domingo, 8 de dezembro de 2013

Compositor italiano descobre em Pessoa chave para a crise

"São 44 poesias para ser lidas e interiorizadas, porque dentro delas está o código do futuro para Portugal", 
afirma Mariano Deidda.
 
É sentado na cadeira preferida por Fernando Pessoa, no café Martinho da Arcada, em Lisboa, que o compositor e cantor italiano, Mariano Deidda, divaga com o Expresso por dez anos de união da sua música à obra literária pessoana. "Mensagem", apresentada no III Congresso Internacional de Fernando Pessoa, que decorreu em Lisboa no final de novembro, é mais um dos seus trabalhos dedicados à metamorfose da literatura do poeta. Entre versos e acordes, Deidda, revela "o código do futuro de Portugal" que, diz, vai ajudar a sair da crise. O seu trabalho é composto de 44 poemas, que afirma essenciais para enfrentar o futuro em Portugal.

O que é que Pessoa nos ensina perante a crise?
São 44 poesias para ser lidas e interiorizadas, porque dentro delas está o código do futuro para Portugal. Só uma pessoa jovem pode descodificá-lo. Acredito que sobretudo uma poesia chamada "Os Colombos" tem a chave para um futuro próximo: "Outros haverão de ter/ O que houvermos de perder./ Outros poderão achar/ O que, no nosso encontrar,/ Foi achado, ou não achado,/ Segundo o destino dado". Estas linhas são o código para o futuro da sociedade. Cada um de nós tem de fazer a sua parte. Nos anos 60 e 70 era o Estado que construía. Hoje, o Estado não existe. Temos de o fazer nós, e precisamos de pessoas inteligentes para isso. A palavra fundamental é a competência. A nossa sociedade é muito sofisticada e o futuro será belíssimo, estou seguro.

Mas para isso é necessário que haja essa mudança de mentalidades...
A tecnologia ajuda muito. Há 50 anos, as pessoas trabalhavam no carvão, hoje temos satélites que trabalham para nós. É perfeito, porque um satélite raramente falha. O homem falha muito mais. Esta mudança só se pode dar com uma geração culturalmente desenvolvida e são poucas as pessoas incultas. Daqui a 20 anos serão menos ainda e quem não usar a cabeça, é excluído do jogo da vida.

Num mundo em que, como diz, são cada vez menos pessoas a trabalhar com as mãos e é privilegiado o trabalho "com a cabeça", qual o papel das artes e do belo?
Com a cabeça ou com a fantasia. É necessário talento e imaginação. Até para organizar um supermercado é preciso ser original. Tal como quando um engenheiro constrói uma metrópole, tanto precisa de inteligência como de imaginação. Porque é necessário que esta seja confortável mas também bela. Eu penso que a crise que atravessamos é, por um lado, económica, mas sobretudo uma crise de ideias. As pessoas têm medo de fazer coisas diferentes e só pensam no que não têm, porque o primeiro pensamento está no materialismo. O belo e a arte tem um papel muito importante. Até uma horta de um agricultor é uma obra de arte. O essencial é fazer, inventar. A mensagem de Einstein presente no meu álbum aborda isso mesmo.

Porque decidiu incluir essa citação no álbum?
Porque a "Mensagem" é isso. No fundo, o significado das 44 poesias, é resumido nessa citação. A mensagem de Einstein diz-nos que a crise acontece quando as pessoas chegam a um nível de vida mais ou menos estável, acreditando que têm tudo o que precisam. Mas a sociedade muda e nós ficamos desorientados.

"Mensagem" é o quinto disco que compõe em torno da poesia de Fernando Pessoa. O que o faz voltar constantemente a este poeta?
A universalidade da sua escrita. Fernando Pessoa foi um futurista e é difícil encontrar uma escrita tão moderna. Há poemas que se projetam muitos anos à frente do tempo em que ele viveu. Acredito que o expoente máximo deste autor não está no nosso tempo, mas está ainda por vir.

A "Mensagem" é para si uma espécie de Bíblia de ensinamentos?
Sim, porque Fernando Pessoa escreveu sobre todas as coisas relacionadas com a vida. Passando pela psicanálise, esoterismo, escreveu também quadras populares para fazer rir. Foi todas as coisas.

E também foi todas as pessoas, desdobrando-se em vários heterónimos...
Pessoa tinha poucos amigos. Inventou-os, porque naquela altura haviam poucos homens culturalmente altos.

Como lhe surgiu a ideia de unir a literatura de Fernando Pessoa à música?
Primeiro é preciso ler. Antes de musicar os poemas de Pessoa, havia já lido a sua obra durante muitos anos. Comprava discos de outros cantores e as palavras ficavam pobres. Faltava conteúdo. Então, pensei em Fernando Pessoa e na sua obra vasta e universal. Comecei há dez anos. É um projeto inovador, porque junta a música à literatura e pouca gente o faz. Existem alguns músicos portugueses a fazê-lo, mas pontualmente. Alguns adulteram as letras para conseguirem a métrica perfeita.

