terça-feira, 24 de setembro de 2013

UMA PROPOSTA DE REAÇÃO AOS VÍCIOS DIGITAIS

 AP / AP
 Dave Eggers desafia as ortodoxias da era da informação, que impõem publicidade quase total à vida de cada um
Mostrando as entranhas e os locais de abate de animais mortos, "The Jungle" ("A Selva"), livro de 1906 do americano Upton Sinclair, foi um caso raro de romance que mudou a forma como o mundo via a indústria e o comércio. Finalmente, tem-se um livro assim para a época atual - um protesto vívido, eloquente, contra as empresas que vêm nos persuadindo a despejar na internet cada um de nossos pensamentos e ações. "The Circle" tem o potencial de mudar a forma como o mundo vê seu fascínio, viciado e submisso, a todas as coisas digitais.

Nos EUA, os leitores têm que esperar até 8 de outubro para comprar o livro, que no Brasil será lançado pela Companhia das Letras. A questão mais relevante é saber por que foi preciso esperar tanto tempo por um livro que desafia frontalmente as ortodoxias da era da informação. Não é notável que, em menos de dez anos, tornou-se tabu não compartilhar a vida pessoal on-line?

Nas mãos de Eggers, essas complexidades tomam a forma humana de Mae Holland, jovem que começa em um emprego numa empresa do Vale do Silício, chamada The Circle. Situada no futuro próximo, The Circle é a herdeira espiritual e comercial de nossos tempos, uma mistura de Google, Facebook, Twitter, Pinterest e PayPal.

A empresa é administrada por um grupo de executivos extremamente dedicados e empreendedores, do tipo Sheryl Sandberg, atual diretora de operações do Facebook, e fundada por futuristas soturnos, cuja visão do compartilhamento dos conhecimentos de maneira completa e global acaba trazendo consequências nefastas para a democracia, no final do livro.

Como qualquer boa história de horror, a entrada de Mae na empresa parece ser um acontecimento abençoado. Ela se entusiasma com seu status recém-conquistado e fica boquiaberta com a programação de palestras acadêmicas da empresa.

É aí que ela começa a se perder na bocarra devoradora do mundo digital. É solicitada a usar dispositivos que monitoram sua saúde e suas emoções; é pressionada a atualizar constantemente seu status nas redes sociais; e logo lhe pedem para documentar seus movimentos com uma câmera pendurada no pescoço, o que acabará por ter efeitos desastrosos.

O comportamento de Mae se modifica por razões que parecem bem conhecidas. Esses serviços todos - e a promessa de um mundo que gira em torno dos dados digitais - oferecem um valor real. Mas a cultura ficcional de Mae e nossa cultura real deixam pouco espaço para contestação. Optar por não participar da rede é algo visto como uma morte pessoal e profissional.

O Google e o Facebook não atenderam ao meu pedido de comentário. Eggers, mais conhecido por seu livro de memórias "A Heartbreaking Work of Staggering Genius" (em tradução livre, "A obra desoladora de um gênio vacilante"), também declinou um pedido de entrevista.

As situações podem beirar a comédia pastelão, como nesta cena em que Mae pondera seu consumo de informações:

"Na sua segunda tela havia o número de mensagens enviadas por outros funcionários naquele dia, 1.192, e o número dessas mensagens que ela já havia lido, 239, e o número respondido por ela, em média, 220; e pelos outros membros do grupo: 198".

Mas é a tolice do mundo de Mae que dá a "The Circle" seu valor. É um mundo semelhante ao nosso, hoje, o bastante para nos ajudar a enxergar a nós mesmos de uma nova maneira.

"The Circle" também traz outro alerta para o mundo dos negócios: qualquer que seja a utilidade dos dados de hoje, haverá consequências graves quando os dados são reunidos em um círculo completo, que conecta cada centímetro de nossas vidas pessoais, públicas e cívicas.

A advertência aparece com uma cena arrepiante de vigilância on-line. Parece fantasioso, até que nos lembramos do que aconteceu poucos meses atrás, depois do atentado na maratona de Boston, quando algumas pessoas foram falsamente acusadas por "cidadãos investigadores".

O autor não tem pudor de dizer, até de uma maneira escrachada, o que ele julga que isso está fazendo com nossa personalidade e nossa dignidade. Ele até inventa um personagem para dar sermões contra a cultura de informação onipresente do Facebook e do Google: "As ferramentas que vocês criam, rapazes, na verdade fabricam necessidades sociais artificialmente extremas. Ninguém precisa desse nível de contato que vocês estão oferecendo. Isso não melhora nada".

Isso prepara o ponto alto do livro: quando um dos fundadores da empresa, Eamon Bailey, decide atacar as ideias de Mae, aparentemente antiquadas, acerca da vida privada. Aqui Eggers escreve um diálogo de tom orwelliano:

"Compreendo que somos obrigados, como seres humanos, a compartilhar o que vemos e conhecemos. E que todo o conhecimento deve ser acessível democraticamente" [disse Mae.]

"O estado natural da informação é ser livre'.

"Certo".

"Todos nós temos o direito de saber tudo o que pudermos saber. Todos nós possuímos, coletivamente, todo o conhecimento acumulado do mundo".

"Certo", disse Mae. "Então, o que acontece se eu privar alguém, ou todos, de alguma coisa que eu sei? Não estarei roubando do meu próximo, dos outros seres humanos?"

"Sim", disse Bailey, com enfáticos movimentos de cabeça".(...)

"A privacidade é um roubo".

Como romance, "The Circle" não é grande literatura. Mas é uma ótima advertência - e no futuro você ainda vai ouvir essa advertência muito mais vezes. Nessa "Selva" de Eggers, somos nós, e não o gado, que somos anestesiados e levados, sem perceber, para nossa morte.

"The Circle"

Dave Eggers. Editora: Knopf. 504 págs., US$ 16,77
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Fonte: Valor Econômico on line, 24/09/2013
Reportagem por Por Dennis K. Berman | The Wall Street Journal

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