terça-feira, 25 de junho de 2013

Um rio que passou em nossa vida

Arnaldo Jabor*
À primeira vista, essas manifestações pareciam uma provocação anárquica, sem rumo. Muitos acharam isso, inclusive eu. Nós temos democracia desde 1985; mas 'democracia' tem de ser aperfeiçoada, senão, decai. Entre nós tudo sempre acabou em pizza, diante da paralisia dos três poderes. O Brasil parecia desabitado. De repente, reapareceu o povo. Parecia um mar.

Acordou uma juventude calada há 20 anos, uma juventude que nascia enquanto o Collor caía... Isso pode ser o início de uma 'primavera brasileira'. Contra ditadores? Em parte sim, uma ditadura difusa, ditada por entendimentos silenciosos que formam uma rede de interesses mutuamente atendidos. Nossa rede corrupta tem uma lógica complexa, mas sólida, em que a perversão pavorosa do Congresso se soma à incompetência tradicional dos petistas e sindicalistas do Executivo e um STF querendo acordar, sob uma chuva de embargos. Tudo atende aos interesses dos canalhas. Nossa rede de escrotidões é muito funcional. Sempre que se abre uma porta, damos com uma outra fechada. O atraso é muito bem planejado. O Brasil é o país mais bem 'desorganizado' do mundo. 

Subitamente, o povo reapareceu. Andava muito sumido, como se a sociedade não existisse mais. 

Nossa opinião pública era queixosa - reclamava muito e agia pouco. Agora, mudou. Os jovens estão com a maravilhosa sensação do Poder. Agora esse movimento tem de proteger o imenso poder de influência que conquistou. 

Mas, sutilmente, essa vitória pode ser apagada pouco a pouco, com a solerte esperteza do Executivo e do Legislativo. Vocês repararam que o governo central, na fala de Dilma na TV, está 'encantado' com a democracia? Prefeitos, governadores, todos fascinados com a democracia. Todos (de nariz meio torcido) elogiam a 'juventude que despertou', etecetera e tal. Mas, no fundo, ou melhor, na cara, só pensam em recuperar Ibopes e em sossegar os leões. Muitos políticos com culpa no cartório estão ansiosos: "Meu Deus, não se pode nem roubar em paz! Precisamos apoiar isso tudo para que tudo continue como sempre foi", pensam. Quase todos que assinaram o apoio à PEC 37 - a PEC da impunidade - têm ficha suja. São mais de 200. 

Todo mundo apoia a democracia - que legal!... - mas ninguém explica, por exemplo, por que a Petrobrás comprou a refinaria no Texas por mais de um bilhão de dólares, se o valor real é de apenas 100 milhões? Por quê? Por que a ferrovia Norte-Sul, desmoralizada há 27 anos pela Folha de S. Paulo, que anunciou o resultado da concorrência dois dias antes? E não está pronta ainda, mesmo depois de descoberta a roubalheira da Valec. E a volta da inflação, que causa arrepios nos economistas do mundo todo, menos no trêmulo e incompetente Mantega? E Belmonte? E a refinaria com os fascistas da Venezuela, que não pagam? E o canal do Rio S. Francisco parado? E as privatizações envergonhadas que não saem? E corruptos impunes? E o Estado quebrado, cheio de gastos de custeio, sem dinheiro para investir? E as alianças com partidos ladrões que impedem qualquer reforma? E a preocupação somente eleitoral? E o custo dos estádios? E a infraestrutura morta? 

Ninguém explica. A Dilma tinha de explicar, em vez de tentar acalmar a "massa atrasada". Lula, o eterno e nefasto presidente, já disse que "Tudo bem; quem nos apoia não está se manifestando - são os miseráveis do Bolsa-Família" (que com inflação crescente vai murchar para vinténs). Foi o mesmo que ele disse na cena do dossiê dos 'aloprados', lembram?: "Não tem 'pobrema', pois o povão pensa que 'dossiê' é doce de batata". 

Vamos botar a bola no chão: O PT está no governo há dez anos e é o responsável principal por esta cag... catástrofe pública. Ou não é?

Mas o que pode acabar com o Movimento? O vandalismo, sem dúvida. O vandalismo se explica pela infiltração de vagabundos, punks e marginais, aproveitando que a polícia não pode matar. Mas também há o vandalismo proposital, programado por radicais, para desclassificar o Movimento. Será que alguns bolcheviques estão seguindo a lição de Lenin, quando escreveu como desqualificar movimentos de rua: "Infiltrem nossos homens em outros partidos e (...) dividam a população em grupos antagônicos, estimulando divergências entre eles sobre questões sociais".

E aí? O que pode esvaziar o Movimento?

Bem, em primeiro lugar, o vazio, a abstração, a luta pela luta, o horror da política. Se virar um movimento genérico demais, tudo acaba. Não podem achar que podem mudar o País num 'passe livre de mágica'. Não podem. 

Não podem se deslumbrar com o sucesso. O fundamental é alguma humildade no processo todo. 

É necessário lutar contra causas concretas, pontuais. 

É preciso a organização de lideranças, sim, assumidas, inclusive com células nos Estados, todos conectados para agir, sempre em cima de um tema. 

A sensação de poder é maravilhosa, mas não pode levar a sentimentos de onipotência, a um excesso de otimismo. Tem de ser um movimento de vigilância, um poder paralelo e discreto que se articula rapidamente para protestos pontuais. 

Os partidos que existem têm de ser questionados em seus malfeitos e em seus programas oportunistas. 

Creio que este movimento jovem tem de ser uma periferia crítica permanente, sem ser um partido tradicional, mas uma vigilância no dia a dia de Brasília.

O Movimento tem de representar a sociedade. Uma espécie de Ministério Público sem gravata.

Outro perigo que ronda os jovens é o tempo. Sim, os corruptos trabalham com o tempo. São todos cobras criadas que contam com o cansaço dos manifestantes jovens, esperando a hora em que a mamãe chama para o jantar. Contam também com o tédio da população. Eles adoram a falta de memória e os dias que passam. Já adiaram expressamente a votação da emenda PEC 37, para momentos 'mais calmos' - esqueceram que a votação será nominal, logo, anotaremos todos os inimigos declarados.

Se essas provações forem superadas por jovens sem experiência política, eles terão nos dado uma grande lição: "Temos democracia; agora, temos de formar uma República".

Se não, tudo será apenas um rio que passou em nossa vida e... sumiu.
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* Jornalista. Cineasta. Colunista do Estdão.
Fonte: Estadão on line, 25.06.2013
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