sábado, 24 de agosto de 2013

Refletindo sobre a morte: aborto, infanticídio e eutanásia

JOSÉ ROBERTO GOLDIM*

As questões sobre o direito à interrupção da vida humana talvez estejam entre os pontos mais controversos do pensamento de Singer, já marcado pelo signo da polêmica

Peter Singer é um exemplo de intelectual engajado, pois mantém uma sólida produção acadêmica e um intenso ativismo social. Isto tem lhe rendido inúmeros reconhecimentos e problemas. Mas uma de suas maiores polêmicas, talvez, tenha sido a reflexão sobre a morte, que inicia na possibilidade da adequação da prática de infanticídio. No livro Ética Prática, Singer analisa o tema ao refletir sobre o desenvolvimento do embrião, do feto e do recém-nascido, defendendo que a questão não está em ter nascido ou não, mas sim em ter ou não consciência de si.

Questionando fortemente a santidade da vida humana como base do seu raciocínio, Singer afirma, também, que a aceitação do critério de morte encefálica é uma ruptura com a perspectiva de santidade da vida humana, pois neste caso um ser humano deixa de ser reconhecido como uma pessoa.

Já sobre o tema da eutanásia, Singer diferencia o procedimento voluntário, do involuntário e do não voluntário, defendendo a eutanásia voluntária como exercício da autonomia pessoal, que visa a reduzir um sofrimento intolerável.

Para introduzir a reflexão, talvez seja interessante resgatar uma importante questão linguística apontada por Giorgio Agamben, que permaneceu esquecida por muito tempo. O conceito de Vida, do grego, pode ser associado a duas palavras: Zoé e Bios. Zoé era utilizada para caracterizar a vida biológica em si, o estar vivo. Bios, por outro lado, caracterizava a vida política, a relação entre as pessoas, o estar no mundo. Sendo assim, no caso do critério encefálico, o estabelecimento da morte de uma pessoa se associa a Bios e não a Zoé.

A necessidade de ter o adequado entendimento sobre esta diferença entre a vida e o viver, na perspectiva da ética e da bioética, surgiu com a realização de procedimentos como a reanimação cardiorrespiratória, a fecundação in vitro e os novos métodos diagnósticos.

A pergunta que surgiu quando dos primeiros procedimentos de reanimação era sobre o status do paciente antes e depois da sua realização. O paciente era reanimado porque tinha sofrido uma parada cardiorrespiratória, considerada morte, mas era reanimado justamente por este mesmo motivo. O papa Pio XII chegou a se manifestar a este respeito, afirmando que “a caracterização da morte é um ato médico”. Não é a vida que cessa, mas sim o viver.

Na área da reprodução assistida esta questão é colocada de forma inversa: a partir de quando o viver começa em uma vida já existente? Neste sentido, a produção de embriões em número superior aos que seriam transferidos para o útero de uma mulher gerou muitas controvérsias, especialmente acerca do status destes embriões: eles são reconhecidos como sendo humanos, mas como reconhecê-los como pessoas?

Inúmeros autores, incluindo Peter Singer, reconhecem que um dos fatores que distinguem as pessoas dos demais seres vivos é a possibilidade de terem uma biografia, uma história social. Este era o argumento utilizado para enquadrar um ser humano na categoria de pessoa, ao preencher o critério de nascer com vida. Com o advento das novas técnicas diagnósticas de imagem é possível saber o sexo dos bebês antes do parto, permitindo caracterizar melhor um ser antes indiferenciado e reconhecer, propriamente, a face deste bebê. Ao fazer isso, surge a identidade do outro ainda não nascido, muitas vezes recebendo já o seu nome e sendo esta imagem utilizada no seu álbum de fotos. Isto já é o início de sua biografia, ainda que na perspectiva de outras pessoas e não na sua própria.

Mas o que mais impacta no raciocínio de Singer sobre este tema são as comparações entre o bebê recém-nascido com outros animais adultos. Para ele, os segundos mereceriam mais proteção do que os primeiros. Em texto recente, de fevereiro de 2013, Peter Singer inicia dizendo: “o progresso moral de uma sociedade pode ser julgado pela maneira como ela trata os seus membros mais fracos”. Este é um ponto a ser refletido no sentido mais amplo de sua abrangência e repercussão.

Voltando a reflexão para a eutanásia, cabe mencionar que tal procedimento, quando involuntário, foi analisado brevemente por Singer, pois o próprio autor caracteriza esta situação como muito rara. A Associação Médica Mundial tem reiterado a sua posição contrária à eutanásia voluntária, pois poderia abrir possibilidade de um alargamento de sua utilização. E sobre a eutanásia não voluntária, aquela realizada em pessoas que nunca expressaram ou tiveram a possibilidade de expressar o seu desejo com relação a este tipo de procedimento, é onde se enquadram os bebês muito doentes, as pessoas que nunca tiveram vida de relação ou os pacientes que estão sem condições neurológicas para decidir. Esta discussão, quando envolve bebês, em muito se aproxima daquela sobre infanticídio. E em relação aos pacientes em estado vegetativo permanente, Singer os qualifica como estando vivos biologicamente, mas não biograficamente; ou seja, a morte como procedimento poderia ser considerada como sendo adequada em termos do viver.

A eutanásia e o suicídio assistido, que diferem em termos de quem realiza a ação de terminar com a vida, são temas atuais que devem ser discutidos em seus múltiplos aspectos. Em ambos, a intenção é abreviar a vida, mas a questão central é refletir se as pessoas têm o poder de dispor ou não das suas próprias vidas.

Por seu pensamento, Singer passou a ser hostilizado como um defensor da eugenia e da eliminação de doentes. Mas ele buscou estabelecer a diferença entre o seu pensamento e a utilização equivocada da palavra eutanásia para as práticas de extermínio de pessoas doentes ou portadoras de deficiências, que se baseavam na justificativa de que existem “vidas que não merecem ser vividas”.

Em outro livro, Rethinking Life and Death, Singer propôs uma atualização para os mandamentos utilizados para organizar a vida em sociedade. Para ele, a redação que estabelece que devemos tratar todas as vidas humanas com o mesmo valor, deveria ser substituída por uma que reconhece que o valor da vida humana varia. Ou seja, a proposta de nunca tirar intencionalmente uma vida humana inocente deveria ser entendida como ter que assumir a responsabilidade pelas consequências de suas decisões. Sendo assim, o antigo mandamento deveria ser reinterpretado como o dever de respeitar o desejo das pessoas de viver ou de morrer. E, finalmente, a ideia de que devemos tratar todas as vidas humanas como sendo sempre mais preciosas do que qualquer vida não humana seria substituída pela não discriminação com base na espécie.
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*Biólogo, chefe do Serviço de Bioética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor de Bioética da UFRGS e da PUCRS
Fonte: ZH on line, 24/08/2013

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