E o mariano não o faz...
Não, toda a poesia inteira, exatamente como escreveu Fernando Pessoa. A tradução é obra de António Tabucchi, que morreu o ano passado. É uma pena não ter aqui uma foto dele [olha para as paredes do Martinho da Arcada], que este é o café de Pessoa, mas também dele.

Foi a partir do escritor que teve acesso à poesia de Fernando Pessoa...
Sim, fui muito amigo de António Tabucchi, no meu concerto do III Congresso Internacional de Fernando Pessoa, no Teatro Aberto, em 3 dias, eu fui o único a lembrar a morte dele. Levantamo-nos todos para o homenagear com muitas palmas, mas eu fui o único a lembrá-lo. Se pessoa cresceu muito no mundo, é também pelo mérito de António Tabucchi.

Sente que o seu trabalho é mais bem recebido em Portugal ou em Itália?
É um paradoxo, mas, penso, que em Portugal. Eu sou estrangeiro, mas trabalho com o poeta mais importante do país. Em Itália nós adoramos Pessoa. E não só em Itália. Eu tenho o pressentimento de que Portugal não tem ideia do valor deste poeta no mundo. Ele inventou algo totalmente novo: os heterónimos. Há muitos, dentro da arca há 70 ou 80, cada um com uma caligrafia diferente.

Tem algum heterónimo de estimação?
O mestre, Alberto Caeiro. Mas também gosto muito de Álvaro de Campos. E claro, o poema que diz: "Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte disso, tenho em mim todos os sonhos do mundo." Basta colocar esta frase no contexto da crise. Temos tudo em nós. Basta ligar a cabeça, como quem liga um interruptor da luz. Iluminar. Porque o homem é uma máquina perfeita e pensar que entramos em crise porque temos poucos recursos económicos é um erro. O ser humano conquistou imensas coisas e perdê-las leva-o à loucura. Já não conseguimos viver sem o telemóvel. A conquista da tecnologia é esta. Para além disso, entrámos num ciclo vicioso em que os que perdem o trabalho são os mesmos que o tiram aos outros. Por exemplo, quem não tem dinheiro para comprar CD, tira a música da internet sem pagar. Eu, que sou músico, faço isso. O mesmo se passa com a crise do cinema. Ou, por exemplo, quando encomendamos um voo pela internet. Isso gera desemprego, e cada um de nós contribui um pouco para a crise.

Como artista, o que sugere para solucionar esse ciclo vicioso, de forma a que a arte tenha o lucro necessário para funcionar?
São as indústrias culturais que dão o dinheiro para investir em discos como o meu, e a partir daí pode correr bem ou não. Um jovem artista precisa apostar na qualidade e novidade do projeto. Estas são duas componentes essenciais.

Mas quando o Estado não investe na cultura, os artistas não podem evoluir, ou então têm de emigrar...
O Estado não investe na cultura, e por isso é necessário que toda a gente a reivindique. Por exemplo, estou aqui no café e se o empregado me disser que posso escolher entre um café ou um bolo, eu digo: não, quero isto! [aponta para "A Mensagem" em cima da mesa] Isto é cultura. Toda a gente deveria fazer deste modo. Quando o Estado mostra talkshows e telenovelas na televisão, podemos desligar e dizer: não quero ver isto. Eu quero um filme, eu quero um bom espetáculo, uma boa leitura.

A crise, como disse, não é apenas económica, mas quando existe uma crise económica as pessoas tendem a abstrair-se da cultura...
Todas as coisas devem partir de nós. O povo é que faz uma nação. Quantas vezes se faz uma greve para pedir cultura? É raro, e são os estudantes que vemos nas ruas. As outras pessoas não pedem cultura porquê? Querem o Ronaldo? O Ronaldo cria algum avanço na economia, mas a cultura verdadeira é mais necessária.

Para o futuro, que projetos tem em mente?
Estou a pensar fazer um quinto álbum ligado a Pessoa. Estou a  trabalhar nisso. Isto porque, um dia, António Tabucchi pediu-me para não parar com este projeto. E também porque sou o único no mundo a ter um trabalho tão vasto sobre um poeta. Tenho quatro discos em estúdio e um ao vivo, só para Pessoa. É muita literatura.
O meu primeiro disco foi com palavras minhas. Parei aí. Há muitas palavras lindíssimas neste livro ["Mensagem"], não preciso inventar.
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Fonte: http://expresso.sapo.pt/06/12/2013

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