terça-feira, 18 de junho de 2013

Estudos pornográficos

João Pereira Coutinho*
 
Se escolas e editoras querem dar à pornografia estatuto intelectual, não passo de um lamentável dinossauro 

A atriz Sylvia Kristel morreu em outubro passado. Senti a notícia como uma perda pessoal. E nostálgica. 

Lembro-me bem: teria uns 12 ou 13 anos quando a conheci. Moça simpática. Foi na casa de um colega de turma que, por razões nunca suficientemente explicadas, conseguira cópias em VHS dos filmes "Emmanuelle". 

Todas as sextas à tarde havia uma peregrinação à casa do cavalheiro. E ele, qual um Grande Gatsby pré-adolescente, recebia os convidados no portão e depois cobrava ingressos à pequenada. Com o dinheiro do lanche, era possível assistir ao filme e, por gentileza do anfitrião, beber ainda um copo (de limonada). No final, os cinéfilos abandonavam a sala e caminhavam rápido na mais profunda clandestinidade. Rumo a casa. 

Assim foi durante semanas: enquanto os pais imaginavam as crianças em estudos demorados, as crianças dedicavam-se a outro tipo de aulas. Até o dia em que um delator resolveu contar o esquema à diretora da escola depois de ter sido barrado na entrada daquele clube privado. Os pais foram avisados. Houve castigos para todos os gostos e feitios --e eu, com as orelhas a arder, despedi-me de Sylvia Kristel com um beijo imaginário.
Claro que, olhando para trás, os filminhos de "Emmanuelle" eram quase exemplos líricos de castidade. Sobretudo quando comparados com a pornografia que abunda na internet e que tem provocado discussão séria na Grã-Bretanha. 

Não será hora de ter uma profissional da indústria a ministrar aulas de educação sexual nas escolas? Aulas teóricas, entenda-se, não práticas. A sugestão foi feita por Mark Slater, 59, responsável por um colégio de elite em Cambridge. 

Diz o prof. Slater ao "Sunday Telegraph" que as crianças estão cada vez mais expostas a cenas violentas e, pormenor fundamental, irreais. Uma professora de educação sexual com conhecimento de causa poderia explicar a natureza fantasiosa das cenas, preparando os jovens para vidas de maior respeito mútuo --e, acrescento eu, sem lesões físicas desnecessárias. 

O prof. Slater não está sozinho nessa batalha. A editora Routledge, que em tempos mais bárbaros editava Karl Popper ou Friedrich Hayek, prepara-se também para lançar a primeira revista científica sobre estudos pornográficos. "Porn Studies", eis o título. Objetivo? 

Estudar o fenômeno da pornografia "sob todos os ângulos", uma ambição que já rendeu polêmica entre a comunidade científica, e não necessariamente pelas razões mais literais. Conta o jornal "Observer" que vários estudiosos da matéria criticam a revista por adotar um tom neutro sobre o assunto. 

Pornografia é coisa séria. Ela é responsável pela degradação das mulheres, pelo comportamento violento dos homens e, atendendo ao funcionamento hormonal da espécie, talvez pelo aquecimento global. 

Aliás, por falar em aquecimento global, os críticos da revista comparam o conselho científico da dita aos "negacionistas climáticos" que não concordam com o sr. Al Gore sobre o destino dos glaciares. A polêmica promete continuar. 

Não tenciono contribuir para ela. Se as melhores escolas e editoras entendem que é sua função conceder à pornografia estatuto intelectual respeitável, eu não passo de um lamentável dinossauro. Que, logicamente, nasceu no tempo errado. 

No distante século 20, eu e os meus amigos éramos uns incorrigíveis devassos. Hoje, no século 21, teria sido possível evitar todos os castigos. E sustentar, com cara séria e erudita, que aquelas tardes passadas com a sra. Sylvia Kristel eram visitas de campo --ou, melhor ainda, deveres de casa. 

Imagino mesmo os nossos pais, cobertos de orgulho, comentando uns com os outros o amor dos filhos pelo estudo e os dias inteiros passados no quarto. 

P.S.: Leitores, eu amo vocês. Depois do artigo "O colunista apodrece", da semana passada, recebi centenas de e-mails com votos de melhoras e alguns conselhos sábios para não apodrecer precocemente. Prometo seguir alguns, embora confesse que a opção vegetariana ainda não está no meu cardápio. A situação não é tão desesperada. De resto, uma palavra em especial para os médicos que partiram de vários sintomas --pedra no rim, queda de dente, dores musculares etc.-- para chegarem a diagnósticos vários, alguns deles contraditórios. Na qualidade de hipocondríaco, o meu muito obrigado.
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* Colunista
Fonte: Folha on line, 18/06/2013
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