sexta-feira, 11 de outubro de 2013

ALICE MUNRO E O UNIDUNITÊ DOS AFETOS: “ÓDIO, AMIZADE, NAMORO, AMOR, CASAMENTO”

Alfredo Monte*

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O Nobel ignorou a ficção de língua francesa, voltada para os rincões rústicos—eivados de pulsões—,tal como vemos na obra de Anne Hébert (1916-2000), e também a polimorfamente perversa reflexão (em língua inglesa) sobre os vínculos da periferia (a ex-colônia) e o centro (o Reino Unido) com os labirintos da condição feminina, da obra de Margaret Atwood, para afinal distinguir, enfim, uma escritora do Canadá com uma produção calcada na narrativa curta e que, no entanto,  compartilha de certas características comuns (ou incomuns) das duas grandes autoras citadas, mais polivalentes quanto ao exercício de gêneros: Alice Munro.

Sim, é verdade que o nome escolhido como vencedor em 2013 mostra bem a vitalidade da tradição tchekhoviana, dos pequenos conflitos retratados com consumada e compassiva maestria. Nem por isso deixa de haver um toque que lembra outra praticante notável da forma curta, Flannery O´Connor, indicando meandros e contornos mais “pesados”, por assim dizer, na representação de incidentes e situações cotidianas, que são a base para uma arte ficcional marcada pela síntese e pela economia[1].

O leitor brasileiro teve a sorte de conhecer essa inquietante feição dupla (tchekhoviana-flanneryana) de Alice Munro já no primeiro livro dela  traduzido em nosso país (por Cássio de Arantes Leite para a editora Globo, e lançado em 2004): Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento [Hateship,  Friendship, Courtship, Loveship, Marriage], título que causa estranheza por sua rebarbativa sequência de substantivos que, separada ou combinadamente, amiúde aparecem em títulos de auto-ajuda e congêneres, mas que, aqui, tem a ver com uma ladainha tipo unidunitê, executada por duas adolescentes no texto-título (o primeiro dos nove contos longos que compõem essa coletânea de 2001): 

“A única boa ideia que Sabitha teve era escrever num papel o nome de um garoto e o seu próprio, descartar as letras que se repetiam e somar então as restantes. Depois elas contavam o número na ponta dos dedos, dizendo, Ódio, amizade, namoro, amor, casamento, até recebe o veredicto sobre o que poderia acontecer entre elas e o garoto”.

Esse unidunitê do aleatório da vida (disfarçado no ritmo da ladainha)  e das escolhas que supostamente fazemos, é muito presente nas histórias contadas por Munro, e equacionado com o peso emocional das pessoas na vida dos seus personagens.
Dessa maneira, ainda no conto-título, um dos jogos das duas garotas, Sabitha e Edith, em sua efêmera condição de “melhores amigas” (até que as diferenças de condição social se evidenciem, afastando-as[2]) leva ao núcleo anedótico do relato, que é a decisão da empregada do avô de Sabitha de pedir demissão, para ir ao encontro do pai da neta de seu patrão: no caso, um viúvo que tem tanto de aventureiro e sedutor quanto de fracassado, e que sequer tomara conhecimento da existência dela;  porém, as meninas inventaram toda uma correspondência que aos poucos foi convertendo a austera e parcimoniosa Johanna Parry (uma das maiores personagens da ficção mais recente) em candidata a noiva.

Vamos conhecendo as etapas da evasão de Johanna (junto com uma mobília a qual, guardada por anos, é um ponto-chave na trama), aos poucos, e de uma forma admirável, pois antes de sabermos a causa de todo o imbróglio e conhecermos os demais personagens, travamos contato primeiro com a sua peculiar personalidade (quando vai comprar a sua passagem de trem e combinar os detalhes do transporte da referida mobília), numa impactante cena inicial.

