sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O que significa ser de esquerda hoje na Europa?

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 A Carta Maior conversou sobre esse tema com Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College, especialista 
nos novos movimentos sociais.
Londres - Um dos resultados mais surpreendentes do estouro financeiro de 2008 e da crise econômica global que se seguiu a ele é que, na Europa, a esquerda não conseguiu capitalizar a imensa fratura social que se produziu. Apesar da aparição de movimentos como os Indignados na Espanha ou o Cinco Estrelas na Itália, e com a exceção do Syriza na Grécia, não ocorreu na Europa um avanço concreto da esquerda como alternativa de governo. Nas urnas predominou o voto castigo para quem estava no poder: mais da metade dos governos da União Europeia (UE) mudaram de sinal político. Além do desgaste do exercício do poder, esta resposta do eleitorado tem a ver com o fato de que a diferença entre direita e esquerda se reduziu, em muitos casos, a um neoliberalismo puro ou a um neoliberalismo com “face humana”.

A Carta Maior conversou sobre esse tema com Paolo Gerbaudo, pesquisador do Kings College, especialista nos novos movimentos sociais de autor de “Twits and the street”, para analisar o que significa hoje ser de esquerda na Europa.

CM: A esquerda não soube ou não pode aproveitar a atual crise para mudar a narrativa hegemônica neoliberal dominante desde a queda do Muro de Berlim. Há um problema de definição ideológica? O que significa, afinal, ser de esquerda hoje na Europa?

PG: Temos dois tipos de esquerda que não guardam nenhuma relação entre si. Por um lado a esquerda movimentista com alguns partidos muito pequenos como o Refundazione na Itália e Die Linke na Alemanha. Por outro lado, há uma esquerda socialdemocrata convertida ao evangelho neoliberal que tem um discurso a favor das privatizações e do abandono da regulação da economia. Entre essa realpolitik socialdemocrata e uma esquerda radical de caráter doutrinário, não há nada.

CM: Mas antes da queda do muro também havia uma divisão entre duas esquerdas, os socialdemocratas e os comunistas. A diferença é que, naquele momento, estas divisões tinham uma forte definição programática e ideológica. Com a queda do muro, parece que essas definições desapareceram.

PG: Há uma confusão ideológica muito forte. Depois da crise de 2007-2008, se esperava um novo espaço para a esquerda para responder ao neoliberalismo, mas isso nunca se concretizou em um programa. Houve reações, a mais notável delas com o Syriza na Grécia, que conseguiu construir uma resposta radical capaz de legitimar-se em nível popular com uma política não só de questionamento da economia e das multinacionais, mas também do Estado e da estrutura política predominantes no atual marco neoliberal. Mas em geral houve uma incapacidade da esquerda de responder à nova estrutura de classes das sociedades pós-industriais europeias. Na Europa, cerca de 80% dos trabalhos estão no setor se serviços, muitos dos quais são de classe média. Pode-se dizer que a classe operária é hoje de aproximadamente 15%, mas as formas de organização da esquerda ainda refletem o sistema produtivo industrial.

CM: Isso é do lado da própria esquerda. Mas em nível de sociedade parece haver uma mudança de época. Nos anos 60, 70 e mesmo nos 80 se discutia em termos ideológicos. Com a crise dos grandes relatos, este eixo perdeu muito peso. A sociedade mesma já não parece ter interesse nessas buscas programáticas alternativas.

PG: Claramente há uma crise do espaço público e da definição do que é político. O mito sobre a política que as gerações dos 60 e 70 tinham perdeu muita força. Agora o político está muitas vezes na conexão com a experiência pessoal, com a identidade social construída antes da política. Por exemplo, a maneira que o sistema afeta a via dos trabalhadores precarizados, a insegurança ou a preocupação frente a um Estado que controla a vida das pessoas como estamos vendo agora no caso Snowden, algo que expõe também a crise de legitimidade do Estado. Estamos em um momento de transição entre o que havia antes da crise e o posterior.

CM: Do ponto de vista ideológico, a queda dos grandes relatos deixou todo o cenário a um relato, o neoliberal. O estouro da bolha de 2008 foi um ponto da crise desse relato, mas na falta de alternativas ele segue funcionando por inércia ou default.

PG: Vemos isso muito na Europa. Aqui na Inglaterra se impulsionam medidas como a privatização dos Correios rechaçada pela população, mas que é levada adiante porque tem uma aparência de racionalidade. E é certo que há certa inércia em como se segue levando adiante mais do mesmo. Mas é interessante que mesmo em um país tão à direita como o Reino Unido, vemos o regresso de um discurso socialista ao espaço público e à política eleitoral. O líder do trabalhismo, Ed Miliband, propôs um congelamento das tarifas das empresas energéticas. É uma proposta populista que não muda as regras do jogo, mas é sintoma da mudança de debate público. De fato, as pesquisas dizem que a maioria dos ingleses está a favor da nacionalização dos serviços.

