quinta-feira, 24 de outubro de 2013

José Mujica, um presidente sem dinheiro

 David Santa Cruz*
 
 José Mujica pode se dar o luxo de ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do tempo livre, para se declarar social democrata como a maioria dos guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à luta eleitoral.

Quando José Mujica não é um homem de Estado é um sonhador. Chegou ao poder já velho, mas não cansado e sua aposentadoria como guerrilheiro a vive como presidente do Uruguai. Seus discursos nas cúpulas internacionais e na ONU causam turbulência, embora estejam longe de ser incendiários.

Se tivesse tido acesso à tribuna quando era parte dos Tupamaros o tom seria outro, seus discursos seriam como foram os de Che Guevara, quem aos 36 anos, em 11 de dezembro de 1964, como ministro da indústria de Cuba, insistia em plena Nações Unidas na sua disposição a dar a vida para libertar qualquer povo do mundo. Aos seus 78 anos, Mujica afirmou nesse mesmo organismo que “talvez hoje a primeira tarefa seja salvar a vida”.
Entre 1965 e 1966, os jovens anarquistas e socialistas do Uruguai se uniram no Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-T), entre os libertários estava Mujica.

Essa guerrilha se inspirou na que Fidel Castro e o próprio Ernesto “Che” Guevara. De modo semelhante aos outros guerrilheiros do continente, os comunistas uruguaios viam na Revolução Cubana a confirmação que era possível derrubar as oligarquias.

Embora o próprio Che fosse incapaz de replicar o triunfo, sua expedição à Angola se transformou na “história de um fracasso” segundo suas próprias memórias e na Bolívia foi morto, não em batalha, mas assassinado por militares que temiam a pressão internacional se o levassem ao julgamento depois de sua captura.

Mas voltemos ao Uruguai, aquele país no oriente sul-americano vivia uma democracia com aspirações autogolpistas que se concretizaram em 1973 e um presidente constitucionalmente eleito foi substituído e uma ditadura militar na qual os civis encabeçavam e legitimavam o governo. Nesse contexto, José Mujica foi ferido com seis tiros e permaneceu preso por 15 anos. Também conheceu a mulher que até hoje é a sua esposa.

O Pepe Mujica aumentou sua fama em 2012 quando o jornal espanhol El Mundo o batizou como presidente mais pobre do mundo.

Até seu sítio, ‘chácara’ dizem no sul, chegaram à mídia como a rede inglesa BBC que procurava o presidente que plantava flores, arrumava ele mesmo seu trator e tinha uma cachorra manca como animal de estimação. Tudo para encontrar a origem de sua pobreza. A resposta é que doa 90% de seu salário às obras sociais. Algo insólito no mundo onde a classe política tende a se enriquecer de maneira desproporcional comparada com a administração pública, mesmo em épocas de crises e desemprego, embora custe o sangue e a fome do povo.

Seu aspecto bonachão ajuda, suas vestes simples o enaltecem. Que somente tenha um Volkswagen sedan 1987 – aqueles que no México chamam de “vochos” e o resto do mundo fuscas – e que o use para ir ao trabalho como presidente o completa com uma congruência irrebatível no senso comum: “é o melhor presidente do mundo” disseram os integrantes de rock Aerosmith, que foram conhecê-lo e lhe deram uma guitarra autografada.

Mas José Mujica não gosta desse mote. Disse que não é o mais pobre do mundo, que pobres são aqueles que precisam muito para viver, e ele é um camponês que tem o suficiente.  Um dono de chácara (floricultor) segundo a própria pagina da presidência uruguaia. Seus detratores o tacham de radical e populista, de ser um demagogo e que criar um personagem: o Pepe. Embora os próprios uruguaios atestem que em encontros pessoais e histórias de rua indicam o contrário. Em Valizas, uma das praias mais badaladas do Uruguai, escutei da bocade um engenheiro agrônomo dizer que, antes de chegar à presidência, Mujica ia comprar plantas e semente para sua chácara e sempre as comprava um pouco da empresa onde ele trabalhava e outro tanto da concorrência, assim que na opinião do agrônomo era  equitativo na medida do possível.