Nos últimos parágrafos dessa pequena obra-prima, temos uma frase genial, que indica o espírito travesso de Munro, a sua gota de veneno nos licores de laranjeira (tal como sua colega dos EUA, Anne Tyler, mais afeita ao romance). É relacionada a Edith, uma das parceiras no unidunitê que envolve os destinos da até então solteirona  Johanna e do pai de Sabitha: “Pois onde, dentre a lista de coisas que planejava conseguir em sua vida,  havia qualquer menção ao fato de que seria a responsável pela existência no mundo de uma pessoa chamada Omar?” . Desde a Emma de Jane Austen, não víamos consequências tão divertidas (em porções de deleite e de ridículo) a partir da interferência na vida alheia.

Cada um dos nove textos tem seu próprio unidunitê. Em  Urtigas, a narradora abandona o primeiro marido e reencontra aquele que foi a paixão da sua infância (também casado), durante visita a uma amiga, e eles estacam no limiar de um relacionamento, afinal interdito devido a todas as decisões anteriores, e sobretudo pelo medo de “estragar” a magia dos jogos da infância (embora seja uma memória muito diferente para cada um deles).

Quando um empregado da pequena fazenda onde ela e a família viviam (e ele estava de passagem, pois o pai executava um serviço temporário) “malda” a convivência dos dois, e a mãe dela os defende: “Ela estava enganada. O empregado chegara mais perto da verdade do que ela. Não éramos como irmão e irmã, nem como nenhum irmão e irmã que eu já houvesse visto (...) E não éramos como as esposas e maridos que eu conhecia, que para começo de conversa eram velhos, e viviam em mundos tão separados que pareciam mal reconhecer um ao outro. Éramos como um casalzinho íntimo e vigoroso, cuja ligação não necessitava de muita expressão exterior. Algo, pelo menos para mim, solene e emocionante”.

Anos depois, quando adultos (numa cena que justificará o título):

“Tão perto um do outro que éramos incapazes de nos olhar (...) Mike liberou meus pulsos e pousou as mãos sobre os meus ombros. Seu toque ainda era para restringir, mais do que confortar.
    (...) A chuva continuava a cair, mas já se tornara uma chuva pesada qualquer. Ele tirou suas mãos, e ficamos de pé, tremendo. Nossas calças e camisas estavam grudados no corpo (...) Tentamos sorrir, mas mal tínhamos força para isso. Então nos beijamos e nos apertamos brevemente. Isso foi antes um ritual, um reconhecimento de sobrevivência, mais do que a inclinação de nossos corpos.”[3]
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A condição de observadora de relações cristalizadas também é um componente da narradora de Queenie. Ela, que, mais tarde, será uma professora com carreira, marido e filhos, conta um episódio formativo, quando, ainda jovem, visita a “irmã” (a Queenie do título, que agora quer ser chamada de Lena, para não irritar o tirânico marido, com o qual vive numa espécie de cortiço)— na verdade, a filha da mulher que casou com o seu pai—, a qual fugira de casa para se casar com o antigo patrão (o sr. Vorguilla, metamorfoseado em Stan]. O objetivo é conseguir um emprego de verão, mas ela principalmente se dedica a observar o relacionamento de Queenie (que se diz uma “criatura do amor”, reproduzindo—pensa a narradora—clichês assistido nos filmes comerciais no cinema onde trabalha) não apenas com o marido, mas também com os amigos dele:

“Meu pai e Bet. Sr e Sra. Vorguilla. Queenie e o Sr.  Vorguilla. Até mesmo Queenie e Andrew. Esses eram casais, e cada um deles, por mais desunido que fosse, tinha agora ou na lembrança um refúgio particular com seu calor e tumulto, do qual eu ficava de fora. E eu tinha de ficar, eu queria ficar de fora, pois era incapaz de ver qualquer coisa em suas vidas que pudesse me instruir ou encorajar.”

  Então, nessa altura da vida, há a disponibilidade., o unidunitê de um caminho indeterminado, um futuro cheio de possibilidades. O que lhe permite pensar: “Se ao menos tivesse um quarto, pensei, Queenie teria um lugar para onde fugir caso o Sr. Vorguilla ficasse fulo da vida com ela outra vez. E se Queenie um dia decidisse deixar o Sr. Vorguilla (eu seguia pensando nisso como uma possibilidade...), então com o salário de nossos dois empregos quem sabe conseguíssemos um pequeno apartamento”.

