domingo, 10 de novembro de 2013

CONFISSÃO RESUMIDA

Emile Cioran*
 

Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes.

Em geral, começa assim: um ligeiro tremor que se torna cada vez mais forte, como depois de um insulto que se recebeu sem responder. Expressão equivale à réplica tardia ou agressão adiada. Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo.

A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruína todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. E, no entanto, durante muitos anos, me julguei o único indivíduo livre de taras. Esse orgulho me foi benéfico: me permitiu escrever.

Parei de praticamente de produzir quando, apaziguado o meu delírio, me tornei vítima de uma modéstia perniciosa e funesta para esta exaltação de que emanam as intuições e as verdades. Só consigo produzir quando, tendo desaparecido subitamente o sentido do ridículo, me considero o começo e o fim.

Escrever é uma provocação, uma visão felizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa.

Nada mais miserável do que a palavra e, no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade. Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agentes de um êxtase invertido…

Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústia, quantas crises sinistras venci graças aa esses remédios insubstanciais.

Escrever é um vício de que podemos cansar-nos. Na verdade, escrevo cada vez menos e acabarei sem dúvida não escrevendo mais, por já não achar a menor graça neste combate com os outros e consigo mesmo.

Quando nos dedicamos a um assunto, qualquer que seja, experimentamos um sentimento de plenitude acompanhado de uma ponta de arrogância. Fenômeno mais estranho ainda: essa sensação de superioridade quando evocamos um personagem que admiramos. No meio de uma frase, com que facilidade nos consideramos o centro do mundo! Escrever e venerar não andam juntos: quer se queira ou não, falar de Deus é olhá-lo do alto. A escrita é a desforra da criatura e sua resposta a uma Criação sabotada.
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[Cioran, E. M. (1915-1995). Filósofo.
Exercícios de Admiração - Editora Rocco- Rio de Janeiro - 2011 - páginas 151-153]
Fonte:  http://www.ricardogondim.com.br/perolas/confissao-resumida-emile-cioran/
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