Em sua chácara há apenas dois policiais vigiando, nada a ver com o oneroso e vergonhoso grupo de militares.  Ali vive como sua esposa, a também ex-guerrilheira e agora senadora Lucía Topolansky, a mesma que continua sendo líder do congresso e seu marido o presidente do Uruguai.  Uma história que pareceria um conto de fadas mas sem príncipes nem princesas, mas sim como calabouços, torturas e perseguições para ambos. Um par de fugas de filmes e logo uma vida no campo. Atualmente os jornalistas que têm visitado o escritório de Topolansky percebem que ali há três fotos: a do Che, do Pepe e de Gardel.

O segundo fato que levou esse homem humilde ao status de astro do rock foi sua proposta de legalizar a maconha no país. Se conseguisse, seria o primeiro na América, mas sobretudo o início de mudança do paradigma no combate às drogas que deixa milhares de mortos somente na Colômbia e México e que pouco a pouco se expande ao Peru, Bolívia e o fator que aumenta a violência na paupérrima América Central. A oposição acusa dizendo que essa medida é uma distração para não falar da crescente insegurança no Uruguai, a inflação e os demais males de todos os países do mundo. Pode-se afirmar que com pouco mais de três milhões de habitantes é um ator minúsculo do sul, dentro do contexto internacional. Rodeado, como se fosse pouco, de dois gigantes regionais: Argentina e Brasil, o resto é o Atlântico.

Por isso, José Mujica pode se dar o luxo de ficar na tribuna das Nações Unidas para falar da felicidade e do tempo livre, para se declarar social democrata como a maioria dos guerrilheiros que sobreviveram a sua própria utopia e se incorporaram à luta eleitoral. Ficar ali em pé e lhes dizer não serve muito, pois “nosso mundo precisa menos organismos mundiais de toda laia, que organizam fóruns e conferências que só ajudam os hotéis e as companhias aéreas”.

E como exemplo de que os organismos internacionais refletem os interesses daqueles que criticaram, Uruguai contribui com 14% das forças armadas para as missões de paz, apenas 2500 soldados. Nada se pensamos que EUA tem 33 mil no Japão, mas muito se consideramos as dimensões do país sul-americano, “há anos, sempre estamos nos lugares que nos pedem, entretanto, onde se decide e repartem os recursos não existimos nem para o café”, replicava Pepe diante a uma casa quase vazia, na qual horas antes se juntavam pessoas para ser testemunhas de como o presidente Barack Obama declarava a inexistência ou morte do imperialismo norte-americano. Apesar disso, ainda houve suficiente espaço na imprensa para o discurso “filosófico” de Mujica.

Em geral, os estudiosos das relações internacionais afirmam que basear a análise a partir de indivíduos é um erro, dizem-nos que tampouco importam os princípios ideológicos, mas sim as consequências morais de seus atos. Que pouco há que notar como governo, senão no tipo de governo que exercem, colocando as democracias acima de toda outra forma de governo. Entretanto, às vezes aparecem personagens cuja particularidade rompe qualquer esquema. Esse é o caso de José Mujica, o presidente do Uruguai, que quando não era um sonhador, tem que atuar como homem de Estado que considera a presidenta da Argentina, Cristina Kirschner, uma velha teimosa e difícil de negociar.; que se nega a entorpecer suas relações com a União Europeia para defender a dignidade de Evo Morales após ser preso na França de maneira ilegal ou que busca acordos bilaterais extra Mercosul, porque afinal, como todo homem de estado, sua obrigação é velar primeiro pelos interesses de seu povo.

Sobre seu passado é limpo, o dia que lhe perguntaram s havia matado alguém respondeu: tenho má pontaria. Tem dito que seus erros são filhos do tempo que lhe coube viver, como tal assume que às vezes um ex-guerrilheiro também sonha e lhe dá vontade de gritar: “Que tenha a força de quando bebíamos tanta utopia”.
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*  David Santa Cruz é jornalista mexicano, tem colaborado com mais de 20 meios de comunicação em diversos países. Trabalhou como jornalista da edição Internacional da AméricaEconomia. Hoje estuda mestrado em Estudos Internacionais na UDT, na Argentina.
Fonte:  http://americaeconomiabrasil.com.br/23/10/2103
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