sábado, 7 de dezembro de 2013

UM BÔNUS AMOROSO

 J.J. Camargo*
 
A morte antes de morrer começa, de fato, com a perda gradual dos objetivos. Parece claro que existir só por estar vivo não é argumento suficiente para ninguém continuar por aí. Por isso, a aposentadoria não pode ser vista como sinônimo de ócio remunerado, porque se isso acontecer, a eliminação dos motivos vitais se encarregará de reduzir a nossa expectativa de vida. Como se a inoperância mirrasse o nosso prazo de validade.

O entendimento disso explica por que existem velhos e velhos, e por que a nossa impressão de velhice varia tanto, face a pessoas de mesma idade. E um elemento diferencial é a preservação do humor. Nada isola mais o velho do que a sua própria amargura. Quando o idoso assume o ostracismo rabugento como consequência de suas limitações, está antecipando a morte. Saber envelhecer é preservar a utilidade.

A Petronia tinha mais de 80 anos, uma cara doce e um jeitão tranquilo e pachorrento que lembrava muito a Mercedes Sosa. Quando lhe expliquei que tinha grande chance de se curar do pequeno tumor que encontráramos no seu pulmão direito, mas que, para isso, era necessário operá-la, em nenhum momento ela questionou a indicação. Sua preocupação era outra. Precisava muito saber quanto tempo isso ia mantê-la fora de circulação, porque ela era a babá de uma bisneta, cuja mãe precisava que alguém cuidasse da filhinha enquanto cursava Medicina.

Prometi que o afastamento seria breve e expliquei tudo o que deveria fazer para tornar o pós-operatório mais rápido. No segundo dia, ainda na terapia intensiva, sua maior preocupação era saber se estava indo bem, e se havia alguma coisa a mais que pudesse fazer para acelerar sua ida para casa, “porque a bisneta e tal”, e repetiu a história.

Depois de confirmar que estava impressionado com sua determinação de viver, resolvi provocá-la: “A senhora não gostaria de casar comigo?”. Ela sorriu com a cara mais debochada e, no mesmo tom de brincadeira, respondeu: “Ah, doutor, o senhor me pegou de surpresa. Vou precisar de uns dias pra pensar!”.

Sempre lembro daquela bisa como um invejável modelo de longevidade saudável, bem-humorada e útil. Uma das filhas me confidenciou que, nos dias de consulta, ela sempre se enfeitava toda porque “hoje, vou abraçar o meu doutor”. Mais um bônus dessa maravilhosa profissão.
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* Médico
Fonte: ZH online, 07/12/2013
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