Queenie, de fato, inesperadamente “some”, largando o Sr. Vorguilla. E nunca mais é vista. E então se torna uma peça irônica na engrenagem da vida futura da narradora: ela, que era a que tinha dado o mau passo e “fechado” o seu destino, ganha a aura de figura mítica, que pode estar em qualquer lugar e ter qualquer vida: “nesses anos em que meus filhos cresceram  e meu marido se aposentou, e ele e eu viajamos um bocado, tenho a impressão de que às vezes vejo Queenie (...)Certa vez, foi num aeroporto lotado, e ela usava um sarongue e um chapéu de palha com adornos floridos. Bronzeada e animada, parecendo rica, cercada de amigos. E certa vez ela se achava entre mulheres na porta de uma igreja à espera dos noivos e sua comitiva. Vestia uma jaqueta de camurça manchada e não parecia próspera ou bem de vida...” No unidunitê da desaparição de Queenie, as possibilidades multiplicam-se e contradizem-se, e ela adquire uma condição nostálgica e poética.

Haveria muito o que explorar em Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento no caminho dessas linhas de força em que o aleatório (unidunitê) e a presença irrevogável de alguém formam uma espécie de dialética da construção da memória do cotidiano e da trajetória de uma vida.
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Para atender a um propósito de brevidade, me restringirei aos dois contos que considero mais bonitos do livro (uma façanha e tanto, diga-se de passagem), mesmo enfatizando que o conto-título é uma obra-prima à parte: Ponte Flutuante e The bear came over the mountain.

Ponte Flutuante se inicia significativamente com o relato de uma ocasião em que a protagonista, Jinny, quase largou o marido, Neal (um ativista sempre lutando por boas causas, entre elas a reeducação de delinquentes juvenis). Ela não leva seu intento adiante, mas o leitor já fica de orelha em pé para as fissuras entre um casal cujo engajamento tem muito a ver com uma obrigatória cumplicidade (e olhe que ele é bem mais velho que ela):

“Alugaram uma cama de hospital—na verdade, ainda não tinham necessidade dela, mas fora melhor pegar uma assim que possível, porque em geral a oferta não era grande. Neal pensou em tudo. Pendurou algumas cortinas pesadas que haviam sido descartadas do salão de jogos de um amigo. Tinham uma coleção de canecas de cerveja com tampa e objetos equestres de bronze que Jinny achava muito feios. Porém ela sabia agora que havia épocas em que o feio e o bonito serviam exatamente para o mesmo propósito, quando qualquer coisa para a qual se olha é apenas um pino onde pendurar as sensações descontroladas de seu corpo e os bocados e pedaços de sua mente.”

Quando Jinny é submetida à quimioterapia (com os estragos concomitantes), Neal arranja uma moça desajustada para cuidar da casa. É no dia em que ela  começará a trabalhar e viver com eles que o relato se concentra. Tudo é difícil e pesado para Jinny: o calor do dia, as decisões de Neal, que fazem com que eles tenham de ir à dilapidada propriedade da família que cuidava de Helen, a desajustada empregada, e com que ela tenha contatos com pessoas desconhecidas, hospitaleiras até em demasia, enquanto sente náuseas e uma terrível necessidade de solidão. Parece que o destino de Jinny é ficar atada a esses “compromissos morais” (o marido, quando ela recusa entrar na casa, lhe diz: “você não quer que eles pensem que se julga acima deles, não?”), enquanto a morte vai se aproximando.

Mas eis que a progressão do relato nos mostra que ainda há o unidunitê na vida de Jinny, que ela ainda não acabou (aliás, uma informação sobre o estágio da doença dela vai modificar um pouco o panorama do futuro), e ela tem uma experiência estranha, até assustadora (pode ter ficado à mercê de um desses psicopatas tão contumazes nesse hemisfério), com direito à noite estrelada e beijo (o que rende um trecho lindo: “Beijou-a na boca. Pareceu a ela que pela primeira vez na vida compartilhava um beijo que era em si mesmo um evento. A história completa, encerrada no beijo”)

. A arte de Alice Munro aí nos envolve totalmente, parece que vemos o mundo com o olhar da sua personagem, e ao mesmo tempo também podemos acompanhar claramente a maneira como os outros a percebem e tiram conclusões a seu respeito.