 "Na França, Hollande foi muito demagógico porque, 
além do imposto para os ricos, não propôs nenhuma mudança, não há um programa socialista. 
É como dizer que, com um pouco 
de redistribuição de renda, solucionamos todos os problemas.
 E não é assim, Sem política econômica e industrial, 
sem criar postos de trabalho, 
não se pode avançar."

CM: O caso Miliband parece sintomático. Ele precisa mudar primeiro o eixo do debate público. E está conseguindo. Agora se fala da “crise do nível de vida” e não da racionalidade de uma medida. Isso parece preceder a apresentação de alternativas programáticas.

PG: Ainda que se permaneça no marco neoliberal, ou seja, que as empresas sigam em mãos privadas, essa mudança tem sua validade. Mas a lógica é similar aquela adotada por Obama na área da saúde. A lei da saúde nos Estados Unidos é um monstro que torna obrigatória a inscrição no sistema privado ao invés de fazer uma saúde pública. Ou seja, fica na metade do caminho. O desafio é ir mais além e propor estruturas econômicas e direitos fundamentais para controlar a atividade social. Syriza, na Grécia, é o único partido que está avançando neste caminho entre o idealismo e o pragmatismo. Além disso, não se vê nada.

A Itália é um desastre. O Partido Democrático, que é uma convergência entre os ex-comunistas e a esquerda católica, tem um discurso anticorrupção, antielitista, mas basicamente mantém um critério neoliberal promovendo uma eficiência maior do Estado e mais transparência. Na França, Hollande foi muito demagógico porque, além do imposto para os ricos, não propôs nenhuma mudança, não há um programa socialista. É como dizer que, com um pouco de redistribuição de renda, solucionamos todos os problemas. E não é assim, Sem política econômica e industrial, sem criar postos de trabalho, não se pode avançar.

CM: Como se pode fazer isso na Europa? Porque falamos de países que podem pensar que não estão tão mal assim uma vez que estão entre os ricos do mundo.

PG: Essa mudança precisa acontecer simultaneamente em nível nacional e europeu. Com Hollande e a alta de impostos para os ricos, ocorreu que os ricos foram para outro país, de modo que sim uma coordenação política com outros países é muito difícil. Há coisas que estão ocorrendo neste nível de coordenação como a Taxa Tobin para as transações financeiras. Há muito mais o que fazer também na luta contra os paraísos fiscais ou em termos do imposto corporativo. Neste sentido, os movimentos sociais têm feito muito para mudar o debate público. No Reino Unido, Tax Uncut, que luta contra a evasão fiscal das corporações, foi uma maneira de estabelecer regras básicas da vida pública. Os indignados e outros movimentos têm feito o mesmo. A questão é como passar do diagnóstico para a ação. Precisamos de uma política socialista das redes em uma sociedade europeia pós-industrial.

CM: Tudo isso está gerando uma nova maneira de definir programaticamente a esquerda?

PG: Trata-se de propor uma defesa dos bens comuns como os serviços públicos, o transporte, o direito à cidade e à moradia. Precisamos de um socialismo que possa responder a uma necessidade de segurança em uma sociedade insegura, garantindo uma renda básica universal. Mas como dizia o historiador Eric Hobsbawm, estamos falando de uma economia mista. Não queremos retornar a um estado todo poderoso, clientelista, corrupto, ineficiente. O setor público tem que estar controlado pela participação cidadã para que seja transparente. Isso é algo que começa a ser proposta em distintos lugares, seja em nível acadêmico ou em movimentos, como pelo 5 Estrelas da Itália com sua reivindicação da renda mínima, ou Partido X da Espanha que defende a participação pública como forma de controle.

CM: Há algum sinal de que a sociedade europeia esteja acompanhando estas ideias? Em muitos casos ela parece ter se movido mais para a direita, culpando os imigrantes, por exemplo.

PG: Há um risco muito claro para a democracia. Basta ver o que ocorre na Grécia com o movimento fascista Aurora Dourada. O problema é que não tem havido um consenso programático na esquerda que não construiu pontes com os movimentos sociais. Isso é o que precisa ser feito.
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Reportagem por Marcelo Justo
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
Créditos da foto: Divulgação
Fonte:  http://www.cartamaior.com.br/08/11/2013

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