domingo, 30 de junho de 2013

Manuel Castells: ‘O povo não vai se cansar de protestar

 
Na rua está “a sociedade em sua diversidade”, diz Castells
Foto: Luiz Munhoz/FatoPress/Folhapress/10-6-2013
 Sociólogo afirma que ausência de líderes é uma das qualidades dos protestos no Brasil e diz que país 
vai influenciar países vizinhos

Para o sociólogo catalão Manuel Castells, boa parte dos políticos é de “burocratas preguiçosos”. Ele é um dos pensadores mais influentes do mundo, com suas análises sobre os efeitos da tecnologia na economia, na cultura e, principalmente, no ativismo. Conhecido por sua língua afiada, o espanhol falou ao GLOBO por e-mail sobre os protestos.

Os protestos no Brasil não tinham líderes. Isso é uma qualidade ou um defeito?
Claro que é uma qualidade. Não há cabeças para serem cortadas. Assim, as redes se espalham e alcançam novos espaços na internet e nas ruas. Não se trata, apenas, de redes na internet, mas redes presenciais.

Como conseguir interlocução com as instituições sem líderes?
Eles apresentam suas demandas no espaço público, e cabe às instituições estabelecer o diálogo. Uma comissão pode até ser eleita para encontrar o presidente, mas não líderes.

Como explicar os protestos?
É um movimento contra a corrupção e a arrogância dos políticos, em defesa da dignidade e dos direitos humanos — aí incluído o transporte. Os movimentos recentes colocam a dignidade e a democracia como meta, mais do que o combate à pobreza. É um protesto democrático e moral, como a maioria dos outros recentes.

Por que o senhor disse que os protestos brasileiros são um “ponto de inflexão”?
É a primeira vez que os brasileiros se manifestam fora dos canais tradicionais, como partidos e sindicatos. As pessoas cobram soberania política. É um movimento contra o monopólio do poder por parte de partidos altamente burocratizados. É, ainda, uma manifestação contra o crescimento econômico que não cuida da qualidade de vida nas cidades. No caso, o tema foi o transporte. Eles são contra a ideia do crescimento pelo crescimento, o mantra do neodesenvolvimentismo da América Latina, seja de direita, seja de esquerda. Como o Brasil costuma criar tendências, estamos em um ponto de inflexão não só para ele e o continente. A ideologia do crescimento, como solução para os problemas sociais, foi desmistificada.

O que costuma mover esses protestos?
O ultraje, causado pela desatenção dos políticos e burocratas do governo pelos problemas e desejos de seus cidadãos, que os elegem e pagam seus salários. O principal é que milhares de cidadãos se sentem fortalecidos agora.

O senhor acha que eles podem ter sucesso sem uma pauta bem definida de pedidos?
Acho inacreditável. Além de passarem por uma série de problemas urbanos, ainda se exige que eles façam o trabalho de profissional que deveria ser dos burocratas preguiçosos responsáveis pela bagunça nos serviços. Os cidadãos só apontam os problemas. Resolvê-los é trabalho para os políticos e técnicos pagos por eles para fazê-lo.

Com organização horizontal, esse movimento pode durar?
Vai durar para sempre na internet e na mente da população. E continuará nas ruas até que exigências sejam satisfeitas, enquanto os políticos tentarem ignorar o movimento, na esperança que o povo se canse. Ele não vai se cansar. No máximo, vai mudar a forma de protestar.

Outra característica dos protestos eram bandeiras à esquerda e à direita do espectro político. Como isso é possível?
O espaço público reúne a sociedade em sua diversidade. A direita, a esquerda, os malucos, os sonhadores, os realistas, os ativistas, os piadistas, os revoltados — todo mundo. Anormal seriam legiões em ordem, organizadas por uma única bandeira e lideradas por burocratas partidários. É o caos criativo, não a ordem preestabelecida.

Há uma crise da democracia representativa?
Claro que há. A maior parte dos cidadãos do mundo não se sente representada por seu governo e parlamento. Partidos são universalmente desprezados pela maioria das pessoas. A culpa é dos políticos. Eles acreditam que seus cargos lhes pertencem, esquecendo que são pagos pelo povo. Boa parte, ainda que não a maioria, é corrupta, e as campanhas costumam ser financiadas ilegalmente no mundo inteiro. Democracia não é só votar de quatro em quatro anos nas bases de uma lei eleitoral trapaceira. As eleições viraram um mercado político, e o espaço público só é usado para debate nelas. O desejo de participação não é bem-vindo, e as redes sociais são vistas com desconfiança pelo establishment político.

O senhor vê algo em comum entre os protestos no Brasil e na Turquia?
Sim, a deterioração da qualidade de vida urbana sob o crescimento econômico irrestrito, que não dá atenção à vida dos cidadãos. Especuladores imobiliários e burocratas, normalmente corruptos, são os inimigos nos dois casos.

Protestos convocados pela internet nunca tinham reunido tantas pessoas no Brasil. Qual a diferença entre a convocação que funciona e a que não tem sucesso?
O meio não é a mensagem. Tudo depende do impacto que uma mensagem tem na consciência de muitas pessoas. As mídias sociais só permitem a distribuição viral de qualquer mensagem e o acompanhamento da ação coletiva.
Foto:  Luiz Munhoz/FatoPress/Folhapress/10-6-2013
Reportagem por  Maurício Meireles (Email · Facebook · Twitter)

Alternativa

 Luis Fernando Veríssimo*
Envelhecer é chato, mas consolemo-nos: a alternativa é pior. Ninguém que eu conheça morreu e voltou para contar como é estar morto, mas o consenso geral é que existir é muito melhor do que não existir. Há dúvidas, claro. Muitos acreditam que com a morte se vai desta vida para outra melhor, inclusive mais barata, além de eterna. Só descobriremos quando chegarmos lá. Enquanto isto vamos envelhecendo com a dignidade possível, sem nenhuma vontade de experimentar a alternativa.

Mas há casos em que a alternativa para as coisas como estão é conhecida. Já passamos pela alternativa e sabemos muito bem como ela é. Por exemplo: a alternativa de um país sem políticos, ou com políticos cerceados por um poder mais alto e armado. Tivemos vinte anos desta alternativa e quem tem saudade dela precisa ser constantemente lembrado de como foi. Não havia corrupção? Havia, sim, não havia era investigação para valer. Havia prepotência, havia censura à imprensa, havia a Presidência passando de general para general sem consulta popular, repressão criminosa à divergência, uma política econômica subserviente e um "milagre" econômico enganador. Quem viveu naquele tempo lembra que as ordens do dia nos quartéis eram lidas e divulgadas como éditos papais para orientar os fiéis sobre o "pensamento militar", que decidia nossas vidas.