Encerrando a coletânea, o extraordinário The bear came over the mountain[4] se destaca por um motivo extemporâneo:  foi adaptado para o cinema, mantendo todas as suas qualidades, por Sarah Polley, em Longe Dela. Mesmo após aparecer a visão cirúrgica e ainda mais impiedosa do  tema em Amor (2012), de Michael Haneke, penso que a variação Munro-Polley mantém seu impacto e frescor por levantar questões inteiramente diferentes.

Na juventude, a decisão de Fiona casar-se com Grant obedece ao espírito “unidunitê”: “Acha que seria divertido se nos casássemos”. Entretanto, já na época, para Grant, o assunto se apresentava com mais gravidade: “Jamais queria ficar longe dela. Ela possuía a centelha de vida”. Isso não o impediu de, ao longo de um casamento de décadas, ter casos, alguns sérios, alguns até ameaçando sua carreira (como professor universitário), seguindo  modismos de comportamento sexual,  ainda  que de forma moderada. Enquanto ela, até por um certo esnobismo (ou autenticidade, ou profunda absorção em si mesma) se mantinha à parte.

Com o Alzheimer (não-nomeado, mas supõe-se que seja) evoluindo, ela mesma pondera que o melhor é internar-se numa instituição, na qual uma das regras é: nos primeiros 30 dias, nada de contato com familiares.Então ao revê-la, Grant percebe que ela passou para o outro lado da montanha. Está longe dele. E vemos o reverso doloroso do unidunitê: como conciliar que aquela pessoa-centelha na sua vida o oblitere quase que inteiramente,que lhe seja alheia quase que por vontade própria?
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O que torna o texto sensacional é o fato de que Munro mostra que, mesmo com as deteriorações psíquicas, que esgarçam os laços afetivos de toda uma existência, A VIDA NÃO PARA. Fiona, apesar de se manter renitentemente  opaca—e isso até o final maravilhoso do relato—para  o leitor (no filme, um efeito também da admirável interpretação de Julie Christie), constrói novos afetos e relações ali no Meadowlake. Se a vida (nesse sentido, de afetos e desejos) não para lá fora,  dentro da instituição também não. E Grant se obriga, por ciúme, por desespero, por inaptidão existencial, a acompanhar essa metamorfose dos sentimentos da  esposa. E se acompanhamos Shakespeare, Machado de Assis, Proust e Graham Greene nas suas travessias infernais do ciúme, The bear came over the mountain nos descortina novas veredas nesse território:

“Meadowlake tinha poucos espelhos, de modo que ele não era obrigado a ver a si mesmo espreitando e rondando. Mas de vez em quando lhe ocorria o quão patético, idiota e talvez fora dos eixos devia parecer, perseguindo Fiona e Aubrey por toda parte. E sem sorte alguma em confrontá-la, ou a ele. Cada vez menos seguro sobre que direito tinha de estar na cena, mas incapaz de se retirar. Mesmo em casa, enquanto trabalhava em sua escrivaninha, fazia limpeza ou removia neve com a pá, caso necessário, o tique-taque de um metrônomo dentro de sua mente fixava-se em Meadowlake, em sua próxima visita. Às vezes ele parecia a si mesmo um garoto obstinado fazendo uma corte impossível, outras, um desses malucos que seguem mulheres famosas pelas ruas, convencidos que um dia essas mulheres irão se virar e reconhecer seu amor.”

Conforme a narrativa se complica e se aprofunda, como acontece sempre nesses casos, vai agregando reflexões perspicazes, muito calcadas na concretude da vida (mesmo que tudo o que é sólido nas relações se desmanche no ar). Quando Marian, a esposa de Aubrey, explica a Grant sua relutância em interná-lo de vez no Meadowlake (e a ausência de Aubrey ali acelera a deterioração física e mental de Fiona)—ela teria de vender a casa para mantê-lo ali, e conservar a propriedade da casa é um ponto de honra para ela, a quem a vida tirou tanto--, lemos:

“Ele falhara com a esposa de Aubrey, Marian. Já previra que poderia falhar mas de maneira alguma previra o porquê. Pensara que tudo com que teria de se haver seria o ciúme sexual ou seu ressentimento (...) Não fazia a menor ideia da maneira como ela podia encarar as coisas. E mesmo assim, de algum modo deprimente, a conversa não lhe soara pouco familiar. Isso porque o lembrou de conversas que tivera com gente de sua família. Seus tios, seus parentes, provavelmente até sua mãe teriam pensado da forma como Marian pensava. Teriam acreditado que quando outras pessoas não pensam dessa forma era porque estavam se tapeando—tinham ficado muito intelectuais ou estúpidas, por conta de suas vidas confortáveis e protegidas ou de sua educação. Haviam perdido o contato com a realidade. Gente educada, gente instruída, gente rica como o sogro socialista de Grant havia perdido o contato com a realidade. Devido a uma boa sorte imerecida ou a uma estupidez nata. No caso de Grant, suspeitava, eles achavam  sinceramente que era os dois.
    Era assim que Marian o veria, certamente. Uma pessoa tola, cheia de conhecimento enfadonho e por um acaso protegido da verdade da vida. Uma pessoa que não tinha de se preocupar em manter sua casa e podia sair por aí ruminando seus pensamentos complicados.”

Como se vê, pelo escopo das reflexões e da estrutura narrativa, Munro poderia ser uma escritora que naturalmente passaria para o romance. Que ela tenha conseguido encontrar essa forma intermediária, ao mesmo tempo tão  contida e ampla-flexível, é a sua marca, e uma marca e tanto. Assim como o fato de ela não deixar nunca que a balança penda apenas para um lado, nem para o jogo aleatório nem para os “laços de ternura”. Tal como Anne Tyler, ela tem perfeita noção da tênue fronteira entre eles. Mas sabe que, de fato, Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento, em suas formas mais diversas, são realidades substantivas em nossas existências.
(outubro de 2013)
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[1]  A obra de Alice Munro apresenta um “parentesco”, também, com a de uma escritora injustamente esquecida, que nos deixou vários livros excelentes de narrativas mais curtas, Katharine Anne Porter, e com a parte contística da produção de Doris Lessing.

[2] “Sabitha era agora uma pessoa reservada, bonita e, notável, incrivelmente magra. Usou um chapéu preto sofisticado e não falou com ninguém, a não ser que lhe dirigissem a palavra antes (...) Na igreja Edith tomara a precaução de não falar com Sabitha primeiro; logo, Sabitha não poderia falar com ela.”

[3] Urtigas é outra prova cabal do modo magistral com que Munro constrói seus textos, sempre partindo de informações fragmentárias, “soltas”, e de tempos alternados, para depois chegar ao âmago da anedota. Por essa razão, um dos aspectos mais interessantes desse conto é a parte da infância, em que a narradora seleciona elementos nostálgicos bem flanneryanos, como uma brincadeira de crianças que se revela um jogo de guerra bastante sexualizado, e muito ligado à morte, a baixas humanas, além da descrição da atividade econômica familiar, com seu elemento de brutalidade pragmática:
“Eu tinha mais familiaridade com sangue e matança de animais do que Mike. Levei-o para ver a mancha num canto do pasto, próximo ao portão do curral anexo ao celeiro, onde meu pai sacrificava e cortava os cavalos com os quais alimentava as raposas e martas. O chão era liso de tão pisoteado e parecia tingido de cor de sangue, um vermelho-ferrugem escuro. Então eu o levei para o açougue no celeiro, onde as carcaças dos cavalos ficavam dependuradas antes de serem moídas para virar ração. O açougue era apenas um barracão com paredes de tela, que ficavam cobertas de moscas, enlouquecidas com o cheiro de carne apodrecendo. A gente pegava as leves telhas de madeira e esmagava um monte delas.” O Canadá apresentado por Munro é um palimpsesto de tempos, onde o rústico, o rural, o ermo convive com o urbano, o s choques contraculturais, os modismos.

[4] Que o tradutor preferiu deixar no original, já que é a alusão à canção folclórica em que o urso vai para atrás da montanha para saber o que havia lá...e lá havia o outro lado da montanha.
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Fonte:  http://armonte.wordpress.com/2013/10/11/

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