terça-feira, 10 de dezembro de 2013

ESQUERDA, IDA E VOLTA

João Pereira Coutinho*
 

Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista 

Minha vizinha é linda. Minha vizinha é de esquerda. Um problema? 

Não para mim, uma alma tolerante e pluralista e mentirosa. Para ela. Mas, como diria Jack, o Estripador, vamos por partes. 

Aconteceu em setembro. Começou o ano acadêmico em Lisboa e uma espanhola mudou-se para o apartamento ao lado do meu. Encontrei-a na porta da rua, transportando as malas. Ofereci ajuda. Resposta dela: "Lá porque eu sou mulher você pensa que não consigo?". 

Alarme. Feminista na área. Fugir, fugir, fugir --eis o sinal luminoso nos meus neurônios. Mas fugir daqueles olhos absurdamente azuis? 

Não, claro que não, e depois falei de uma hérnia discal precisamente por excesso de peso. "É preciso ter cuidado." Ela comprou a primeira mentira. Se Deus me der tempo e saúde, outras se seguirão. 

História da donzela: veio para Portugal apaixonada pela literatura dos lusos. A ideia é fazer doutorado, ficar uns anos, experimentar a vida do país. Excelente ideia. 

"Pena chegar com esse governo fascistinha, você não acha?", perguntou ela. 

Explicação prévia: o governo português atual, que alguns consideram de centro-direita, tem sido um exemplo de socialismo no seu pior. Sobretudo carregando nos impostos como nenhum governo socialista antes dele. Mas o que responder? A verdade, só a verdade, nada mais que a verdade? 

Não. A mentira, só a mentira, nada mais que a mentira. "Fascistinha é dizer pouco", murmurei com venenoso sarcasmo. 

E eu? Quem sou eu? Que faço? Quais são os meus gostos e desgostos? Falar de colunismo e televisão e livros é matéria interdita. Livros? O último chama-se "Por que Virei à Direita", Deus do céu. 

Respondi vagamente ("dou aulas") e depois menti vagamente ("mas o meu sonho é trabalhar numa ONG"). Os olhos dela brilharam e eu senti o meu cachet a subir. 

Mas tanta mentira desgasta. Voltando aos livros, é impossível esconder a biblioteca inteira. Foi o primeiro momento em que a máscara quase caiu. "Você lê muito autores de direita, não?", perguntou ela, olhando para as estantes com os meus Hayeks, os meus Oakeshotts, os meus Voegelins. 

Pausa. Sangue frio. "Você tem que conhecer o inimigo", respondi. Ela concordou. E depois perguntou pelos autores da minha vida. "Tirando o Slavoj Zizek? Não vejo mais ninguém com qualidade hoje em dia." 

Ela não conhecia Zizek. Com luvas e máscara de proteção, comprei um livro do ogro no dia seguinte. Foi o meu presente de aniversário em outubro. Ela gostou de Zizek; mas, surpresa das surpresas, achou as páginas sobre a necessidade de violência revolucionária um pouco excessivas. "Por causa dos inocentes", disse ela. 

Eu poderia ter ficado calado. Não fiquei. "Mas você acha que no capitalismo há mesmo inocentes?" Silêncio. E epifania: a única forma de trazer esse anjo um pouco mais para o centro é eu próprio radicalizar-me à esquerda. 

Dito e feito: nos últimos tempos, as conversas ficaram surreais. Defendo Cuba. Defendo a Venezuela. Ataco os Estados Unidos até pela falta de água em Lisboa. 

E sobre os colunistas de direita que "invadiriam a mídia", os tribunais deveriam fazer qualquer coisa. "Onde está a liberdade, afinal?", pergunto eu, indignado. 

De resto, a crise europeia tem responsáveis perfeitamente identificáveis ("a ganância dos bancos") e o "aquecimento global" é a maior ameaça à vida na Terra ("e quem diz o contrário deveria ser preso"). 

O resultado desse cortejo de insanidades está na moderação dela, que cresce de dia para dia: por cada loucura minha, ela tenta um equilíbrio. "Você é muito radical", eis o mantra dos últimos tempos. Eu medito, faço cara de caso. Depois rendo-me e concordo. "Sim, você tem razão." 

O objetivo, agora, é virar o barco para a direita por influência dela. Há sinais de esperança. Tímidos. Tênues. Dias atrás, assistindo ao biopic sobre Thatcher com Meryl Streep no papel da "dama de ferro", arrisquei: "Essa Thatcher era mulher de coragem. Fascista, mas de coragem". 

Ela completou. "Eu gosto dela. Quando você é mulher, tem que ser um pouco fascista num mundo de homens." Repicaram os sinos na minha alma. 

Se as coisas continuam assim, no próximo ano estaremos os dois no Fórum da Liberdade de Porto Alegre, a cantar hossanas a Milton Friedman e à escola de Chicago. E por que não? 

Vem na Bíblia: todas as grandes conversões são sempre histórias de amor à segunda vista. 
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*  Jornalista. Escritor. Historiador português. Colunista da Folha.
Fonte: Folha online, 10/12/2013
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