Ao contrário da morte, de uma ditadura se volta, preferencialmente com uma lição aprendida. E, se para garantir que a alternativa não se repita, é preciso cuidar para não desmoralizar demais a política e os políticos, que seja. Melhor uma democracia imperfeita do que uma ordem falsa, mas incontestável. Da próxima vez que desesperar dos nossos políticos, portanto, e que alguma notícia de Brasília lhe enojar, ou você concluir que o país estaria melhor sem esses dirigentes e representantes que só representam seus interesses, e seus bolsos, respire fundo e pense na alternativa.

Sequer pensar que a alternativa seria preferível — como tem gente pensando — equivale a um suicídio cívico. Para mudar isso aí, prefira a vida — e o voto.
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* Jornalista. Escritor.
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Demofobia em marcha

Roberto Romano*
Norberto Bobbio, em artigo muito lúcido, mostra que a democracia surge dos choques entre a praça e o palácio. Ele cita Guicciardini: "Entre o palácio e a praça existe uma densa névoa ou um muro tão grande que pouco sabe o povo sobre o que fazem os governantes e por que o fazem, como se o assunto dos dirigentes fosse algo feito na Índia". Atualizando a reflexão, Bobbio adianta que ainda não contamos com uma eficaz sociologia da praça. Manifestações de rua significam a multidão de pessoas indignadas com os palácios. A praça reúne muitos indivíduos, a sua forma aberta permite livres discussões. Quem para ela se dirige tem alvo comum: reivindicar direitos, ouvir líderes. "Na democracia representativa (...) a praça é a mais visível consequência do direito de reunião ilimitado quanto ao número de pessoas que possam exercitá-lo juntas e ao mesmo tempo" (Bobbio). Finaliza o pensador: "Palácio e praça são expressões polêmicas para designar, respectivamente, governantes e governados, sobretudo o seu relacionamento de incompreensão recíproca, estranheza, rivalidade, ainda hoje como no trecho de Guicciardini. (...) Vista do palácio a praça é o lugar da liberdade licenciosa; visto da praça o palácio é o lugar do poder arbitrário. Se cai a praça, o palácio também é destinado a cair" (Il Palazzo e la Piazza).

No ofício de analisar as formas de atuação coletiva, leio com frequência políticos, colegas da universidade, estudantes, sindicalistas, profissionais da imprensa. Fiquei preocupado com as visões da praça expressas em várias entrevistas e textos. O foco dado à baderna e ao vandalismo diminuiu muito a percepção do importante fenômeno. Terra onde o Estado domina a sociedade e se põe a serviço de setores diminutos nas políticas públicas, o Brasil demonstra, desde sua origem histórica, a demofobia que preside o absolutismo. A certidão política de batismo vem do século 16, quando a razão de Estado está no auge. Para os governantes e intelectuais que defendem a razão estatal, o mundo divide-se, como expõe Guicciardini, citado por Bobbio, entre quem merece respeito, porque vive nos palácios, e a plebe que habita a praça. Tal assimetria estabelece uma divisão na ordem coletiva (acima os dirigentes, abaixo os "cidadãos comuns"). Ela é a marca dos Estados que ainda não conhecem os efeitos das revoluções democráticas. Neles a multidão dos que pagam impostos obedece sem questionar. E quem controla os impostos manda sem prestar contas. A força democrática de um país é medida pelo vigor, nele, da prática cunhada pelos revolucionários ingleses, a accountability. As revoluções modernas ensinaram aos soberanos lições básicas de responsabilidade.

Os conservadores atacam os "simples cidadãos", neles vendo ameaças ao poder estabelecido. Eles exorcizam o "perigo" representado pela soberania popular. Sempre que o elo político é invocado, do Renascimento ao século 21, o povo, com seus conflitos, é posto fora dos escalões estatais porque, na lição platônica, ele segue o contrário da harmonia. François Hotmann, jurista e autor do tratado intitulado Franco Galia, teme o Her omnes (Senhor Todo Mundo), apelido dado por Lutero à massa. Os documentos gerados na literatura grega ou romana mostram desconfiança no povo. Este, para os latinos, é o "populo exturbato ex profugo", o "vulgus credulum, imprudens vel impudens, stolidum", etc. (Zvi Yavetz: La Plèbe et le Prince). "O povo", diz Etienne de la Boétie, "não tem meios para bem julgar porque é desprovido do que fornece ou confirma o bom juízo, as letras, os discursos e a experiência. Como não pode julgar, ele acredita nos outros. A multidão acredita mais nas pessoas do que nas coisas, ela é persuadida pela autoridade de quem fala, e não pelas razões ditas" (Mémoires touchant l'Édit de Janvier 1562).

Gabriel Naudé, teórico do maquiavelismo que norteia o governo de Mazarino, diz ser preciso cautela com a "fera de múltiplas cabeças, vagabunda, errante, louca, estulta, sem freio, sem espírito nem julgamento. O juízo do povo sempre é tolo e seu intelecto, fraco. A populaça, fera cruel, enfurece e morde com frequência. Ela odeia as coisas presentes, deseja as futuras, celebra as pretéritas, sendo inconstante, sediciosa, briguenta, famélica de boatos, inimiga do repouso e da tranquilidade". A massa, arremata, é "inferior às feras, pior do que as feras e mil vezes mais tola dos que as feras" (Considérations Politiques sur les Coups d'État).

Donoso Cortés, fonte de terríveis governos, não enxerga na pobreza a origem das massas revoltas. A inveja e o desejo de poder atravessam a praça, açulada pelos demagogos: "O germe revolucionário reside nos desejos superexcitados da multidão pelos tribunos que a exploram e beneficiam. 'Sereis como os ricos', vejam aí a fórmula das revoluções socialistas contra as classes médias. 'Sereis como os nobres', vejam aí a fórmula das revoluções das classes médias contra os nobres. 'Sereis como os reis', vejam aí a fórmula das revoluções dos nobres contra os reis". As manifestações que abalam o Brasil seriam expressões do ressentimento invejoso conduzido por ambiciosos e delirantes.

O juízo negativo sobre a praça gerou o Brasil de Vargas, de 1964 e do AI-5. A esquerda clássica ostenta idêntica ojeriza à rua. Basta recordar a doutrina leninista sobre a "consciência vinda de fora". No Partido, máquina feita para derrubar o Estado burguês e construir a ditadura "proletária", intelectuais superiores definiriam o destino das massas. Caso contrário, Sibéria nelas.

