segunda-feira, 30 de setembro de 2013

UMBERTO VIAJA NA FICÇÃO E NA REALIDADE





 As muitas histórias e peripécias do funcionário que faz serviços de manutenção da FCM
 
Aliança de chiclete para os noivos, uma volta de três anos com o circo na adolescência, fantasma no hospital. Cordel, comédia, ou realidade? Descontínuo, Humberto Teixeira da Silva emenda suas peripécias cada vez que é chamado para realizar um serviço de manutenção na área de Relações Públicas da Faculdade de Ciências Médicas, segundo o jornalista Edimilson Montalti. Seus argumentos (texto pré-roteiro), pórem, deixam sempre com – como popularmente se diz – a pulga atrás da orelha. Verdade ou ficção? Da forma como se falavam no programa de TV na adolescência: senta que lá vem história.

– Aos 9 anos de idade, minha mãe queimou meus dedos. Porque tive um sarampo muito forte, e ela, achando que eu estivesse morrendo, acendeu vela em minha mão, mas eu via e escutava a conversa. Por outro lado, a gente passava fome e, vendo a preocupação de meus pais, passei a admirar mais o circo; talvez pela vontade de viver no mundo e aliviar a preocupação deles.

Foi então que pensou na possibilidade de um dia pegar carona na boleia do caminhão de uma trupe. Queria ser palhaço. 

Mas na boleia, aos 9 anos, seria difícil. Aos 11, tomou coragem.

– Você não pode ir com a gente, sem seus pais.

Já não sonhava em ser somente de seus pais. Queria ser do mundo. E para o mundo. Conseguiu rodar o Brasil. Sem bilhete, sem pedido, sem desculpa. Mas não na boleia, na carroceria, escondido. Sem medir consequências.

– Isso mesmo, quando tinha 11 anos, chegou um circo. Sei lá, deu vontade. Não foi um “não” para minha mãe. Foi um “sim” para o circo. Aproveitei a distração das pessoas, peguei poucas peças de roupa molhada do varal e coloquei numa sacolinha. Enquanto não me davam a oportunidade de me apresentar como palhaço, comecei a vender balinhas para o público. Foi quando comecei a me virar para viver.

Diz o contador de casos que, não vendo alternativa e nenhuma possibilidade de voltar a Belém, cidade da Paraíba, tão cedo, admitiu-o como assistente de palhaço. E já que queria brincar com a vida, sua e da família, foi fazer graça no picadeiro. 

No circo, aprendeu muito sobre a arte circense, a arte de encenar e tomou gosto por ouvir música clássica:

– Hoje que estou mais assentado, chego a minha casa e ouço música clássica. Também gosto de nostalgia e música romântica. Graças ao circo.

Mãe e pai ficaram sabendo de seu paradeiro somente depois de três anos, quando já tinha 15 anos, e ele bateu à porta com a maior cara lavada. 

– Voltei por impulso. O circo foi para uma divisa da Paraíba com Pernambuco, e eu peguei algumas caronas até chegar a minha casa. Para minha família, eu havia morrido. Fiquei três anos sem dar notícia. Minha mãe chorava e meu pai, ria. Ela não queria mais que eu voltasse, mas ele disse a ela que se eu já havia experimentado, tinha condições de viver sozinho.

Mais seis meses em Belém, para relembrar o que é viver em família, e pé na estrada novamente. Outro circo? Não, não. Dessa vez, tentou girar o Brasil nas cadeiras de uma roda gigante, comendo algodão-doce entre as luzes coloridas do chapéu mexicano e dos carrinhos que se batiam e ouvindo música romântica. Afinal, o que era um parquinho sem os hits românticos da época. 

Para não perder a graça da ficção, não conformado apenas com a assinatura de papéis em cartório, queria viver o ritual de um casamento religioso, com direito a aliança, padre, testemunhas. E filho?
– Sim. Tínhamos 20 anos, e nosso filho tinha três meses. As alianças foram compradas de um “doceiro”, daquelas que vinham grudadas num chiclete. 

Um dos padrinhos, conta Humberto, patrocinou o brinde com caldo de cana.

Coisa de palhaço, ou de contador de histórias? Humberto garante que não, assim como a tentativa de fugir do compromisso.

– Quando fiquei sabendo que ela estava grávida, lembrei que tinha pai e mãe esperando notícias minhas em Belém. Não pensei duas vezes. Mas, como minha irmã morava em Campinas, entrou em contato com meu pai para explicar o motivo de minha viagem. Exigente, ele me mandou de volta para Campinas na hora.

E veio. Sacramentar a união na Capela da Poeirinha, no bairro Rosolém, em Hortolândia, São Paulo. Veio para assumir a família. Trabalhar duro para não faltar nada, até hoje, aos filhos e à esposa, da qual acabou se separando. 

A história com a Unicamp também tem as voltas da boa conversa. Um vaivém que, de acordo com Humberto, terminará na Faculdade de Ciências Médicas, onde aplica tudo o que teve de aprender ao querer fazer carreira solo pelo mundo.

