quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Pão, livros e manteiga

 Marcelo Rocha*
Escrever para quê? Para quem? Não temos público. Uma edição de 2 mil exemplares leva anos para esgotar-se, e o nosso pensamento, por mais original e ousado que seja, jamais se livrará no espaço amplo.

O desabafo acima não é de um escritor iniciante, diante da escassez de leitores, ou o brado de algum editor saudosista do formato do livro impresso, em tempos de difusão de outros suportes de leitura. Quem chamava a atenção para a falta de um público leitor era o romancista brasileiro Aluísio Azevedo, no final do século 19.

Azevedo tinha razão em sentir-se frustrado. A leitura era rarefeita. Segundo dados do primeiro recenseamento do império, de 1872, 84% da população, entre livres e escravos, era analfabeta. Nessa realidade, como haveria de prosperar a literatura?

O curioso é que o autor de O Cortiço era, segundo o jornalista Valentim Magalhães, o único escritor brasileiro que ganhava o pão com seus escritos, embora ressaltasse que as letras, no Brasil, ainda não davam para a manteiga.

Na mesma época, Machado de Assis, que também sofria com a tímida repercussão de seu Memórias Póstumas, foi aconselhado pelo cunhado a não desanimar, pois, mais cedo ou mais tarde, a justiça lhe seria feita.

Mas será que a justiça, de fato, foi feita e o panorama da leitura, no Brasil, sofreu alguma mudança substancial? Em recente encontro na Jornada Nacional de Literatura, o secretário do Plano Nacional do Livro e da Leitura, José Castilho Neto, declarou que apenas 26% dos alfabetizados são leitores plenos, isto é, capazes de compreender o conteúdo de textos lidos. Ademais, a nossa média de leitura ainda é de 1,3 livro por ano. Diante disso, o Ministério da Cultura estabeleceu, como prioridade, políticas para a formação de pessoas como mediadoras de leitura.

No entanto, talvez uma alternativa seja levar em consideração e estimular outras formas de leitura e não apenas aquelas reconhecidas a partir de uma tradição historiográfica literária. Por exemplo, segundo a pesquisadora Márcia Abreu, algumas vendagens da literatura de cordel chegaram a atingir a marca de 200 mil exemplares, o que, comparando com Gabriela, de Jorge Amado, que vendeu 20 mil exemplares, em sua primeira edição, é uma cifra considerável.

Hoje, o texto linear e canônico pode conviver com formas simultâneas de integração entre imagem e oralidade, transformando a percepção dos signos e da leitura. Isso não significa que os livros, em seu formato tradicional, tenham de ser abandonados, mas implica pensar, lembrando Camões, que: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” – e, nesse caso, mudam-se, também, os suportes.

De certo modo, a própria Feira do Livro de Porto Alegre pode ser um estímulo importante a todos esses modos de leitura. E são esses múltiplos olhares e significados que poderão ser partilhados nas conversas cotidianas na Praça da Alfândega e no Cais do Porto, ultrapassando as páginas dos livros e tornando-se tão essenciais para nossa fome de conhecer e de conviver quanto o pão e a manteiga.
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*Professor da Universidade Federal do Pampa, campus São Borja
Fonte: ZH on line, 31/10/2013
Imagem da Internet

Os sem-gravata

Mário Corso*
 
Sou avesso a rituais. Nada me aborrece mais do que casamentos, formaturas, missa para qualquer coisa, aniversários pomposos, tudo o que pede protocolo e roupa apropriada. Vou, mas como gato no cabresto. Admito que sou um chato, que dificilmente entro na frequência das emoções alheias. Pelo menos não estou sozinho, meu desconforto traz algo da minha geração, ou pelo menos, parte dela. Deixem dizer algo em nossa defesa: não se trata de misantropia gratuita.

Quem nasceu nos anos 50 e 60 viveu, fez, ou sofreu a revolução dos costumes. Depois dessa revolução, o mundo nunca mais foi o mesmo. Graças a ela, a vida ficou menos hipócrita, mais transparente, mais livre da opinião alheia. Mas num quesito esse movimento tomou um rumo que não imaginávamos: os rituais. Pensávamos que eles iriam declinar, que o importante era viver e não representar.

Nos anos 70 e 80, eles andaram em baixa. Eu recusei a crisma, minha formatura foi em gabinete e, para os padrões de hoje, meu casamento foi espartano. Mas voltaram redobrados, hoje temos formatura togada de 1º e 2º graus... quiçá de jardim de infância. Qualquer aniversário de criança é principesco, os casamentos são todos apoteóticos. A simplicidade foi esquecida.

Para usar uma gíria antiga, o mundo voltou a ser “careta”? Não creio, aliás, foi só nesse quesito que parece que engatamos a ré. Questões sobre igualdade de gênero, ou melhor, a dissolução das certezas sobre os gêneros seguem avançando. Para meu gosto, o mundo não é lá grande coisa, mas está mais arejado. O que aconteceu então?

A minha geração não levou em conta os avisos de Guy Debord quando escreveu A Sociedade do Espetáculo. Ele abordava a espetacularização da política, e a mídia tratando tudo como um show. Ora, o desdobramento disso para a vida privada é uma decorrência lógica desse processo. Para o autor, a vida esvaziou-se de sentido e inflacionou-se de imagens.

Creio que os rituais não esmoreceram, e até ganharam mais prestígio, por fornecer essas imagens que atestam que a vida acontece. Inclusive a palavra ritual nem deveria ser usada, pois eles já não marcam uma passagem, não fazem uma descontinuidade na vida, um antes e um depois diferentes. Talvez sejam feitos em uma dose mais forte até para fazer valer algo que não consiste.

Minha geração se sente traída ao ver essas cerimônias desmedidas e por isso fica tão mal-humorada quando nos exigem a gravata. Eu já estou mais conformado, talvez esses eventos não estejam esvaziados de sentido e, sim, sejam uma nova forma de experiência, nem melhor nem pior, outra. O mundo segue, não vou deixar de viver as emoções de meus amigos e familiares. Tento deixar de ser casmurro, já comprei as gravatas, mas ainda não sei dar nó.
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* Psicanalista.
Fonte: ZH on line, 31/10/2013
Imagem da Internet

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Fumando escondido

Roberto Damatta*
 
Eles ainda eram cinco quando a tia solteirona e magra viu a fumaça saindo da cabana que os sobrinhos tinham construído no terreno baldio ao lado da casa onde moravam. Viviam na Belo Horizonte dos anos 40 e, mesmo um bairro nobre da cidade, em torno do Minas Tênis Clube, muitos lotes cheios de "mato" esperavam as construções que hoje sombreiam a cidade. A turma de 12 meninos que os cinco irmãos naturalmente atraíam havia construído as paredes de restos de caixote e caixas de papelão, o telhado de folhas de bananeira e de galhos arrancados dos arbustos. 

Um muro servia como fundo e arrimo da tal cabana que saltava aos olhos no meio daquele lote vazio. E foi essa construção torta que Tia Amália viu pegando fogo - afinal onde há fumaça, há fogo! -, mas que aos olhos dos meninos era uma confortável (porque possível) sala de fumar. Com cigarros na mão e tragadas elegantes, eles brincavam de ser "homem" e, entre os adultos, figurar os haveres da paternidade que um dia ia sair dos seus sonhos e tornar-se tão dolorosamente real para alguns deles.

"Pois é, dizia Romero, você pode comprar aquele meu terreno na Pampulha..." Ao que Fernando respondia, pondo fumaça pela boca e sério como um corretor: "Vou considerar!" Enquanto Ricardo e Renato ficavam enjoados com o tabaco e Roberto, o cabeça, o mais velho e o sempre responsável por tudo, preocupava-se com a fumaceira e em pagar ao Lelinho - o único menino com coragem de ir comprar um maço de cigarros Beverly Extra em nome do pai. 

Quando a tia arrombou a porta da cabana e, escoltada por Dedé, a cozinheira, descobriu o que chamou de "vasta patifaria", nós todos voltamos à meninice e sentimos como o mundo da meninice é um universo toldado pelos olhos do mundo, um mundo de adultos. A cabana não estava em chamas. Ela apenas produzia a fumaça que denunciava o nosso "fumar escondido", como fazíamos às escondidas um monte de outras coisas que iam nos tornando o que seríamos como adultos.

*

O cronista de Cuzco, Garcilaso de la Vega, conta no seu livro, Comentários Reais dos Incas, publicado na Espanha em 1606, um "conto gracioso". 

Um conquistador chamado Solar, residente em Los Reys (Lima), tinha uma propriedade em Pachacamac. O capataz desta propriedade enviou ao patrão, por meio de dois índios, dez melões - frutos das primeiras sementes plantadas no Peru - e uma carta. Quando entregou a encomenda aos índios, ele os advertiu que não comessem nenhum melão porque, se o fizessem, a carta descobriria e os denunciaria. No meio da viagem, um dos índios sentiu o aroma sedutor dos melões. Quis saber o seu gosto o teve o desejo de provar a fruta do amo. Seu companheiro, temeroso, disse que não deveriam fazer isso porque a carta iria contar. O cabeça resolveu o problema colocando a carta atrás de uma mureta - pois, assim, ela não poderia ver o que eles estavam dispostos a fazer e, sem vê-los, ela não denunciaria o que estavam para fazer às escondidas. 