É tempo de mudar a visão da praça. É tempo de saudar a democracia, apesar dos seus percalços. É tempo de recusar regimes plebiscitários que reduzem a praça ao monossilábico "sim", ou "não". É tempo de iniciar o diálogo democrático. A etimologia e a semântica proclamam: democracia é poder do povo, não de privilegiados e palacianos operadores do poder estatal. Se cair a praça, ensina Bobbio, tombam os palácios. E o remédio é oferecido por Donoso Cortés: a ditadura.
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* Roberto Romano, professor de ética e filosofia na Unicamp, é autor, entre outros livros, de 'O Caldeiraão de Medeia' (Perspectiva)   
Fonte: Estadão on line, 30/06/2013
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Revolta do vintém

JOSÉ DE SOUZA MARTINS*
 
Propor uma Constituinte neste momento é propor um golpe contra a Constituição, que é boa, abrangente e inovadora. O povo não foi às ruas pedir um golpe de Estado. Foi à rua pedir o cumprimento da lei. Convocar um plebiscito para votar as políticas a serem adotadas em relação aos problemas levantados agora pelas multidões pode ser um sinal de fraqueza e insegurança. O plebiscito já foi feito, nas ruas. 

O que está acontecendo nestes dias não tem dimensão partidária, a não ser por implicação. Desenrola-se no plano da indignação moral acumulada em anos de abusos contra o interesse público, desdém pelas carências populares e pouco caso pela inteligência da população em obter, processar e compreender a informação cada vez mais acessível a todos. No plano moral, os manifestantes antepuseram a nação aos partidos. O Brasil foi às ruas exigir do governo um projeto de nação e não um projeto de classe social; e políticas para todos, não para facções. 

Cartazes, palavras de ordem, monumentos e edifícios visados, símbolos atingidos, mostram que o Brasil das ruas exige que a política se sujeite à moral e aos bons costumes; que os valores sociais e éticos sejam antepostos aos interesses antissociais da economia escusa e do poder corrupto. O povo foi às ruas para dizer ao governo e à sociedade o que deve vir antes e o que deve vir depois, que a educação, a saúde, os direitos sociais, a vida e o bem-estar de todos, são mais importantes que o futebol monumental, das despesas bilionárias, do espetáculo para inglês ver, mais importantes do que as obras faraônicas e inacabáveis. Tudo indica que a era das esperanças messiânicas e do silêncio cúmplice esteja chegando ao fim. 

Os manifestantes questionaram a política de pão e circo. Fizeram a crítica ruidosa da política de coalizão e cumplicidade, do Estado fragmentado e loteado, dos favorecimentos, do toma lá dá cá, do poder pelo poder. A rua disse aos poderosos que o poder é do povo, que o mandato é representação política e não privilégio de casta, é temporário e precário. 

Eleição, no Brasil, tem sido uma renúncia, a vontade política do povo sequestrada pelos eleitos e pelos partidos, que raramente representam o eleitor de vontades e carências, representando muito mais os grupos de interesse que o instrumentaliza. O poder do lobismo junto aos parlamentares e ao governo confirma essa distorção. O sistema político brasileiro tornou-se um sistema de silenciamentos e cumplicidades. A crítica social foi inviabilizada pelos donos oficiais da verdade, seja a crítica popular, seja a crítica profissional dos especialistas. O cala-boca virou instrumento de dominação. Partidos e movimentos sociais organizados ignoram ou desqualificam as interpretações que não venham de seus próprios quadros. Não há debate. Criou-se no Brasil o mero teatro da participação política e a real exclusão da diversidade e das demandas sociais emergentes, as que não foram capturadas pelo sistema de conivências, cumplicidades e temores. Um extenso silêncio acumula, na verdade, um elenco extenso de demandas sociais não reconhecidas nem pelo governo, nem pelos partidos, nem pelos grupos de mediação que fecharam os canais de comunicação entre o povo e o poder.

Esse sistema político deteriorado está claramente presente na crítica contida nos descontentamentos destes dias. Uma grande massa de silenciados no cotidiano encontrou uma brecha para gritar suas diversificadas e desencontradas demandas e manifestar sua crítica do poder e dos governos. Num regime político baseado em pautas de negociação de grandes quantias e grandes porcentagens, foi uma simples demanda de redução de 20 centavos na tarifa dos ônibus que disseminou a revolta, aglutinou o elenco das pequenas demandas sociais e fez emergir um novo sujeito político, que é o das demandas residuais tratadas como irrelevantes. 

A nova revolta do vintém colocou no centro do processo político brasileiro a fome de palavra e a fome de direitos sociais. Trata-se de uma nova pobreza, a pobreza de direitos, nos abusos que reduziram o transporte público a uma punição, a educação a uma condenação à falta de destino e de futuro, a saúde pública a uma doença. Henri Lefebvre, eminente sociólogo francês, estudioso da revolta estudantil de 1968, foi quem trabalhou teoricamente a revolta dos subterrâneos, a insubmissão das demandas que não foram capturadas pelo poder, a coalização dos resíduos do que não encontrou canal de expressão nos meios políticos e institucionais. Aqui, também, o fato de que as manifestações não se enquadrem em nenhum dos esquemas convencionais de interpretação sugere que estamos em face da irrupção do descontentamento dos que não foram contemplados pelas políticas sociais dos governos. A demagógica e ilusória prioridade aos pobres deixou de lado a classe média e suas demandas justas e cidadãs. Os órfãos de políticas sociais foram às ruas, cercaram os palácios e querem já uma revisão do poder e da concepção de poder.
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* Sociólogo. Escritor.
Fonte: Estadão on line, 30/06/2013
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Beijos e abraços

Luis Fernando Verissimo*
 
O brasileiro é expansivo mas tem um certo pudor de mostrar seus sentimentos. Somos da terra do "dá cá um abraço" mas também temos nossas hesitações afetivas. O meio-termo encontrado é o insulto carinhoso.

- Seu filho da mãe!

- Seu cafajeste!

São dois amigos que se encontram.

- Só me faltava encontrar você. Estragou meu dia.

- Este lugar já foi mais bem frequentado...

Depois dos insultos, os brasileiros se abraçam com fúria. E os sonoros tapas nas costas - outra instituição nacional - chegam ao limite entre a cordialidade e a costela partida. Eles se adoram, mas que ninguém se engane. É amor de homem, estão pensando o quê?

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Quanto maior a amizade, maior a agressão. E você pode ter certeza que dois brasileiros são íntimos quando põem a mãe no meio. A mãe é o último tabu brasileiro. Você só insulta a mãe dos seus melhores amigos.

- Sua mãe continua na zona?

- Aprendendo com a sua.

- Dá cá um abraço!

E lá vêm os tapas.

Um estrangeiro despreparado pode levar alguns sustos antes de se acostumar com a nossa selvageria amorosa.

- Crápula!

- Vigarista!

- Farsante!

- My God! Eles vão se matar!

Não se matam. Se abraçam, às gargalhadas. Talvez ensaiem alguns socos nos braços ou simulem diretos nos queixos. Mas são amigos.