– Aprendi de tudo, principalmente na área de assistência e manutenção em hidráulica, elétrica. Por isso, sempre que um setor está em apuro, faço questão de acompanhar. Aprendi com a faculdade da vida. Como vivia no mundo, não cheguei a concluir o primeiro colegial (ensino médio), mas nunca fiquei sem emprego porque aprendi fazendo. Desde que o auditório da FCM foi inaugurado, faço plantão em eventos, caso ocorra um imprevisto. Seja durante o expediente, seja à noite ou fim de semana. Por isso me aproximei muito do pessoal da área de Relações Públicas. Tenho cursos na área de relações humanas, segurança do trabalho, básico em computação e em eletrotécnica, cabeamento em telecomunicações. Vários pela FCM e alguns antes de entrar na Unicamp.

Tentou fugir do circo, mas este veio atrás dele em Campinas.

– Certa vez, chegou um circo a Campinas, e eu fiz alguns trabalhos para eles. Quiseram me levar, mas minha irmã perguntou se não estava na hora de fixar endereço. Então, não fui.

A imaginação fértil do contador de história se estendia para as brincadeiras com amigos da Guarda Noturna de Campinas, em 1983, em sua primeira passagem pela Unicamp. Na época, a associação responsável pela segurança da Unicamp, e Humberto zelava pelo Instituto de Biologia (IB) no período noturno.

Como forma de conter o próprio medo, no deserto da quase-floresta que circundava o antigo prédio da Biologia, um dos primeiros do campus de Barão Geraldo, adquiriu o “mau” hábito de assustar os colegas. Quem já se perdeu no labirinto da Biologia, como a patrulheira mirim recém-chegada em 1984, ou a zeladora contratada em 1986, pode imaginar como seria circular por aqueles corredores confusos do primeiro instituto da Unicamp.

– Carregava um lençol branco. Naquela época, as pessoas ainda tinham medo de assombração. Mas há quem relate que já viu. Você já ouviu falar? Eu em sempre falei brincando, mas certo dia, uma diretora desceu desesperada do banheiro do auditório por ter visto algo lá.

A julgar pela peripécia, dá para imaginar quem fazia as pessoas acreditar. Até porque, abandonado de vez pelo circo, precisava se alimentar do bom humor enquanto trabalhava, mas sem prejudicar as pessoas. 

– Onde entro, brinco mesmo. E as pessoas aceitam porque só faço brincadeira sadia. Jamais faria algo que prejudicasse o próximo.

Mas enfatiza o gosto das pessoas pelo trágico. Principalmente quando esteve à beira da morte. 

A convivência alegre com os colegas da guarda foi interrompida pela quebra do contrato entre a Unicamp e a empresa de segurança. O rompimento fez com que retomasse o projeto de viajar, mas dessa vez com destino, na poltrona, confortavelmente, porém, sem a delícia de fugir na carroceria do caminhão de circo. O projeto de conhecer o mundo o levou ao Canadá. 

– Fui indicado para permanecer na Unicamp depois do vencimento do contrato com a Guarda, mas ainda tinha aquele gostinho de conhecer outros lugares. Trabalhei em várias empresas, viajei muito, cheguei a ir para o Canadá como pintor industrial de uma empresa de máquinas de celulose. Viajei o Brasil todo, mas no exterior “só” conheci o Canadá.  

Nem o vínculo com as multinacionais fez com que Humberto abrisse mão do bom humor diário. As diversas histórias, algumas até trágicas – como sofrer atentado –, faziam parte da rotina dos amigos, mas a brincadeira não era seu privilégio, pois encontrou mais dois contadores de causos engraçados. Como não podia deixar de ser, o lado empreendedor voltou a ser estimulado, e os três foram fazer free lance em festas e eventos institucionais.

– Ganhamos uma boa grana com isso. Deu para complementar a renda. 

A experiência com manutenção foi adquirida na estrada, ou no ar, e foi trazida para a Unicamp em sua volta, em 1995, como funcionário da FCM, mas prestando atividades no Escritório de Tecnologia (Estec). Em 2002, assumiu o setor de manutenção da faculdade sem dificuldades, garante, pela qualidade do trabalho dos colegas de equipe.

Hoje, para quem optou por viver só, Humberto vive rodeado de amigos, dentro e fora da Unicamp. Afinal, se seguisse, de fato, isolado, iria ter de falar sozinho. Até porque, pelo andar da entrevista, o silêncio não é o que mais o apetece. A não ser quando chega a sua casa, ao fim do dia, e dá voz à música clássica. 

– Agora que tenho 52 anos, estou mais sossegado. Porque nunca fui de parar em casa. Nunca consegui ficar parado. Escolhi me criar no “mundo”, e não me arrependo de nada. No mundo, passei algumas dificuldades, mas menores do que a que passávamos lá em Belém, na Paraíba. Em alguns momentos, me vi sem alguém para me apoiar, mas nunca fui de olhar para trás. Quando quero algo vou até o fim; não sou de ficar em cima do muro. Comecei a vender balas no circo e não precisava mais para viver. Nunca fui de comprar muita roupa. Aprendi muito. Cheguei onde queria. Nunca me envolvi com álcool, droga. Nunca deixei de trabalhar. Há quem duvide de minhas histórias, mas elas aconteceram. 

E então, quem arrisca: realidade ou ficção?
-----------------
Edição de Imagens: Diana Melo
Fonte:  http://www.unicamp.br/unicamp/

Nenhum comentário:

Postar um comentário