A estas alturas, devo lembrar que esses índios do Peru não conheciam a imensa tecnologia que chegou com a escrita, a qual inventou os mandamentos, as leis, os contra-mandamentos, os embargos, as exegeses, as receitas, os jornais, a literatura, a criptografia e a Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos. 

Eles imaginavam que as cartas que os espanhóis escreviam uns aos outros eram mensageiros ou espiãs capazes de revelar o que encontravam pelo caminho. As cartas eram concebidas como seres animados.

Comido o primeiro melão, os índios decidiram que era conveniente emparelhar as cargas. E, assim, para ocultar o delito, comeram - com gosto - outro melão. Chegados a Lima, apresentaram oito melões ao capataz. Este, logo depois de ler a carta, os confrontou: "A carta fala em dez! Vocês comeram dois melões na viagem. Vão levar uma sova por essa malandrice!". Depois de muito apanhar, os pobres mensageiros sentaram-se tristes na beira do caminho e um deles disse: "Viu, irmão? Carta canta!" Ambos ficaram muitos impressionados com o poder dos Conquistadores, os quais possuam essas "cartas" falantes, capazes de descobrir o escondido.

*

Matamos Deus e somos escravos da técnica. Passei o sábado tentando fazer funcionar uma impressora e, mesmo com uma ajuda decidida e dedicada, não consegui. Nem sempre o que está no papel e nos planos do usuário concretiza-se na sua relação com a coisa adquirida sem a figura do intermediário. Um presidente americano disse que o negócio dos Estados Unidos era fazer negócio. Hoje, dir-se-ia que é lutar a todo custo e risco contra o terrorismo - coisa complexa porque a guerra se faz entre países. 

Como disse o escritor Philip Roth, com o gosto pelo desvelar que passa longe de nós, em 1998, quando do escândalo Lewinski-Clinton, o terrorismo substituiu o comunismo como a prevalecente ameaça à segurança nacional somente para ser sucedido por um escândalo erótico. A vida, em toda a sua desavergonhada impureza, confunde mais uma vez a América, finaliza Roth.

Como meninos pegos fumando e peruanos ágrafos e loucos por melões, mas denunciados por uma carta, a América da liberdade e do equilíbrio entre o íntimo e o coletivo, entre o que se deve aos aliados e a si mesma, é pega espionando o mundo. A tocha da Estátua da Liberdade foi substituída por um iPhone.
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 30/10/2013
imagem da Internet

'A solução para o trânsito é trabalhar em casa', diz sociólogo Domenico De Masi

O sociólogo italiano Domenico De Masi, 75, em sacada do prédio da faculdade de arquitetura Escola da Cidade
 O sociólogo italiano Domenico De Masi, 75, em sacada do prédio da faculdade de arquitetura Escola da Cidade

O passo lento e a fala mansa de Domenico De Masi, 75, destoam do trânsito e da correria de São Paulo.

O sociólogo italiano segue à risca a teoria do livro que o tornou conhecido: "O Ócio Criativo" (editora Sextante, R$ 29,90). O conceito prega que dá para ter boas ideias durante momentos de lazer.
Ouvir uma música, ir ao cinema ou olhar pela janela podem, ao mesmo tempo, ser uma distração e fazer parte do trabalho. 

Na capital paulista pela décima vez, ele ministra neste domingo (27) palestra numa faculdade privada de arquitetura. "Cada cidade do país tem suas características. São Paulo é uma mistura de todas, é a Nova York brasileira." 
 
Quando questionado sobre os engarrafamentos da cidade, o italiano gesticula com as mãos como se dissesse: ficar parado no carro é algo que realmente o tira do sério.

Durante a entrevista, feita em português com respostas em italiano, Domenico improvisa para se fazer entender. Ri e desenha suas teorias para exemplificar que trabalhar tem que ser sempre uma mistura de aprender e se divertir.

sãopaulo - São Paulo tem uma criatividade diferente de outras cidades?
Domenico De Masi - O Brasil é como a Itália. Aqui existe uma criatividade estética, uma humanística e uma científica. No Brasil, há especialmente a humanística, no cinema, no teatro, na televisão, na poesia e na música.

Tem dicas para quem quiser usar melhor o tempo ocioso no trânsito?
Não. A única solução para o trânsito é o trabalho à distância. Com a internet, é possível trabalhar de casa.

Ficar ligado até em casa nos smartphones e no computador não pode aumentar o tempo de trabalho?
Temos máquinas para conservar o tempo e registrar as coisas. Isso nos ajuda a ter tempo livre, mas não o temos por falta de organização. Quem faz esforço braçal trabalha menos graças à tecnologia.

O senhor trabalha todo dia?
Sim e não, porque faço um trabalho criativo. Dou aula em uma universidade em Roma três vezes por semana. Será que estamos trabalhando nesse momento?

Como curte o tempo livre em SP?
É só chegar e sair na rua. Visito museus, dou palestras, encontro amigos, vou a concertos. Aqui há uma mistura de raças e uma cordialidade que não existe em outros lugares. São Paulo é o mundo.

Pensa em se aposentar um dia?
Eu não trabalho! Sou como o meu amigo Oscar Niemeyer (1907-2012), que trabalhou até os 105 anos, mas porque desenhava, se divertia.
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Reportagem por  REGIANE TEIXEIRA DE SÃO PAULO
Foto:  Olga Lysloff/Folhapress
Fonte: Folha on line, 27/10/2013

Zbigniew Brzezinski: A hegemonia dos EUA está perto do fim

O famoso geopolítico e “falcão” norte-americano Zbigniew Brzezinski constatou no período final da sua vida o fim da hegemonia global dos EUA. Contudo, os Estados Unidos continuam a lutar com o mesmo vigor pela liderança mundial, se bem que usando novos métodos.

Ao discursar na Universidade Johns Hopkins (Washington) durante a apresentação de um livro escrito sobre Zbigniew Brzezinski por seus antigos colegas e alunos, o próprio político colocou inesperadamente em causa o trabalho de toda a sua vida e que foi o reforço da hegemonia mundial dos EUA. Segundo Brzezinski, o domínio dos Estados Unidos, que se manteve ao longo de 13 anos após o fim da Guerra Fria, pertence ao passado e, provavelmente, não será restabelecido num futuro próximo.

O domínio global dos EUA se desmoronou por duas razões principais, explicou à Voz da Rússia Dmitri Suslov, membro do Conselho de Política Externa e de Defesa. A primeira razão, nas suas palavras, foi a grande redistribuição, que se iniciou em meados dos anos 2000, da influência política, econômica e militar mundial provocada pelo crescimento dinâmico de novos centros de poder e do ressurgimento dos antigos:

“Países como a China, a Índia, o Brasil, a Turquia e a Rússia começaram a crescer com ritmos muito elevados. Também começaram a crescer, respetivamente, as suas capacidades incluindo nas esferas militar e político-diplomática. Outra das razões principais foi a grande quantidade de erros cometidos pelos Estados Unidos. Eles tentaram transformar a hegemonia suave dos tempos de Clinton, nos anos de 1990, numa hegemonia à força.

Mas dessa forma eles apenas aceleraram o fim da sua hegemonia porque não conseguiram cumprir os objetivos colocados pela administração Bush, criaram protestos por parte de muitos centros de poder mundiais, viraram contra si uma grande parte da humanidade e dessa forma minaram as suas próprias posições. No fundo, o fim da hegemonia norte-americana ocorreu perto do fim da presidência de George W. Bush.”

O domínio norte-americano sempre foi questionado. Muitos países ou grupos de países desafiaram os Estados Unidos ao longo das décadas do pós-guerra, recorda o vice-diretor do Instituto dos EUA e do Canadá Valeri Garbuzov.

O atual presidente estadunidense Barack Obama admitiu a existência de um mundo multipolar e a necessidade de se ter em conta os interesses dos outros intervenientes da política mundial. Isso comprova que os EUA entendem as mudanças que ocorrem no mundo.
Ainda não chegou, porém, o tempo em que se possa falar do fim da liderança norte-americana, considera Valeri Garbuzov:
“Se considerarmos todos os indicadores econômicos e os dados sobre o poderio militar, claro que os Estados Unidos da América são a potência dominante global e os EUA têm como objetivo manter a sua liderança. Eu penso que eles irão conseguir. Eu penso que é prematuro dizer que o domínio dos Estados Unidos da América pertence ao passado.”

No entanto existe um fator fundamental que é bastante nivelador dos esforços dispendidos pelos EUA para a manutenção das suas posições de liderança. Se trata, na opinião de Dmitri Suslov, da generalização da força pelo mundo.

Nas condições da globalização, a força está distribuída entre muitos intervenientes, que podem ser Estados ou não. As organizações terroristas, por exemplo, obtiveram hoje uma capacidade militar que historicamente pertencia apenas a Estados.

Dessa forma, o próprio ambiente internacional se adensa e altera de uma forma que torna impossível por princípio que se fale da hegemonia de um, ou mesmo de vários, países.

A “primavera árabe” demonstrou os limites da influência política externa dos EUA, assim como o fato de Washington já não ter a capacidade para moldar os acontecimentos no mundo da forma que gostaria.
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Reportagem por Nikita Sorokin
Fontes: Voz da Rússia , Fórum Anti Nova Ordem Mundial

terça-feira, 29 de outubro de 2013

No princípio era o verbo

Anna Virginia Balloussier*
http://religiosamente.blogfolha.uol.com.br/files/2013/08/132244091.jpeg
 
Caro leitor,

Talvez você seja católico, evangélico, espírita, muçulmano, judeu, budista, hinduísta, corintiano ou adorador de bacon torradinho na manteiga.

Talvez não acredite em nada disso, talvez acredite em tudo ao mesmo tempo.

Três vezes por semana, este blog contará um pouco dos tantos “talvezes” que permeiam o fascinante mundo das certezas religiosas. Um pouco de tudo: dos bilhões que o setor movimenta no mercado de negócios às pequenas histórias que somam, subtraem, multiplicam e dividem nosso incalculável estoque de fé.

Talvez você esteja se perguntando: e quem ela pensa que é para falar da minha religião?

Então vamos lá: nesse sentido, ninguém. Não estou aqui para dizer o que é certo ou errado. Nem para ser condescendente. Tampouco jogar primeiras pedras, tomates ou bytes.

A ideia não é julgar. É escrever sobre um Brasil que está mudando. Por exemplo: o censo do IBGE aponta que, entre 2000 e 2010, a proporção de católicos no Brasil foi de 74% para 64,5%. Já os evangélicos galoparam de 15% para 22% (42 milhões de brasileiros). Por isso, pretendo gastar mais do que um punhado de linhas para falar sobre um segmento tão emergente e, ao mesmo tempo, tão pouco compreendido por quem é de fora.

Agora, sim: sou Anna Virginia, prazer. Na verdade não gosto de bacon (estou mais para aquelas que curtem uma soja grelhadinha no azeite orgânico). Torço para o Botafogo (a depender dos últimos placares, um bom exemplo de via-crúcis). Fui alfabetizada num colégio com nome de santo católico no bairro de Santa Teresa, no Rio, que ficava perto de uma igrejinha (a qual nunca frequentei). Depois migrei para uma escola metodista, do movimento protestante fundado por John Wesley no século 18 (um inglês que guarda semelhança extraordinária com o senhor das caixas de Aveia Quaker).

Boa parte da minha família é espírita (“não praticante”), batizada na Igreja Católica (“melhor garantir”), cheia de estátuas de Buda na sala de estar (“para trazer paz”) e com gosto em virar madrugadas assistindo aos pastores na TV (“o do chapéu de vaqueiro é demais!”).

Em “Pulphead”, o ensaísta norte-americano John Jeremiah Sullivan (que também é demais) escreve sobre a experiência de passar três dias num festival de rock cristão. Narra sua aventura com “os crentes” –como o ex-atleta peso pesado de luta livre (do tipo que estoura um abacaxi no sovaco gargalhando) que se encanta com “Redemption Song”, de Bob Marley.

Sullivan conta quão fácil seria descolar uma ou outra declaração sobre “fazer música com espírito amoroso para glorificar o Senhor” e então “rabiscar cada vírgula sorrindo por dentro”. E como o que ele faz é precisamente optar pelo trajeto mais difícil: ir lá, acampar com os “caras da Virgínia Ocidental” e conhecer um pouco da realidade deles.

A proposta deste blog é esta: ir lá, sem réguas ideológicas, e conhecer um pouco da realidade deles.
Pedras, tomates ou bytes no e-mail anna.virginia@grupofolha.com.br. Bem-vindos!

Três livros sagrados em miniatura: o Alcorão muçulmano, o Bagavadguitá hindu e a Bíblia cristã
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* é editora-assistente da revista “sãopaulo”.
Fez jornalismo na UFRJ, faz ciências sociais na USP e fará Columbia, NY, em 2014.
No blog, notícias, bastidores e curiosidades do mundo religioso.
Fonte: Folha on line, 29/10/2013

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

DA FALSIDADE

Luiz Felipe Pondé*
 

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas 

Dias sombrios. Nesses momentos, volto às minhas origens filosóficas, o jansenismo francês do século 17 e seu produto essencial, "les moralistes" (que em filosofia nada tem a ver com "moralista" no senso comum). Os moralistas franceses eram grandes especialistas do comportamento, da alma e da natureza humana. Nietzsche, Camus, Bernanos e Cioran eram leitores desses gênios da psicologia. Pascal, La Rochefoucauld e La Bruyère foram os maiores moralistas. 

O Brasil, que sempre foi violento, agora tem uma nova forma de violência, aquela "do bem". E, aparentemente, quase todo mundo supostamente "inteligente" assume que é chegada a hora de quebrar tudo. Nada de novo no fronte: os seres humanos sempre gostaram da violência e alguns inventam justificativas bonitas pra serem violentos. 

Impressiona-me a face de muitos desses ativistas que encheram a mídia nas ultimas semanas. Olhar duro, sem piedade, movido pela certeza moral de que são representantes "do bem". Por viver a milhares de anos-luz de qualquer possibilidade de me achar alguém "do bem", desconfio profundamente de qualquer pessoa que se acha "do bem". Quando o país é tomado por arautos do "bem social", suspeito de que chegue a hora em que a única saída seja fugir. 

A fuga do mundo ("fuga mundi") sempre foi um tema filosófico, inclusive entre os jansenistas, conhecidos como "les solitaires" por buscarem viver longe do mundo. Eles tinham uma visão da natureza humana pautada pela suspeita da falsidade das virtudes. O nome "jansenista" vem do fato de eles se identificarem com a versão "dura" (sem a graça de Deus, o homem não sai do pecado) da teoria da graça agostiniana feita pelo teólogo Cornelius Jansenius, que viveu no século 16. 

Pascal, La Fontaine e Racine eram jansenistas. Aliás, grande parte da elite econômica e intelectual francesa da época foi jansenista. Por isso, apesar de Luís 13 e 14 (e de seus cardeais Richelieu e Mazarin) e da Igreja os perseguirem, nunca conseguiram de fato aniquilá-los. 

Hoje, por termos em grande medida escapado das armadilhas morais do cristianismo (não que eu julgue o cristianismo um poço de armadilhas, muito pelo contrário), tais como repressão do outro, puritanismo, intolerância, assumimos que escapamos da natureza humana e de sua vocação irresistível à repressão do outro, ao puritanismo e à intolerância. 

Elas apenas trocaram de lugar. A face do ativista trai sua origem no inquisidor. 

Uma das maiores obras do jansenismo é "La Fausseté des Vertus Humaines" (a falsidade das virtudes humanas), de Jacques Esprit, do século 17. Ele foi amigo pessoal do Conde de La Rochefoucauld. Alguns especialistas consideram o conde um discípulo de Esprit. A edição da Aubier, de 1996, traz um excelente prefácio do "jansenista contemporâneo" Pascal Quignard. 

O pressuposto de Esprit é que toda demonstração de virtude carrega consigo uma mentira e que as pessoas que se julgam virtuosas são na realidade falsas, justamente pela certeza de que são virtuosas.
A certeza acerca da sua retidão moral é sempre uma mistificação de si mesmo. Os jansenistas sempre disseram que os que se julgam virtuosos são na verdade vaidosos. Suspeito que o que vi nos olhos desses ativistas nessas últimas semanas era a boa e velha vaidade. 

Mas hoje, como saiu de moda usar os pecados como ferramentas de análise do ser humano e passamos a acreditar em mitos como dialética, povo e outros quebrantos, a vaidade deixou de ser critério para analisarmos os olhos dos vaidosos. Melhor para eles, porque assim podem ser vaidosos sem que ninguém os perceba. Vivemos na época mais vaidosa da história. 

"A verdade não é primeira: ela é uma desilusão; ela é sempre uma desmistificação que supõe a mistificação que a funda e que ela (a desmistificação) desnuda", afirma Pascal Quignard no prefácio do livro de Esprit. Eis a ideia de moral no jansenismo: a verdade moral é sempre negativa, sempre ilumina a sombra que se esconde por trás daquele que se julga justo. 

Que Deus tenha piedade de nós num mundo tomado por pessoas que se julgam retas. 
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* Filósofo. Escritor. Prof. Universitário.
Fonte: Folha on line, 28/10/2013
imagem da Internet 

ALEGRIA COMPULSÓRIA

Montserrat Martins*
 pré-sal, para quem mesmo?
“O Brasil é um ótimo lugar para se fazer um país”, frase do Luís Fernando Veríssimo, segue sendo nossa melhor definição. “País continente” também é uma expressão verdadeira: somos vários povos diferentes que dividem entre si um grande espaço, como aqueles vizinhos com algum grau de parentesco, que vivem em várias casas num mesmo pátio. Basta passar um tempo no Rio Grande do Sul, outro em Minas Gerais e outro na Bahia para você perceber que esteve em três países. 
 
Uma vez escrevi sobre a hospitalidade mineira, aquele jeito atencioso que eles tem de conversar, uma característica marcante, notável, que chama a atenção de qualquer visitante. Pensando agora em como definir a “alma” baiana, a expressão que me veio à mente foi “alegria compulsória”. Salvador é muita música alta nas ruas e nas casas, ambientes de agitação sonora, expansivos, que tiram qualquer um da introspecção. O oposto da solidão campeira sulista, do silêncio que permite ouvir o vento minuano, da terra de O Tempo e o Vento (não perca o filme, por sinal).

A Bahia é mais Brasil que o sul, em vários sentidos. Uma curiosidade simbólica é que o mapa baiano é quase idêntico ao brasileiro, como se fosse sua miniatura, pulsando no coração do país, do lado esquerdo do peito do mapa quando ele nos olha de frente. Todos os sociólogos que decifraram o Brasil concordam num ponto essencial: as marcas da colonização seguem incrustadas profundamente na nossa alma, nos levando a nos negarmos, nos contradizermos como um povo onde “santo de casa não faz milagre” e tudo que vem de fora parece mais bonito. Ao mesmo tempo, temos uma alegria que falta aos “civilizados” europeus, seja por nossa natureza selvagem e mestiça, seja pela sensação de estarmos recém nos libertando da escravidão, ao menos a liberdade de ir e vir, já que carregamos ainda dentro de nós a mentalidade do dominado, daquele que obedece aos seus coronéis.

No Brasil ainda há “donos de capitanias hereditárias”; em contraste, o Rio Grande do Sul tem alma oposicionista, é onde os governadores sequer se reelegem. O senso crítico sulista, mistura de muita informação com aquele gosto pela briga confessado pelo Capitão Rodrigo, esteve presente nas mobilizações que sacudiram o país em junho, onde cartazes estimulavam a lutar contra as tarifas “como em Porto Alegre”. Amigos baianos me contaram das manifestações lá, pois mesmo um povo alegre, irreverente e festivo, pode despertar para os protestos, para a rebeldia.

Os clichês contra baianos são contra nós mesmos, contra a alma nacional, pois nada é mais brasileiro que a boa fé, a esperança, o misticismo, a espontaneidade instintiva, a extroversão e a alegria da boa terra. Lembro de um amigo gaúcho perguntando para a visitante baiana se “tu canta?”, quer dizer, os clichês estão na nossa mente e são mesmo irresistíveis. Também incluem o “complexo de vira-lata” que Nelson Rodrigues identificou na alma nacional, que tem um lado de auto-desvalia e outro de auto-complacência. Pois como ele também disse, “o Brasil é o único país do mundo onde bicheiro joga, traficante cheira e prostituta goza”.

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, do Caetano, é nossa identidade colonizada, com alguns traços de rebeldia. Lembrei de tudo isso no leilão de Libra. Nossa estatal, Petrobras, até então propagandeada como competente, poderosa, na hora do “filé” ficou só com uma parte. Dizem os Senhores que isso era inevitável, que não tínhamos mesmo a capacidade dos de fora. A mídia e o governo federal estão de acordo, não era para o nosso bico. Mas vi baianos desconfiados, dessa vez.
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Montserrat Martins, Colunista do Portal EcoDebate, é Psiquiatra.

Dez dicas para uma boa redação (não só no Enem)

Paulo Ghiraldelli*

Dica 1. Não inicie como quem não se dá importância. Por exemplo, “Muito se tem dito sobre …” ou “Não pretendo aqui exaurir o assunto …”. Também não inicie como quem vai explicar tudo que não vai fazer, isso é desanimador e pode não sobrar espaço para o que você vai fazer – ou iria fazer! Por exemplo: “Não se trata de…”. Inicie com elementos taxativos, curiosos, capazes de em uma fisgada levar o leitor a se engajar na leitura. Por exemplo, você vai escrever sobre pesquisa a respeito de água em Marte. Tendo ou não água em Marte, comece com algo do tipo “Há água em Marte. Pode haver vida …”. É claro que, em vários casos, terá de relativizar depois.

Dica 2. Não faça frases longas. Deixe isso para o Saramago (que eu não leio). Também não abuse no tamanho dos parágrafos. Há quem faça muitos parágrafos, usando aquele estilo que permite mesmo quase que uma frase em cada parágrafo. Esse estilo não é para qualquer um. Não aconselho.

Dica 3. Escreva com o seu repertório, com o seu vocabulário. Caso ele não seja rico, paciência. Escreva com o que tem, deixe para depois ler mais e adquirir um vocabulário maior. Não tente não repetir palavras, como a professora da escola básica ensinou. Pode repetir. O segredo é não repetir de um modo que, lendo em voz alta, você sinta que incomodou. Hoje em dia, por influência do inglês, repetimos mais do que no passado. Não gosto daquele truque de substituir Marx por “o autor de O Capital”, para não repetir o nome “Marx”. É um recurso infantil.

Dica 4. Escreva de uma vez só. Bem, ao menos a versão final, deve escrever de uma vez só. As paradas mudam o estilo da escrita, os tempos dos verbos etc. Somente escritores bem treinados pegam um texto que estava na gaveta há algum tempo e reiniciam no mesmo tom e estilo.

Dica 5. Não cite autores importantes para dizer coisas que você ou qualquer um pode dizer. Para usar uma frase ou um pequeno trecho de um autor, escolha algo que é relevante, algo que é original dele. Mas não cite por citar, o trecho utilizado deve vir por necessidade do texto.  Evite aquele estilo de tese velha (mesmo que esteja escrevendo algo parecido com tese), em que o autor prima por nunca escrever, apenas ir de citação em citação, de destaque em destaque.

Dica 6. Cuidado com os vícios gramaticais. Todos nós temos e todos nós, mesmo os profissionais da escrita, adquirirem outros mais tão logo corrigiram os que incomodavam. Há autores veteranos que, sabe-se lá por qual razão, começam a escrever com um ou dois erros e vão embora com isso. Corrigidos, ficam paralisados, não sabendo como que puderam cair naquele erro. É que não era um erro, ou melhor, era sim um erro, mas algo que se tornou um vício imperceptível.

Dica 7. Não abuse de vírgulas. Há regras para tal, mas se você foi bem alfabetizado, a melhor regra é a da respiração, que lhe dá a pausa “natural”. Leia em voz alta e então corrija as vírgulas.

Dica 8. Não escreva sobre o que não sabe. Escrever sobre o que não se sabe é um dom. Mas é um dom que chateia demais! Há pessoas que deixam a pena correr, que falam de tudo, mas não falam do assunto que escolheram. Afinal, o que tinham para dizer sobre aquele assunto cabia em um bilhete. Use o Twitter ou o Facebook em caso de ter apenas ideias esparsas. Texto bom é antes de tudo texto informativo sobre o assunto proposto. Isso também vale para o texto ficcional. Descrições de ambiente, divagações e outros recursos que antes chamávamos de “encher linguiça”, mostram um escritor vazio. Quando um tema geral lhe é desconhecido, e cai sobre sua cabeça como imposição, então você pode pensar sobre ele e encontrar em seu interior o modo de abordá-lo que lhe é conhecido, familiar. Pegue por aí.

Dica 9. Não faça do esquema “introdução-desenvolvimento-conclusão” uma camisa de força. Tal esquema é pobre, é realmente para quem não tem nenhuma experiência com a leitura e a escrita. Serve para quem realmente é um iniciante. Mas, logo que possa saia disso.

Dica 10. Saiba distinguir gêneros narrativos. Um ensaio tem semelhança com um artigo, mas não é um artigo. Uma tese é uma tese. Um aforismo é um aforismo. E por aí vai. Cuidado com isso. Muitos jovens só leem textos científicos, os de sua área de estudo, e não conseguem construir uma narrativa própria para “contar algo”. Aprenda a “contar uma história”, a “contar algo”. Lembre-se que pode sim escrever na primeira pessoa, alternando com a primeira do plural quando quiser engajar o leitor. Não é necessário escrever no impessoal, mesmo que seja filosofia!
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* Paulo Ghiraldelli, 56, filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte: Blog pessoal: http://ghiraldelli.pro.br

Marx, um precursor do marketing?

O conceito de fetichismo da mercadoria, elaborado pelo pensador alemão, foi o precursor do marketing e do neuromarketing, defende publicitário. 