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Os franceses não se abraçam mas se beijam, e não apenas quando estão se condecorando. Mas dois franceses só chegam ao ponto de se beijarem no fim de um longo processo de desformalização do seu relacionamento que começa quando um propõe ao outro que abandonem o "vous" e passem a se tratar por "tu". Até o passo ser dado o cumprimento entre os dois jamais passara de um seco aperto de mãos. 

Os russos se beijam com qualquer pretexto e dizem que a progressão, lá, não é do aperto de mão para o abraço e o beijo mas de beijos protocolares para beijos cada vez mais longos e estalados. 

Os anglo-saxões são mais comedidos e mesmo os americanos, que são ingleses sem barbatana, reagem quando você, esquecendo onde está, ameaça abraçá-los. 

Ninguém mais informal do que um americano, ninguém mais antifrancês na velocidade com que chega à etapa equivalente ao "tu" sem nenhum ritual intermediário, mas a informalidade termina aí. Até o nosso hábito de bater no braço do outro quando se aperta a sua mão, aquela amostra grátis de abraço, eles estranham.

Tapas nas costas, então, nem pensar.
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* Escritor. Cronista da ZH
Fonte: ZH on line, 30/06/2013
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Tecnologia mais destrói do que cria emprego, diz estudo do MIT

 Robôs em centro de distribuição nos EUA; inovações também chegam ao setor de serviços
 Robôs em centro de distribuição nos EUA; inovações também chegam ao setor de serviços
O desenvolvimento tecnológico nos EUA está destruindo empregos em uma velocidade maior do que é capaz de criá-los, segundo estudo do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). 

Ao relacionar os dados de desemprego e de produtividade do país, Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, ambos do instituto, concluíram que novas tecnologias, como robôs e softwares, substituem o trabalho humano, sem criar alternativas de empregos. 

Historicamente, incrementos em produtividade geram desemprego momentâneo. O crescimento proporcionado, no entanto, compensa a perda inicial. 

A partir de 2000, aponta o estudo, isso para de ocorrer: a produtividade continua a crescer, mas a criação de empregos perde força. 

Esse fenômeno explicaria o desemprego em outros países desenvolvidos, como os da zona do euro.
Até os anos 2000, os ganhos de produtividade reduziam a demanda de empregos na indústria, mas os trabalhadores eram absorvidos pelo setor de serviços. 

Agora, as inovações substituem trabalhos corriqueiros nesse setor. Um exemplo é o Kiva, robô usado por empresas de comércio eletrônico em seus centros de distribuição. 

Outra consequência desse fenômeno é o aumento da desigualdade social. O estudo mostra que, desde 1975, a renda média das famílias norte-americanas cresceu em uma proporção muito menor do que o PIB do país. A partir de 2000, esse processo torna-se mais visível. 

"É algo estrutural do capitalismo industrial e que vem assumindo diversas formas ao longo dos séculos, com avanços e recuos. A questão sempre é saber se haverá um ponto intolerável para o sistema, que simplesmente o inviabilizaria. Alguns marxistas, como [o filósofo húngaro István] Mészaros, dizem que a crise atual vem daí mesmo", afirma Jorge Grespan, professor do Departamento de História da USP. 

BRASIL
 
No Brasil, o cenário é invertido. De acordo com José Pastore, professor da FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade), o Brasil está atrasado no processo de automação da economia. Ao mesmo tempo, o aumento do consumo estimulou a geração de empregos de baixa produtividade, no setor comercial e de serviços. 

"Como o setor de serviços estava contratando muito, o industrial teve que aumentar o salário acima do ganho de produtividade", afirma Fernando de Holanda Barbosa Filho, economista da FGV (Fundação Getulio Vargas). 

Com isso, a indústria nacional perdeu competitividade e os preços no setor de serviços aumentaram. 
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Reportagem por  CLARA ROMAN COLABORAÇÃO PARA A FOLHA 
Fonte: Folha on line, 30/06/2013

'Revolução sem rumo pode dar em nada, o que seria frustrante', afirma sociólogo

O sociólogo Francisco de Oliveira, 79, faz uma analise dos atuais protestos pelo país e dos movimentos sociais
O sociólogo Francisco de Oliveira, 79, faz uma analise dos atuais protestos pelo país e dos movimentos sociais

As manifestações deste mês serviram para "desmascarar" o PT como o partido das transformações, mas a ausência de direção pode impedir que os protestos tenham um legado duradouro.
A avaliação é do sociólogo Francisco de Oliveira, 80, professor emérito da USP, que se tornou um crítico ácido do PT após romper com o partido, logo no começo do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). 

A seguir, os principais trechos de sua entrevista. 

Folha - Qual é a sua avaliação dos protestos?
Francisco de Oliveira - Estou surpreso por duas razões. Em primeiro, o povão em geral demonstrou uma capacidade e uma iniciativa que ninguém acreditava, nem nós. Isso é promissor do ponto de vista brasileiro. A contradição é que os objetivos são muito difusos e, portanto, difíceis de alcançar. Ninguém sabe quem manda.
Nunca houve nada parecido pela amplitude no país. É uma experiência realmente nova na política de massas do Brasil, realmente nova. Todo mundo se pergunta no que isso vai dar. Os otimistas diriam: "Vai dar numa revolução". Mas é difícil. Uma revolução, nos casos conhecidos, sempre teve direção. Essa não parece ter. Então pode dar em nada, o que seria muito frustrante. 

O que mais há de inédito?
A gente vai descobrir que tem liderança, mas, para o que está ocorrendo, não faz nenhuma diferença. Está fora completamente das instituições que deviam fazer a mediação da política. Os políticos e os partidos estão completamente fora, o que é um fator muito inédito no Brasil.
O que já se sentia é que os partidos não são mais interlocutores. Se disso pensarmos que está surgindo uma nova forma de interlocução política, é uma percepção otimista. 

São as primeiras grandes manifestações das quais o PT não participa desde que foi criado. O que aconteceu?
Uma interpretação provisória e hesitante é que isso faz parte desse ciclo que se abriu de muita euforia. Parecia que estava tudo resolvido no Brasil. O PT e o Lula têm parte nessa história. A gente sabe como é: eles mandaram os bancos estatais soltarem o dinheiro, e veio esse festival de consumo que não está à altura da renda dos brasileiros. Eles criam uma euforia falsa, isso não se aguenta. Euforia de consumo financiada por bancos tem perna curta.
O PT incentivou a euforia. Meses atrás, estava todo mundo feliz no Brasil. Mas essa história de enorme transferência de classe é balela, sociologicamente não se sustenta que houve deslocamento de renda proporcionando euforia de consumo.
É o contrário: os bancos oficiais largaram dinheiro. Todo dia a gerente do Banco do Brasil me liga. Uma senhora chamada Simone liga pra minha casa e pergunta: "Professor, quando o senhor vai efetivar o empréstimo?". Parece exagero, mas é todo dia.
Qual é o objetivo disso tudo? Ninguém sabe. Reformar o sistema político de uma vez só é coisa de Lênin. Esse sonho, a gente viu no que deu. Mas nada a ver com Maio de 68, que visava montar outro poder e foi mais consistente que o movimento brasileiro. 

As manifestações estavam represadas pelo governo do PT?
A manifestação desmascarou o PT. Não é mais o partido das transformações. É o partido que, até pouco tempo, tinha deslocado os tucanos da Prefeitura de São Paulo e agora está sendo enxovalhado.
Tomara que seja promissor, de uma nova percepção de como a política atua. Mas, sendo pessimista, a experiência histórica mostra que uma coisa sem objetivo não se mantém por muito tempo. 

O PT perdeu o contato com os movimentos sociais?
Isso está perdido. O PT vem se burocratizando, não no sentido pejorativo, mas para alcançar determinados objetivos. Ao organizar, necessariamente se perde o contato com as massas. As massas não podem ser organizadas ao estilo de um partido.
O sucesso do PT foi porque era o partido contra a ordem. No momento em que se torna o partido da ordem, as escolhas mudam. Em todo partido que nasce contra a ordem e chega ao poder, há uma transformação trágica, perde a capacidade de reivindicar. 

Marina Silva e Eduardo Campos são opções viáveis?
Nenhum deles traz mudança. Campos é um bom moço e só. Marina, que abalou nas últimas eleições, não abala mais.
Não há país desse tamanho, com enormes desigualdades, em que uma mensagem como a dela tenha algo a dizer. O que tem a dizer a São Paulo, com a pior miséria do Brasil, as desigualdades mais intensas?
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Reportagem por  FABIANO MAISONNAVE e RICARDO MENDONÇA DE SÃO PAULO 
Foto: Fabio Braga/Folhapress
Fonte: Folha on line, 30/06/2013

Uma orgia bacanal

(Nietzsche)

Recebi um presente de uma mulher que desconheço. Veio embrulhado em papel bonito. Abri. Era um quadrinho bordado a ponto de cruz. Está pendurado à minha frente. Nele está escrito: “Deus abençoe esta bagunça”. Não sei como ela adivinhou pois ela não me conhecia e nunca havia entrado no meu escritório. Mas o fato é que ela adivinhou que as coisas que eu escrevia nasciam de uma grande bagunça.

Faz tempo publiquei dois livros com o nome de "Quarto de Badulaques". Quartos de badulaques eram quartos de bagunça, onde as coisas eram colocadas sem nenhuma ordem.

Numa casa arrumada cada coisa tem um lugar certo. Mundo ordenado, qualquer desvio fica logo evidente. Por isso, para não deixar evidências da presença da gente num certo lugar é preciso deixar as coisas no lugar preciso onde estavam quando chegamos. As vezes um simples fio de cabelo na pia do banheiro faz a denúncia...
A bagunça, ao contrário, estabelece um mundo permissivo, não há lugar certo para as coisas. A bagunça não pede arrumação. O espaço está aberto a muitas possibilidades.
A ordem marcha. A imaginação dança.

Ela era uma mulher bonita, longos cabelos claros. Mas o seu corpo era morada de um demônio terrível, a “compulsão pela ordem”. Ela só tinha um pouco de tranqüilidade quando a empregada ia embora, os filhos estavam na escola e o marido ainda não voltara do trabalho. Sozinha na casa. Tinha então a certeza de que nenhum objeto sairia do lugar — porque não havia ninguém que o movesse. Os objetos do seu mundo eram fixos no espaço.

Kurt Goldstein (1942), neurologista, fez um estudo sobre os efeitos das lesões no cérebro de feridos de guerra. Os efeitos variavam segundo a parte do cérebro que havia sido lesada. E ele observou que, quando uma certa parte do cérebro era lesada o ferido apresentava uma curiosa alteração de comportamento: ele se tornava meticulosamente ordeiro, obsessivo em relação à posição dos objetos no seu ambiente. Nas entrevistas ele passava o tempo todo compulsivamente organizando os objetos que se encontravam sobre a mesa, que o entrevistador, de propósito, insistia em desarrumar. Esse fenômeno levou Goldstein à conclusão de que, antes do ferimento, quando o cérebro estava inteiro, de posse de todas as suas funções, o ferido não precisava de uma ordem material, concreta, para organizar seu mundo. O cérebro convivia bem com a desordem, percebia ordem na desordem. Mas quando o cérebro era lesado e suas funções normais prejudicadas, o cérebro necessitava de uma “bengala” em que apoiar o seu comportamento.

Esse experimento de Goldstein sugere que a “bagunça” não significa indisciplina. Significa, possivelmente, que o bagunceiro põe uma ordem virtual na bagunça real.

A delícia de um quebra-cabeças está precisamente na “bagunça” das peças. Quando o trabalho termina e todas as peças estão colocadas em ordem o “brinquedo” acaba e a inteligência se assenta na poltrona... É isso que acontece com aquelas pessoas que colam o quebra-cabeças depois de armado. Ele nunca mais será brinquedo. Nunca mais fará pensar. Hegel escreveu, no prefácio à Fenomenologia de Espírito, que o triunfo da razão é uma orgia bacanal na qual nem um dos participantes está sóbrio. Assim abençoo a minha bagunça...
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* Escritor. Educador. 
Fonte: Correio popular on line, 30/06/2013
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'Há um desencontro entre os cidadãos e os seus governantes'

Para cientista social da USP, protestos revelam um país que deseja uma democracia mais participativa
O movimento atual, diz sociólogo, tem de aproveitar para recusar a violência e reinventar o modo de fazer política 
As manifestações recentes espalhadas pelo Brasil, de acordo com Sérgio Adorno, um dos principais sociólogos do país, mostram uma negação da sociedade ao modo atual de fazer política.
O problema é o surgimento da possível violência legitimada nos protestos e o risco de uma movimentação antidemocrática. Leia abaixo a entrevista exclusiva à Folha

Folha - O que está acontecendo no Brasil?
Sérgio Adorno - Há um fenômeno historicamente conhecido, mas com suas singularidades. É um desencontro entre os cidadãos e as suas instituições. Não é algo novo, mas há especificidades na sua dinâmica e na sua organização --que muitas vezes parece desorganizada.

Quais são as causas disso?
Vejo uma forte negação do modo de fazer política no Brasil. As pessoas querem uma democracia que possa ouvir mais. Há muitas pessoas nas ruas com interesses diversos. Tem gente com ideais e tem gente que diz "vamos lá porque está acontecendo uma manifestação". Tudo é legítimo. Estamos acompanhando os desdobramentos, que podem ser bons para o fortalecimento da democracia. Mas se as manifestações derem força para quem quer a volta de um regime repressivo, o ambiente fica vulnerável. 

O movimento antidemocracia pode ganhar força?
Por enquanto, não. A maioria das pessoas aposta na democracia. A democracia no Brasil veio para ficar. A pergunta é: qual democracia? Estamos caminhando para uma sociedade mais igualitária? Precisamos decifrar o fenômeno. Há fatos novos, como a recusa aos partidos. 

O que quer dizer essa recusa?
É uma recusa ao modelo atual de se fazer política. A escola pública, a saúde pública e o acesso aos serviços de governo continuam produzindo desigualdades. E o transporte é muito sensível. O desgaste de uma pessoa que mora na periferia e que leva três horas para chegar ao trabalho é grande. 

Existe um nível tolerável de vandalismo nos protestos?
Paralisações são parte da democracia. Estamos aprendendo a lidar com elas. Quanto ao vandalismo, ainda precisamos entender melhor. Temos atos de vandalismo em jogos de futebol. Mas o significado é o mesmo? O que me preocupa é que há uma linguagem de trazer de volta uma expectativa de que a violência seja legítima na política. O movimento tem de aproveitar a oportunidade para recusar a violência e reinventar a política. 

E em relação à polícia? O que o senhor achou da ação da PM?
Quando a polícia reagiu às manifestações certamente prevaleceu uma linha mais dura da polícia que diz que "ordem é ordem". Mas não podemos imaginar que a polícia, ao ser provocada, aja como se estivesse se vingando. A polícia deve ser preparada para lidar com isso. 

E a reação do governo? Haveria risco de golpe com uma Assembleia Constituinte?
Não acho que há possibilidade de golpe. Em 64, havia uma coalizão de setores da sociedade civil com a classe política. Havia conspiradores. Mas agora não há respaldo da sociedade. O tema tocou a todos. Há uma preocupação com o que vai acontecer. 

Raio-X Sérgio Adorno 

NOME
Sérgio Adorno 


IDADE
61 anos 


FORMAÇÃO
Sociólogo pela USP com pós-doutorado na França 


CARGO
Coordenador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP; foi presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia

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Reportagem por SABINE RIGHETTIDE SÃO PAULO
Fonte: Folha on line, 30/06/2013
Imagem da Internet

Futebol, efeito estufa e o jogo global

Marcelo Gleiser*
 

Independentemente do resultado da partida, a Terra, nossa casa, continuará a se aquecer 
HOJE É DIA da final da Copa das Confederações, imagino que a maioria absoluta dos brasileiros esteja grudada na TV. (Eu sou um deles, mesmo daqui dos EUA). 

Interessante o contraste das culturas; por aqui, esse tipo de conexão nacional não existe em nenhum esporte. Não vejo os americanos unidos, torcendo pelo seu país em massa em um jogo, como ocorre no Brasil e em tantos outros países. 

Isso é coisa do futebol e da Copa, um fenômeno único mesmo. Olimpíada é diferente, uma outra espécie de manifestação patriótica. Não é tanto um esporte, mas muitos juntos, e cada um vê o que gosta mais. 

Isso faz do futebol uma coisa à parte, uma manifestação em massa quase que religiosa, algo que antropólogos culturais estudaram já em detalhe. Uma expressão de patriotismo, sem dúvida, mas muito mais do que isso. Aqui nos EUA, isso ocorre mais com as guerras do que com os esportes. 

O que me faz pensar no próximo nível de adesão cultural em massa, quando não somos mais um país, mas uma espécie. Uma das assinaturas do novo milênio é a transcendência cultural por meio da globalização digital; todos têm, em princípio, uma voz, a informação que antes era difícil é acessível com alguns cliques; cursos dados por grandes professores, palestras sensacionais sobre ideias de vanguarda, vídeos políticos (como aqueles mostrando as manifestações no Brasil), filosóficos, esportivos...tudo ao alcance, basta só saber procurar conteúdo. E é esse o grande desafio da educação moderna: orientar as pessoas a buscar conteúdo de qualidade, coisas que nos ajudem a aprender, a crescer como indivíduos e mesmo como espécie. 

Pois se uma coisa fica clara com essa globalização e com outra característica dos nossos tempos, o aquecimento global, é que qualquer ação local pode ter repercussão global. O moto "pense globalmente e haja localmente" diz tudo. Semana passada, o presidente Obama declarou a necessidade de os EUA mudarem sua política com relação à emissão de carbono: "Os cientistas estão convencidos na sua maioria absoluta de que o aquecimento global está sendo acelerado pelas atividades humanas; falo isso pelos meus filhos e as gerações futuras", declarou. Finalmente! 

Não há mesmo dúvida de que estamos pondo uma espécie de cobertor em torno do planeta, que vai ficando cada vez mais sufocado. A conscientização conjunta de uma globalização pela internet e pelo clima deveria também despertar uma noção da necessidade de lutarmos como espécie para a preservação da nossa casa cósmica. Algo que a ciência moderna nos ensina é que a vida é rara e a vida complexa mais ainda; ademais, dadas as variações de planeta a planeta, e dado como a vida depende dessas variações, podemos afirmar que nós, humanos, somos únicos, futebol e tudo. 

Se as variações culturais ainda são enormes, como no caso da devoção nacional ao futebol no Brasil e sua ausência nos EUA, estamos todos juntos neste mesmo planeta. 

Independentemente do resultado do jogo, a Terra continuará sendo nossa casa e continuará a se aquecer. Torço para que o Brasil ganhe, claro, e para que nosso planeta vença também. Pois neste jogo ganhamos ou perdemos todos juntos. 
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Marilena Chauí e o pensamento mágico dos jovens

Paulo Ghiraldelli Jr*
 
“Pensamento mágico” é um pensamento que antes “explica” que explica. Fala em termos de relações que desprezam causalidade e racionalidade, elementos chaves do pensamento racional. Desse modo, tudo pode se transformar em tudo, e se surgir nele algo do nada, não é alguma coisa de se estranhar. Acostumamos, na filosofia, a dizer que o pensamento mágico está para rapsodo, o cantador das poesias mitológicas, assim como o pensamento racional está para o filósofo, o pensador autêntico. É assim que, em geral, todos nós escolarizados entendemos o pensamento mágico.

Marilena Chauí inventou de dizer que há uma “dimensão mágica” engajando os jovens (e outros participantes) nas manifestações de junho de 2013, as manifestações que eu tenho chamado de “a revolução do indivíduo”. Por meio de um marxismo difuso, ela assim formula sua observação:

“[o protesto] assume gradativamente uma dimensão mágica, cuja origem se encontra na natureza do próprio instrumento tecnológico empregado, pois este opera magicamente, uma vez que os usuários são, exatamente, usuários e, portanto, não possuem o controle técnico e econômico do instrumento que usam – ou seja, deste ponto de vista, encontram-se na mesma situação que os receptores dos meios de comunicação de massa.

A dimensão é mágica porque, assim como basta apertar um botão para tudo aparecer, assim também se acredita que basta querer para fazer acontecer. Ora, além da ausência de controle real sobre o instrumento, a magia repõe um dos recursos mais profundos da sociedade de consumo difundida pelos meios de comunicação, qual seja, a ideia de satisfação imediata do desejo, sem qualquer mediação” (Teoria e Debate) (grifos meus)

Lendo este trecho fico com a impressão que há magia, sim, mas única e exclusivamente no modo com que Marilena Chauí pensa. Por que ela imagina que teríamos de ser proprietários da Internet, e não apenas usuários, para que a manifestação nossa, criada a partir de troca de informações na Internet, fosse válida? Por que ela imagina que, por sermos usuários, não conhecemos a tecnologia necessária, enquanto usuários, para poder utilizar a Internet na organização do movimento de protestos, organização esta que ela nega ter existido e nega que poderá existir?

Caso ela pense que pode utilizar o marxismo como ela está utilizando, ela erra feio. Marx jamais escreveu ou pensou assim. A dizer que o operário estava alienado em sua dimensão subjetiva porque estava objetivamente alienado dos meios de produção, Marx estava pensando no quanto o capitalismo como um todo podia criar uma metafísica ou, nos temos dele, uma ideologia, por meio das inversões que receberam o nome de fetichismo e reificação. Essas análises de Marx podem ser usadas pelo marxismo, mas não podem ser enfiadas em qualquer situação particular para dizer que as pessoas, uma vez não sendo donas das coisas com que operam, agirão acreditando em mágica ou participando de uma mágica. Isso é uma tolice.

Marilena Chauí não está com problemas só no entendimento da horizontalidade do movimento de protesto. Ela está com problemas cognitivos diante da tecnologia do mundo contemporâneo. No entanto, sociologicamente falando, o princípio dessa tecnologia não é tão diferente da tecnologia do livro.

Vejamos a tecnologia do livro funcionando. Vamos montar o quadro.

Marilena Chauí está em sua casa, e acabou de escrever um longo texto, que ela quer que chegue a um determinado público de modo a convencer aquele público a pensar e agir segundo o que ela quer. Feito isso, ele envia os manuscritos para uma editora, lugar em que há um empresário que vai produzir e veicular o livro dela para os leitores, aqueles que ela quer influenciar. Esse empresário, o Editor, vai publicar o livro se este antes de tudo lhe der dinheiro e prestígio. Dinheiro para ele e prestígio para a empresa, a editora. Ele vai ponderar sobre o conteúdo. Caso o conteúdo lhe dê dinheiro, mas em médio prazo der à sociedade subversão social, ele irá ponderar entre se vale a pena ganhar agora e perder depois. Caso possa apostar que não perderá, então publicará o livro. Marilena Chauí, como todos nós intelectuais, já incorporou esse mecanismo, que trabalha na nossa cabeça quase que imperceptivelmente, e sua escrita pode até sair radical, mas não o suficiente para não ser publicada. Desse modo, ela ganhará dinheiro, e também ganhará o empresário que, pesando os prós e contras, terminará por publicar. O livro chegará ao leitor e será uma peça com origem na “produção capitalista” como outra qualquer. Mas, pior, exercerá sobre o leitor, de certo modo, uma mágica. Será a mágica de lhe dizer verdades, pois o livro não terá consigo, em suas páginas, apenas a força de legitimidade da exposição racional, mas terá também a força da autoridade (ou quase um autoritarismo) de Chauí (com parte de sua autoridade vinda da instituição Universidade) e do Editor (com a autoridade do Dinheiro). E tudo isso cairá sobre o leitor sem que ele possa responder ou perguntar. Afinal, o Editor não publicará o livro do leitor descontente. Pode-se até desconfiar se haverá leitor descontente, após toda a máquina de propaganda da Universidade e da editora, capitalisticamente, começarem a funcionar.

Como se pode notar, eis aí a dimensão mágica que, para Marilena Chauí, é válida, pois lhe favorece. Agora, se a comunicação se dá de dupla mão, ela não participa. Ela não quer falar e ouvir. Ela quer só falar e mandar. Então, a Internet não serve para ela. Não tem o mesmo peso capitalista e autoritário do livro. A Internet exigiria de Marilena uma conversação com força racional que ela teme não ter, então ela não participa e, desse modo, condena. As uvas estão verdes, diz a raposa. Mas, na verdade, o que ocorre é paúra mesmo, medo atroz do debate horizontal, do qual ela nunca participou, pois está há anos no exercício autoritário do debate vertical. Vale aqui lembrar a avaliação de Sócrates a respeito da escrita, como está no Fedro, de Platão: o livro é burro, ele sempre responde à mesma coisa, seja lá qual forem as perguntas que possamos fazer. Marilena gosta do livro, odeia a Internet, a Internet a obrigaria à dialética, ao trabalho filosófico de “dar e pedir razões” no mesmo contexto temporal, e disso ela foge como o Diabo foge da Cruz.

Marilena Chauí acha a Internet “mágica”, no fundo, não pelos pressupostos marxistas que ela usa para analisar, aliás, erradamente, as mídias em geral. Ela pensa como pensa porque ela própria é uma pessoa que não consegue lidar com a tecnologia. Então, ela própria vê a máquina como mágica. Ela não vê a máquina editorial funcionando, desse modo não aplica a mesma coisa a uma tal máquina. O livro é natural, a Internet não – ela pensa assim porque não entendeu nem o livro e nem a Internet.
Outro erro fantástico da professora Chauí é ela acreditar que os participantes dos protestos, os usuários da Internet, apertam um botão e então acreditam que seus desejos estão satisfeitos. Quem ela pensa que são os jovens, bebês?

Ela não sabe que o botão tocado acionou apenas um aviso para o colega, de modo a marcar um lugar para o encontro do protesto. Ela não sabe que o botão tocado, antes de tudo, é uma “máquina de escrever” que nada faz que disponibilizar cartas. A Internet não é um bicho, é apenas um corredor de carta trocadas, bilhetes repassados, nada além do que sempre foi feito quando se quer combinar algo ou discutir algo, sem a mediação de “autoridades”. O fato do tempo ter se tornado um tempo curto entre o falar e o responder, ou o mesmo tempo, muda a dinâmica do movimento de protesto, mas não muda uma coisa: há de se pensar no que será o protesto e decidir pela participação segundo desejos políticos e segundo o grau de informação que se tem. O tempo de pergunta e resposta, “sem mediações”, como Chauí diz, é o que ela teme verdadeiramente. Ela gostaria de ter não só o tempo a seu favor, mas também o espaço. Ela sabe falar a partir de uma mesa (ou palanque) que, antes de tudo, lhe dê a autoridade que ela precisa para falar. Ela adora falar dessa maneira, principalmente se a plateia, de antemão, concorda com ela em tudo. Ela se sente bem em ser professora antes de um partido que de uma escola.

O protesto, ao contrário do que ela pensa, envolve responsabilidade de cada um, pois ali vai ocorrer, de certo modo, algo que no passado chamávamos de “desobediência civil”, ou quase isso. Esse tipo de protesto, assim organizado, não pode repetir o passado, não pode levar o que participa a jogar nas costas da vanguarda a responsabilidade de atitudes do protesto. Não é uma parada militar ou um comício do PT ou PSDB. É um protesto horizontal, e ninguém está alheio ali às responsabilidades, uma vez que, dependendo de como as coisas evoluem, a consequência, que é o enfrentamento com a polícia, se dá no mesmo momento. Aliás, é por isso que aqueles que pediam que o Movimento do Passe Livre delatasse os que seriam os “vândalos”, estavam não só moralmente errados, mas também errados na maneira de compreender o movimento de protesto (como o caso da jornalista Patrícia Campos). Não havia vanguarda e, portanto, não havia a “polícia interna” do movimento, como ocorria nos comícios do PT. Nesses comícios, nos quais Marilena Chauí se criou, havia o palanque que policiava os militantes, de modo que não ocorresse qualquer dissidência comprometedora da imagem petista. Sempre soubemos disso. Aliás, foi fugindo disso que os jovens de hoje iniciaram o movimento de protesto longe do PT e contra o PT. A Internet foi o meio que eles usaram para escapar do mando não só dos conservadores, mas também e principalmente da Marilena Chauí e do PT.

Assim, as razões com que Marilena trabalha, para explicar a “dimensão mágica” e o pensamento mágico que estariam guiando os protestos, não são boas razões. É mais fácil acreditar, pelo que ela escreveu, que ela nunca soube o que é o livro e, por isso, não sabe o que são as mídias, e muito menos a Internet. Não sabendo isso, também não sabe o que os jovens pensam. Sabe apenas que os jovens não seguem mais o PT e, por isso, ela se põe assim, meio que magoada por um protesto que mudou a agenda política do Brasil, e o fez contra os ídolos de Marilena, que governam o país, ou seja, Lula, Dilma, Sarney, Renan Calheiros etc.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/marilena-chaui-e-o-pensamento-magico-dos-jovens/
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sábado, 29 de junho de 2013

Convidado da Flip, John Banville conta como escreve para expressar o caos em sua cabeça


O escritor John Banville vai lançar o romance “Luz Antiga” na Flip
Foto: David Levenson / Getty Images

O escritor John Banville vai lançar o romance “Luz Antiga” na Flip David Levenson / Getty Images

  • Premiado autor irlandês participa, em julho, do evento em Paraty ao lado da americana Lydia Davis
RIO - Em seu novo romance que será lançado sábado agora no Brasil, “Luz antiga” (selo Biblioteca Azul da Globo Livros), o escritor irlandês John Banville já abre a história de maneira direta, deixando claro o que o leitor pode encontrar: “Billy Gray era o meu melhor amigo, e me apaixonei pela mãe dele.”

Foi também com esse jeito direto, ora assumindo sua incapacidade de explicar seu processo literário, ora divagando sobre a construção da forma em seus romances, que Banville conversou, por telefone, com o GLOBO. Um dos principais autores da atualidade, vencedor do Booker Prize em 2005 por “O mar” (Nova Fronteira), Banville estará na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em julho, para participar de uma mesa ao lado da americana Lydia Davis — os ingressos para assistir ao encontro, na Tenda dos Autores, esgotaram-se ontem mesmo, horas após o início das vendas.
Quando o senhor escreveu o primeiro livro com o personagem Alexander Cleave (“Luz antiga” dá sequência às histórias de “Eclipse” e “Shroud”, ambos inéditos no Brasil), já havia planejado que a história se desenvolveria numa trilogia ou essa necessidade de voltar ao personagem apareceu com o tempo?
Eu adoraria poder afirmar que planejei tudo e que sabia exatamente o que estava fazendo, mas a verdade é que eu trabalho na escuridão. Nunca sei o que vou fazer, nem mesmo sei por que eu faço. Quando era jovem, costumava achar que tinha o controle de tudo o que fazia, mas hoje sei que não é assim.

Mas o que motivou o senhor a escrever novamente sobre Cleave em “Luz antiga”?
Eu nunca sei dizer bem como é o nascimento de um livro, nem mesmo me lembro de quando tive a ideia para escrevê-lo. Uma coisa boa de quem é religioso é que é sempre possível dizer que a inspiração vem de Deus, mas não é meu caso. Olhando para trás, só consigo me lembrar dos momentos em que o livro já está em curso. Vinte ou 30 anos atrás, eu responderia a essas perguntas com uma história muito precisa, mas a idade, em vez de clarear as coisas, só deixa tudo mais confuso. Não é simples achar explicação para o que acontece no processo literário.

Insistindo um pouco nesse processo, o senhor segue alguma linha quando escreve? Uma preocupação maior com algum ponto específico do romance, talvez o ritmo, talvez a forma ou mesmo o desenvolvimento da própria história?
Acho que essa eu consigo responder (risos). Há sempre um tipo de forma idiomática na minha cabeça. É um sentimento de tensão espacial que ronda o cérebro, e que eu preciso expressar. Quando eu escrevo um livro, o que surge primeiro é essa forma, mas é uma forma sem uma forma. Talvez isso não faça muito sentido, eu sei, mas o que tento fazer é dar um formato mais definido para essa forma sem forma. A história e os personagens servem para dar corpo ao livro, mas tudo sempre parte da forma. É como seu eu tivesse um tumor que precisasse ser removido do cérebro. O ponto é achar uma forma para expressar a voz caótica que está na cabeça.

E como o senhor faz para alcançar essa forma? Como é sua rotina de trabalho?
Eu sou bastante organizado. Pareço um prisioneiro que só come pão com queijo, bebe água e tem intervalos curtos e regulares. Mas há uma vantagem de ser um autor de prosa. Anos atrás, eu estive na América participando de um programa de escritores com dois poetas europeus, um finlandês e outro belga. Encontrei com eles pela manhã no restaurante do hotel e combinei de jantarmos à noite. Quando voltei, os dois estavam na mesma posição, bebendo uns drinques. