e ao mesmo tempo se cobriram, pois sentiram vergonha de não mais controlar o próprio corpo. A harmonia tripla havia se quebrado. Com o fim dos irmãos siameses, eles já estavam fora do Paraíso. Quando Deus os expulsou oficialmente, eles já estavam fora, e a expulsão formal só foi necessária porque nela Deus disse algumas palavras de como seriam as normas de vida dali para diante. Lembrou a Adão e Eva que teriam de trabalhar e que não seriam mais mortais. Eis aí a vida objetiva. Lembrou também que iram padecer da concupiscência, ou melhor, de todo o embaraço, brigas, desavenças, ciúmes, injustiças, mortes que ela provocaria. Eis aí a vida subjetiva.

A narrativa da Queda é uma das alegorias mais antigas e mais belas que temos. Muitos a tomaram literalmente durante anos, até porque não a metáfora, mas a consciência da metáfora é alguma coisa de complexo e tardio na linguagem humana. Claro que, quando o homem se viu diante do alegórico e metafórico de um lado, tendo do outro o literal, ele notou aquilo que sabia por intuição, que a narrativa bíblica da Queda era um conto moral, não uma descrição capaz de se tornar um modelo sobre “como nasceu o mundo e o homem” etc. Mas, além de conto moral, dava uma ideia de como é a esfera imunológica, para usar uma expressão de Sloterdijk. A esfera como um ambiente completamente endorfinado, um espécie de útero, e esse ambiente ficou na consciência dos homens em forma de uma utopia, uma cidade de completa segurança, nenhum esforço e toda a felicidade.

Algumas pessoas não sentem saudades do útero, e não pensam que seja necessário ter em mente uma utopia, exatamente porque não passaram pela Queda. Elas se imaginam em harmonia paradisíaca com Deus, como um dia Adão e Eva estiveram. Em alguns momentos, elas se sentem como o próprio Deus, quando Adão e Eva lhe faziam companhia como irmãos siameses.
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* Filósofo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/oriundos-da-queda/25/01/2014

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