Lisboa - Com este título provocador, o publicitário – sim, ele disse logo que não era nem historiador, nem filósofo, nem economista – Elysio Pires tentou demonstrar, durante o Painel sobre “Marxismo, Filosofia e Ideologia”, que o conceito de fetichismo da mercadoria, elaborado por Marx, foi o precursor do marketing e do neuromarketing.

“Vamos iniciar imaginando duas bolsas femininas exatamente iguais – mesmas matérias-primas, mesmo design, mesmo acabamento, mesmo fabricante. Apenas uma pequena, mas não impercetível, diferença: uma delas tem a etiqueta Dolce&Gabbana e  custa 10 vezes mais...”, começou ele. Mas onde Marx entra aí?
Pires explicou: “Quando a consumidora compra a bolsa Dolce&Gabana não o faz pela necessidade de ter onde guardar seus objetos de uso. Ela vê no objeto um meio de satisfação de seus desejos de atração, sensualidade e ascensão social”. E foi justamente Marx que identificou na sua obra O Capital o caráter místico/religioso na relação dos consumidores com as mercadorias. Mais precisamente na seção 4  - “O Fetichismo da Mercadoria e seu Segredo” - do Capítulo I, considerado o mais inescrutável capítulo desse livro.

Argúcia teológica

Na seção 4, Marx afirmou: “À primeira vista, uma mercadoria parece uma coisa trivial e que se compreende por si mesma. Pela nossa análise mostramos que, pelo contrário, é uma coisa muito complexa, cheia de sutilezas metafísicas e de argúcias teológicas”.

E no segundo parágrafo do texto inicial de O Capital está escrito: “A mercadoria é, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, pelas suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. Que essas necessidades tenham a sua origem no estômago ou na fantasia, a sua natureza em nada altera a questão”.

Pires lembrou que em 1967, exatamente 100 anos após a publicação de O Capital, um guru dos “marketeiros”, Philip Kotler parafraseou Marx no clássico Marketing Management: “Marketing é a atividade humana dirigida para satisfação das necessidades e desejos, através dos processos de troca. Um produto é tudo aquilo capaz de satisfazer a um desejo”.

“Conceituados 'marxólogos', como Denis Collin, Moishe Postone e mesmo o guru de todos nós, Hobsbawm, afirmam que a teoria do fetichismo da mercadoria seria a descoberta que levou Marx a ultrapassar os postulados da Economia Clássica”, afirmou o publicitário. O fetichismo teria demonstrado que as mercadorias possuíam corpo e alma. “Assim, a partir dos anos 60, essa alma passou a se chamar “marca” e surgiu uma disciplina chamada marketing que se dedicou a cuidar da 'alma’ das mercadorias.”

A “mercadoria” fé

O historiador e sociólogo norte-americano Richard Sennett foi outro a concluir que a compreensão do fetichismo da mercadoria ajuda a entender os fundamentos da “sociedade do consumo”. “O que a perspetiva exclusiva da produção não permitiria”, acrescentou Pires.

Mas a sociedade do consumo e do espetáculo que estamos vivendo neste início de século 21 acabou por alterar, segundo a perspetiva do publicitário, o conceito de fetichismo, tornando desnecessário o próprio “corpo” da mercadoria. “Estou me referindo à 'economia do acesso' – quando se promove o acesso a serviços e experiências, a fim de que se possa deles gozar, sem que se obtenha a propriedade do serviço.”

O capitalismo estaria a entrar numa nova fase na qual o acesso a um bem ou serviço passa a ser mais importante do que a compra/propriedade desse serviço. “E isso altera radicalmente a noção de propriedade, um dos elementos centrais do capitalismo industrial e do contrato social moderno. Assim como a questão do valor, pois veicula-se agora o valor da experiência.”

Um dos mais radicais exemplos de mercadoria sem corpo e apenas com alma seria, exemplifica Pires, a mercadoria fé.

Depois da sua exposição no congresso, ficou claro que o brasileiro Elysio Pires não é “apenas” publicitário. Na juventude foi filiado ao Partido Comunista Brasileiro e dedicou – e com certeza ainda dedica - um bom tempo aos estudos de Karl Marx.
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Reportagem por Cristina Portella 
Fonte: http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Marx-um-precursor-do-marketing-/4/29343

Duas forças em tensão: a auto-afirmação e a integração

 Leonardo Boff*
 
Biologicamente nós humanos, somos seres carentes (Mangelwesen). Não somos dotados de nenhum órgão especializado que nos garanta a sobrevivência ou nos defenda de riscos, como ocorre com os animais. Alguns biólogos chegam a dizer que somos “um animal doente”, um “faux pas”, (um passo em falso), uma “passagem” (Übergang) para outra coisa, por isso nunca fixado, inteiros mas  incompletos.

 Tal verificação nos obriga a continuamente a garantir a nossa vida, mediante o trabalho e a inteligente intervenção na natureza. Deste esforço, nasce a cultura que organiza de forma mais estável as condições  infra-estruturais e também humano-espirituais para vivermos humanamente em sociedade.

Acresce ainda outro dado, presente também em todos os seres do universo, mas que no nível humano ganha especial relevância. Vigoram duas forças: a primeira é  auto-afirmação, a segunda, a integração. Elas atuam sempre em conjunto num equilíbrio difícil e sempre dinâmico.

Pela força da auto-afirmação cada ser se centra em si mesmo e seu instinto é conservar-se, defendendo-se contra todo tipo de ameaça contra sua integridade e a sua vida. Ninguém aceita morrer. Quer viver, evoluir e se expandir. Essa força explica a persistência e a subsistência do indivíduo.

Precisamos neste ponto superar totalmente o darwinismo social segundo o qual somente os mais fortes e adaptáveis triunfam e permanecem. Essa é uma meia verdade que está na contramão do processo evolucionário. Este não privilegia os mais fortes e adaptáveis. Se assim fora, os dinossauros estariam ainda entre nós. O sentido da evolução é permitir que todos os seres, também os mais vulneráveis, expressem virtualidades latentes dentro da evolução. Esse é  o valor da interdependência de todos com todos e da solidariedade cósmica. Todos, fracos e fortes, se entreajudam para coexistir e coevoluir.

Pela segunda força, a da da integração, o indivíduo se descobre envolto numa rede de relações, sem as quais,  sozinho como indivíduo, não viveria nem sobreviveria. Existe o individuo mas ele vem de uma família, se insere num grupo de trabalho, mora numa cidade e habita um país com um tipo de organização social. Ele está ligado a toda esta cadeia de relações. Assim todos os seres são interconectados e vivem uns pelos outros, com os outros e para os outros. O indivíduo se integra, pois, por natureza, num todo maior. Mesmo que o indivíduo morra, o todo garante que a espécie continue permitindo que outros representantes venham a nos suceder.

Sabedoria humana é reconhecer o fato de que chega certo momento na vida no qual  a pessoa deve se despedir para deixar o lugar, até fisicamente,  a outros que virão.

O universo, os reinos, os gêneros e as espécies e também os indivíduos humanos se equilibram entre estas duas forças: a da auto-afirmação do indivíduo e a da integração num todo maior. Mas esse processo não é linear e sereno. Ele é tenso e dinâmico. O equilíbrio das forças nunca é um dado, mas um feito a ser alcançado a todo o momento.

É aqui que entra o cuidado responsável. Se não cuidarmos ou pode prevalecer a auto-afirmação do indivíduo à custa de uma insuficiente integração e então predomina a violência e a autoimposição ou, ao contrário, pode triunfar a integração a preço do enfraquecimento e até anulação do indivíduo e então ganha a partida o coletivismo e o achatamento das individualidades. O cuidado aqui se traduz na justa medida e na autocontenção para não privilegiar nenhuma destas forças.

Efetivamente, na história social humana, surgiram sistemas que ora privilegiam o eu, o individuo, seu desempenho, sua capacidade de competição e a propriedade privada como é o caso da ordem capitalista ou ora  prevalece o nós,  o coletivo, a cooperação e a propriedade social como é o caso do socialismo real que foi ensaiado na União Soviética e ainda persiste, em parte, na China.

A exacerbação de uma destas forças em detrimento da outra, leva a desequilíbrios, conflitos, guerras e tragédias sociais e ambientais. Com referência ao meio ambiente tanto o capitalismo quanto o socialismo foram depredadores e pioraram as condições de vida da maioria das populações. Em ambos os sistemas o cuidado responsável desapareceu para dar lugar à vontade de poder, ao enfrentamento entre ambos e até a brutalidade nas relações mundias visando a corrida armamentista e a dominação do curso do mundo.

Qual é o desafio que se dirige ao ser humano? É o cuidado reponsável de buscar o equilíbrio construído conscientemente e fazer desta busca um propósito, uma atitude de base e até um projeto político. Portador de consciência e de liberdade, o ser humano possui esta missão que o distingue dos demais seres. Só ele pode ser um ser ético, um ser que cuida de si e que se responsabiliza pela comunidade de vida. Ele pode ser hostil à vida, colocar-se, como indivíduo dominador, sobre as coisas. Mas pode ser também o anjo bom que se sente integrado na comunidade de vida, junto com as coisas. Depende de seu empenho manter o equilíbrio entre a auto-afirmação e a integração num todo e não permitir que forças dilaceradoras dirijam a história.

Por ser ético, coloca-se ao lado daqueles que tem dificuldades em se auto-afirmar e assim sobreviver e impedir uma integração que destrói as individualidades em nome de um coletivo  amorfo. Eis uma síntese sempre a ser construida.
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* Teólogo. Filósofo. Escritor.  Ele escreveu: O despertar da águia: o sim-bólico e o dia-bólico na construção do real, Vozes 2010.
Fonte:  http://leonardoboff.wordpress.com/2013/10/27/duas-forcas-em-tensao-a-auto-afirmacao-e-a-integracao/

Onde foram parar todos os criminosos?

Rodrigo Menezes*

 

Em 1966, um ano após se tornar o ditador comunista da Romênia, Nicolae Ceausescu declarou ilegal o aborto. "O feto é propriedade de toda a sociedade", afirmou ele. "Qualquer um que evite filhos é um desertor que vira as costas às leis da continuidade nacional."

Declarações tão grandiosas faziam parte do dia-a-dia do regime Ceausescu, pois seu plano-mestre - criar uma nação digna do Novo Homem Socialista - era uma ode à grandiosidade. Ceausescu construiu palácios para uso próprio enquanto perseguia e negligenciava o povo. Ao abandonar a agricultura em prol da industrialização, obrigou boa parte da população rural a se mudar para prédios sem calefação. Nomeou para cargos públicos 40 parentes, inclusive a própria mulher, Elena, que exigiu 40 moradias e um farto estoque de peles e jóias. A Sra. Ceausescu, conhecida oficialmente como "a melhor mãe que a Romênia poderia desejar", não esbanjava instinto maternal. "Os vermes nunca se satisfazem, não importa quanta comida recebam de nós", disse ela quando os romenos se revoltaram contra a escassez de gêneros provocada pela má administração do marido. Em casa, gravava as conversas dos filhos para se assegurar de sua lealdade.

A proibição do aborto por Ceausescu visava a alcançar um de seus maiores objetivos: fortalecer rapidamente a Romênia através de um boom demográfico. Até 1966, a Romênia praticara uma das políticas mais liberais do mundo com relação ao aborto. Essa era, com efeito, a principal forma de controle de natalidade vigente, com cinco abortos para cada nascimento com vida. Agora, praticamente da noite para o dia, o aborto estava proibido, salvo para as mães de mais de quatro filhos e as ocupantes de cargos graduados no Partido Comunista. Proibiram-se, ao mesmo tempo, todos os métodos anticoncepcionais e a educação sexual. Agentes federais sarcasticamente apelidados de Polícia Menstrual abordavam regularmente as mulheres em seus locais de trabalho para submetê-las a testes de gravidez. Uma mulher que passasse muito tempo sem engravidar era obrigada a pagar um alto "imposto de celibato".

Os incentivos de Ceausescu produziram o resultado desejado. Um ano depois da proibição do aborto, o índice de nascimentos na Romênia dobrou. Esses bebês nasceram em um país onde, a menos que se pertencesse ao clã Ceausescu ou à elite comunista, a vida era miserável. Tais crianças, porém, acabariam tendo uma vida especialmente miserável. Comparadas às crianças romenas nascidas apenas um ano antes, as hostes nascidas após o banimento do aborto viriam a se sair pior sob todos os aspectos possíveis: levariam piores notas na escola, teriam menos sucesso no mercado de trabalho e mostrariam, também, mais propensão a se tornar criminosas.

Timişoara, 20 de dezembro de 1989
Timişoara, 20 de dezembro de 1989

A proibição do aborto vigorou até Ceausescu finalmente perder o controle da Romênia. No dia 16 de dezembro de 1989, milhares de pessoas foram para as ruas de Timisoara protestar contra o seu regime corrosivo. Muitos manifestantes eram adolescentes e estudantes universitários. A polícia matou dezenas deles. Um dos líderes da oposição, um professor quarentão, disse mais tarde que fora instigado a protestar, apesar do medo, pela filha de 13 anos. "O mais interessante é que aprendemos com nossos filhos a não temer", disse ele. "A maioria tem entre 13 e 20 anos." Poucos dias depois do massacre de Timisoara, Ceausescu discursou em Bucareste para 100 mil pessoas. Novamente, os jovens mostraram sua força. Silenciaram Ceausescu aos gritos de "Timisoara!" e "Abaixo os assassinos!" Sua hora chegara. Ele e Elena tentaram fugir do país com $1 bilhão, mas foram presos, julgados sumariamente e, no dia de Natal, executados por um pelotão de fuzilamento.

De todos os líderes comunistas depostos nos anos próximos ao colapso da União Soviética, apenas Nicolae Ceausescu enfrentou uma morte violenta. Não se deve esquecer que sua queda foi precipitada em grande medida pela juventude da Romênia - boa parte da qual, se o aborto não houvesse sido proibido, jamais teria nascido.

A história do aborto na Romênia talvez pareça uma maneira estranha de começar a contar a história da criminalidade americana nos anos 90. Mas não é. De uma forma significativa, a história romena do aborto é o avesso da imagem da história da criminalidade americana. O ponto de encontro de ambas foi aquele dia de Natal de 1989, quando Nicolae Ceausescu aprendeu da maneira difícil -com uma bala na cabeça - que sua proibição ao aborto tivera implicações muito mais profundas do que supunha.
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Steven D. Levitt e Stephen J. Dubner, Freakonomics, págs. 119-121.
Filme romeno sobre a experiência do aborto na clandestinidade
* Filósofo.
Fonte:  http://emcioranbr.wordpress.com/2013/10/27/onde-foram-parar-todos-os-criminosos/

Como perder uma chance de ser feliz

Larissa Acosta *

"Enquanto me preparava para sair, coloquei o guarda-chuva na bolsa"
“Enquanto me preparava para sair, coloquei 
o guarda-chuva na bolsa”

Acordei com meu corpo ainda achando que era noite. O despertador silenciava e alguns fracos raios de luz haviam encontrado o caminho para meu quarto pelas frestas da cortina. Mais uma vez, a preocupação antecipou a hora de levantar.

Encarei o teto por alguns minutos. Derramadas ali, minhas angústias manchavam aquela superfície branca e lisa de gesso. Elas escorriam… e pingavam em mim.

Rolei para o lado. Bem que esses problemas podiam grudar nos lençóis e soltar de vez de meu corpo cansado.

Mas não. Eles levantaram comigo e acompanharam meu cambaleado sonolento até a cozinha.

O cheiro do café perfumava aquela manhã e a calma com que eu preparava o desjejum me fazia acreditar que estava vivendo as primeiras horas de um descompromissado sábado. Era bom fingir que acreditava naquilo.

O dia se exibia por trás da janela. Flertei por alguns segundos com aquele exuberante céu. Indeciso, ele ainda não havia resolvido que cor preencheria sua imensidão. Meu coração apertou.

Senti vontade de lamentar.

A poucas horas dali, uma cadeira me esperava no escritório. Todo dia, a necessidade me algemava àquele lugar.

Senti meus problemas me cutucarem no ombro. Havia esquecido por valiosos instantes que eles estavam ali.

“Que inconveniência”, pensei, a testa franzida e o peito cheio de reclamações.

Fechei a cara e o dia. Enquanto me preparava para sair, coloquei o guarda-chuva na bolsa.
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Publicado, originariamente, no Blog Melocotón
Fonte:  http://correiodobrasil.com.br/27/10/2013

domingo, 27 de outubro de 2013

A liberdade é uma só

Tony Bellotto*
 
Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade 
é dar um tiro no pé. 
O bebê de Salomão

A liberdade é uma só e não pode ser retalhada como o bebê de Salomão, aquele que quase foi repartido a golpe de espada entre as duas mulheres que reivindicavam sua maternidade. Estou ao lado dos que se opõem ao artigo do código civil que prevê para biografias a autorização prévia do biografado. A modificação da legislação no sentido de permitir que biografias sejam publicadas sem necessidade de autorizações é inevitável e natural numa democracia que se aperfeiçoa, e a intenção de suprimi-la não causaria celeuma caso o grupo de artistas que forma o movimento Procure Saber não tivesse se manifestado por sua permanência no código civil.

Édipo

A admiração, o respeito e a gratidão que sinto por Roberto, Erasmo, Djavan, Mautner, Chico, Caetano e Gil são incondicionais. Atribuo a eles grande parte da construção da minha visão de mundo, e pesa-me discordar publicamente de suas posições. O que gera discussão é ver aferrados a uma postura conservadora artistas historicamente comprometidos contra a censura e que sempre se pautaram pelas liberdades e ousadias estéticas e comportamentais. O que não justifica sua vilificação por parte da imprensa, tachando-os — de forma desrespeitosa e ressentida — de “censores” intolerantes. Não se pode resumir uma questão relevante a uma simples queda de braço entre celebridades e jornalistas. Não se trata de uma picuinha. Atentemos para não perder o foco do que está em jogo.

Controle absoluto

O ponto central da discussão é a contraposição entre liberdade de expressão e direito à privacidade. Embora reconheça pontos plausíveis na argumentação do Procure Saber, não concordo que para preservar o direito à privacidade seja admissível relativizar ou cercear a liberdade de expressão. Em democracias mais aprimoradas, liberdade de expressão e direito à privacidade caminham juntos, ao passo que, em regimes intolerantes e totalitários, quanto mais se reprime a liberdade de expressão, mais se restringe o direito à privacidade. Querer reprimir a liberdade de expressão em nome da preservação do direito à privacidade é dar um tiro no pé. O controle absoluto da própria história não ocorre numa sociedade livre e democrática. Controle absoluto, só em regimes totalitários, e sempre como primazia do Estado e não dos indivíduos.

Referendo

Em 2005 justifiquei a um amigo meu voto a favor da comercialização de armas de fogo no Brasil: “A liberdade é uma só.” O amigo não se conformava com o fato de um adepto dos princípios da não violência de Gandhi e não afeito a armas de fogo votar a favor de sua comercialização. Segui com minha justificativa: “Quero viver num país livre em que as pessoas tenham liberdade para fazer, dizer e comprar o que bem entenderem.”

É preciso saber viver

Na minha concepção utópica seriam legalizados drogas, aborto e a eutanásia. Voto e serviço militar deixariam de ser obrigatórios. No meu Brasil idealizado, caberia ao Estado, em vez de punir e reprimir, amparar, informar e regular práticas de direito individual e uso e comercialização de substâncias tóxicas dentro das medidas do bom senso e da lei, como já ocorre com tabaco, álcool e algumas formas permitidas de interrupção de gravidez e morte assistida — desligamento de aparelhos em caso de morte cerebral, por exemplo.
Liberdade exige coragem. Numa sociedade livre algum desapego é recomendável, assim como doses cavalares de tolerância.
“Fahrenheit 451”
No romance “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury nos apresenta um futuro sombrio em que livros e pensamento crítico estão banidos da sociedade, num mundo em que opiniões próprias são consideradas antissociais. Entre 10 de maio e 21 de junho de 1933, logo depois da chegada de Hitler ao poder, nazistas organizaram em várias cidades alemãs grandes e festivas queimas de livros. Entre os autores “incinerados” estavam Thomas Mann, Walter Benjamin, Brecht, Musil, Freud, Einstein e Marx. O evento é reconhecido como um dos mais cruéis atentados à liberdade de expressão da História. Livros — mesmo os ruins — simbolizam liberdade de pensamento. Reprimir ou condicionar sua publicação soa como uma ameaça a um princípio fundamental da democracia.
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* Colunista do Jornal o Globo
Fonte: O globo on line, 27/10/2013
Imagem da Interent

Foto da semana!

beato
Beato Martin Martinez Pascual, padre executado durante a Guerra Civil Espanhola aos 25 anos de idade. Ordenado em 15 de junho de 1935, ao eclodir a perseguição religiosa pelos comunistas, Martinez Pascual viveu escondido em casa de amigos e até em uma caverna. Ao saber que seu pai havia sido preso, apresentou-se voluntariamente aos algozes em agosto de 1936, com pouco mais de um ano de sacerdócio. Foi preso e, a caminho do cemitério em um caminhão, morto juntamente com 5 sacerdotes e 9 leigos. Enquanto todos foram mortos pelas costas, quando lhe perguntaram se gostaria de não olhar para os rifles durante a sua execução, respondeu que não. Tudo o que ele queria era abençoar aqueles que o matariam e rezar a Deus para que os perdoassem pela sua morte. Seu único crime era o de ser sacerdote do Altíssimo. Então, perguntaram-lhe se gostaria de dizer algo. Martín respondeu: “Quero somente dar-vos a minha benção para que Deus não leve em conta a loucura que cometereis”.

E então bradou: “Viva Cristo Rei!”

Instantes antes de ser morto, ele sorriu para o fotógrafo que tirou esta última foto. Em seus olhos, se pode ver a coragem e a alegria de um padre fiel.
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Fonte: 

POR QUE LER?

Juremir Machado da Silva*


Fiz esta crônica para ler na abertura da Feira do livro de Camaquã, no Rio Grande do Sul, onde fui, cheio de honra e de alegria, patrono.

*

Resolvo pagar mico. Pode ser estimulante sair da zona de conforto sem sair do bairro. Dou um passeio. Interpelo pessoas e faço uma pergunta simples: por que ler? Tem sol. Faz mais de 20 graus. É primavera. Uma leve brisa empurra as folhas de árvores frondosas. Porto Alegre está linda. Alguns me reconhecem. Outros me olham desconfiados. Uma senhora claudicante puxa a filha, uma moça loura sorridente, pelo braço e “sussurra” alto:

– Só pode ser golpe.

Afastam-se apressadas torcendo o pescoço para ver se não as estou seguindo ou se tem alguém caindo no meu conto. Sim, é um conto. O que estou contando? Uma pequena história da leitura. Quem conta um conto aumenta um ponto. Posso perder alguns. Mas eu estou contando a verdade. O que é a verdade? O que as pessoas contam.

– Por que ler?

– Para se instruir – responde um homem de gravata.

Será culpa da gravata? Temo os homens que nunca se separam das suas gravatas. São seres estrangulados. Podem, um dia, cortarem o nó. Será a gravata que faz o homem de quem estou falando, por volta dos 40 anos, tão sisudo, tão utilitarista, tão preocupado com o resultado? Ele não está errado nem conta mentira. Ler instrui.

– Para me instruir eu estudo – diz uma guria.

– Estudar é ler – persevera o homem.

– É e não é – insiste a guria.

– É ou não é? – empertiga-se o homem da gravata vermelha.

– Ler quer dizer mais do que estudar. A gente lê para sonhar, viajar, fantasiar, ter prazer – explica a moça.

Está de saia vermelha. Comparo a saia dela com a gravata do homem. A blusa dela é branca e com um generoso decote. Valeria escrever uma crônica sobre o abismo que se insinua em direção a territórios encobertos do seu corpo esguio. Não sou um escritor erótico. A minha preocupação é a leitura. Conto só o que se deve contar.

– Leio para viver – é o que me diz uma dama toda de branco cuja idade não pode ser inferior aos 90 anos.

Examino sua figura frágil e vergada. Ele me sorri um sorriso cheio de leituras dos tempos da Editora Globo. Pelos seus olhos passa a mulher de 30 anos de Balzac, passa também uma Odete de Marcel Proust e, se não me engano, se não forço o conto, passa Madame Bovary. Ela vê o que eu vejo nos seus olhos e me olha com “olhos de ressaca”, não a ressaca da Capitu, mas a doce ressaca dos belos anos, que desconheço, mas imagino e já admiro.

– Leio para reviver – ela se corrige.

E se vai. Ainda me olha antes de dobrar a esquina. Penso que viveu, no que poderíamos ter vivido, no que leu. Passa uma gata. Anda na cadência da serpente que dança de Baudelaire, “belle d’abandon”. Penso em abordá-la. Hesito. Ela vai achar que sou um chato, um tarado, um golpista ou um cantador barato. Eu sou apenas um contador vira-lata latino-americano que lê por paixão. Arrisco:

– Por que ler?

– Para iluminar o mundo – ela me responde.

Paro de escrever. Tudo isso eu inventei para ler. Quem conta um conto cai no seu canto. Ler é encantar-se.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista do Correio do Povo
Fonte: Correio do Povo on line, 27/10/2013
Imagem da Internet

Não há chave única para o texto de uma vida

EVANDO NASCIMENTO*
 
 
RESUMO No momento em que as biografias suscitam amplo debate, é importante analisar o interesse cultural de publicá-las. Textos sobre a vida de filósofos e artistas, por exemplo, iluminam aspectos de suas obras, mas, como todo trabalho do gênero, devem ser encarados como uma reinterpretação, e não verdade absoluta. 

Importa aqui refletir e testemunhar sobre o interesse cultural de escrever e publicar biografias hoje. Dada a complexidade da questão, vou recorrer a alguns exemplos que se relacionam sobretudo ao campo da filosofia e da literatura. 

Começarei com um caso que me diz diretamente respeito. Por ter organizado o último evento de que Jacques Derrida participou, o colóquio internacional de 2004 sobre sua obra, no Rio de Janeiro, parceria da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Consulado da França, fui convidado a dar um testemunho para o trabalho biográfico de Benoît Peeters sobre Derrida (1930-2004), que estava se iniciando em 2007. 

Refleti muito sobre o que seria relevante ou não narrar, principalmente por ter convivido com o pensador num momento de grande fragilidade física. A biografia foi publicada em 2010 e recebeu resenha extremamente elogiosa da psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco no "Le Monde". 

Luciana Villas-Boas, então no comando editorial do grupo Record, convidou-me a prefaciar a tradução do livro, cuja edição eu lhe havia recomendado. "Derrida" acabou saindo neste ano, pelo selo Civilização Brasileira. O maior elogio que posso fazer ao livro é que contém muita informação importante mesmo para um estudioso de longa data do autor. 

Peeters realizou uma pesquisa de fôlego durante três anos, lendo uma massa documental gigantesca e entrevistando uma centena de pessoas na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil. É o tipo de abordagem que historiadores, jornalistas, críticos, teóricos e escritores desempenham com competência. 

No entanto, há um episódio no volume bastante desagradável. Trata-se de um relacionamento extraconjugal, mas que era do conhecimento da família de Derrida, bem como de grande parte do meio intelectual parisiense; era, por assim dizer, um segredo de Polichinelo. Peeters poderia tê-lo ignorado, mas preferiu narrá-lo com todas as letras, porém igualmente com grande senso ético. 

Qualquer desconfiança que o leitor possa ter quanto à validade de narrar o episódio se dissipa quando um dos filhos de Derrida conta sua versão dos fatos, com algum sofrimento, mas sem fazer nenhum julgamento moral. Daí se pode concluir que foi muito salutar não omitir essa informação, tanto por fidelidade à história, quanto --em nome dessa fidelidade-- para evitar a hagiografia, ou seja, transformar aquele que foi considerado o filósofo mais influente da segunda metade do século 20 num santo. 

Com isso, tem-se uma noção plena da figura humana de Derrida, situando-a em seu contexto. A história de um grande homem ou de uma grande mulher não é algo estritamente privado, mas um bem a ser compartilhado por todos os agentes culturais. 

CONFISSÕES Do ponto de vista teórico, Jacques Derrida integra o grupo daqueles filósofos que, como santo Agostinho, Rousseau, Nietzsche e Benjamin, em algum momento de seu percurso, narraram as próprias memórias e/ou fizeram íntimas confissões. 

Num de seus textos mais delicados, "Circonfissão" (Zahar), juntando saber e afeto, Derrida reflete, em diálogo com textos de santo Agostinho, sobre o instante em que sua mãe está em coma, após o que virá a morrer. Trata-se de uma elaboração filosófica só comparável, literariamente, ao luto materno de Barthes, consignado no "Diário de Luto" (Martins Fontes), contraface do igualmente autobiográfico "Roland Barthes por Roland Barthes" (Estação Liberdade). 

Rousseau precisou escrever suas "Confissões" (Edipro), entre outras coisas, como um documento de autodefesa contra seus detratores. Benjamin registrou suas memórias em textos autobiográficos de extrema beleza e relevância política, como os de "Rua de Mão Única" (publicado originalmente pela Brasiliense, teve nova tradução neste ano pela Autêntica). 

O que esses casos filosóficos e literários mostram é que, para esses autores, tomar a própria biografia como tema, autobiografando-se, tornou-se matéria indispensável para o trabalho reflexivo e ficcional. Longe de serem registros anódinos, há um entrecruzamento intensivo entre vida e obra. 

Todavia não se trata de um empirismo determinista. Acima de tudo, porque a própria vida nunca se reduz a um mero alinhamento de fatos que podem ser um dia resgatados pelo próprio sujeito ou por um terceiro, o famigerado --e fundamental-- biógrafo, configurando uma identidade monolítica. 

O que em geral não se entende muito bem é que nem mesmo um biógrafo lida com os fatos em si: estes já aconteceram e pertencem ao passado, ainda quando são recentes. O que resta sempre são vestígios, documentos que servem para rastrear os acontecimentos: cartas, documentação pessoal, depoimentos de toda ordem. Mesmo o testemunho autenticado do personagem biografado e o das pessoas que com que ele tiveram contato entram como registros e não como fatos em si. 

Uma bio-grafia (vida + escrita) é, portanto, o texto de uma existência que precisa ser reinterpretado de múltiplas maneiras. 

O problema das biografias oficiais (cognominadas "chapa-branca") é a reivindicação de servirem como fonte exclusiva. São necessárias muitas versões para se chegar à verdade histórica, se jamais isso for possível. Pois, como demonstra Maria Helena Werneck, com sua criteriosa leitura das biografias de Machado de Assis, em "O Homem Encadernado" (Eduerj), cada biógrafo é portador de uma vontade de verdade que nunca se realiza de todo. 

Quem conhece os textos derridianos sabe que seu pensamento é, sobretudo, a desconstrução da metafísica ocidental --do etnocentrismo europeu, mas não só este, de matriz filosófica, que Derrida lê por meio de categorias como "logocentrismo" ou "falogocentrismo" (quando na leitura se incluem questões de gênero). 

Ora, um dos aspectos que o trabalho de Peeters mais ilumina é como o fato de o pensador ser originário de um território dito "periférico" (noção hoje mais do que questionável), a Argélia da época colonial, lhe proporcionou uma visão singular da cultura ocidental. 

Essa é a grande diferença entre a abordagem tradicional da questão biográfica e os estudos mais avançados: a vida de um filósofo ou de um artista jamais deve ser tomada como um conjunto empírico e fechado de ocorrências, mas como uma textualidade a se reinterpretar sob vários ângulos e com toda a liberdade. 

AUTOFICÇÃO Isso se torna mais relevante hoje, quando prolifera no mundo, em particular no Brasil, um procedimento inventivo nomeado "autoficção", por meio do qual vida e obra se nutrem explicitamente, muitas vezes dando margem a conflitos. 

Inaugurada por Serge Doubrovsky nos anos 1970 na França, essa prática tem sido desenvolvida por autores nacionais como Silviano Santiago, João Gilberto Noll, Cristovão Tezza, Ricardo Lísias, Sérgio Sant'Anna e Tatiana Salem Levy. 

Como autor de ficção, recorri a esse motor, mas não sem muitos questionamentos, temendo que ele fosse compreendido como egolatria, e não como um dispositivo perturbador que dificulta a identificação dos limites entre ficção e realidade, levando a transgressão autobiográfica às últimas consequências. Isso ocorre quando, por exemplo, autor, narrador e personagem têm o mesmo nome, como no caso de Doubrovsky. 

O interesse nos cruzamentos entre a obra de um ficcionista ou poeta e sua biografia independe, porém, da explicitação, na literatura, dos fatos da vida de um autor. 

Assinalaria ainda que a história de Clarice Lispector, uma de nossas escritoras mais em evidência no Brasil e no exterior, já conta com três investigações biográficas de peso. 

A pioneira e essencial é a de Nádia Battella Gotlib, "Clarice, uma Vida que se Conta" (Edusp), em que a sequência de uma vida é submetida a refinada leitura em cotejo com escritas ficcionais. A segunda é o trabalho bastante informativo de Teresa Monteiro, "Eu Sou uma Pergunta"(Rocco). A terceira é a do norte-americano Benjamin Moser, "Clarice," (Cosac Naify), que parte de muitas das informações das outras biógrafas, mas desenvolve sua própria análise, pautada também pela obra da autora. 

Ao escrever, dois anos atrás, o ensaio "Clarice Lispector: Uma Literatura Pensante" (Civilização Brasileira), eu me servi pontualmente desses três trabalhos, cruzando-os com questões filosóficas e artísticas. Embora a biografia não fosse meu tema principal, algumas das afirmações que fiz só foram possíveis porque, antes de mim, especialistas realizaram um árduo e inestimável trabalho. 

Por último está o caso, a meu ver, mais significativo quando se fala de biografia, autobiografia e, agora, autoficção. 

Nos anos 1990, a filósofa Sarah Kofman realizou seminários a que assisti na Sorbonne sobre o "Ecce Homo" de Nietzsche, resultando em dois alentados volumes, publicados pela Galilée. Sua abordagem deixava claro como e por que o próprio Nietzsche, diante da inépcia de seus contemporâneos, se viu na obrigação de reler sua obra à luz de sua vida --e vice-versa. 

Embora não fosse biógrafa, Kofman explicita, em sua reflexão, o que o próprio texto de "Ecce Homo" expunha com todas as letras: a vida de um filósofo, a despeito de um antigo dogma em contrário, não tem nada de irrelevante. 

A existência segue em paralelo com os textos de maneira autônoma, mas fornecendo muito mais material para reflexão do que poderia sonhar nossa eventual má vontade em relação ao assunto. 

A desconstrução necessária do clássico gênero da biografia começaria não por desqualificá-la, mas por retirar o estatuto de verdade absoluta de que a maior parte das vezes ela é investida, liberando assim seu valor, o de reinvenção de uma existência. 
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*  É escritor, ensaísta e professor universitário.
Fonte: Folha on line, 27/10/2013
Imagem da Internet: Foto de Evandro Nascimento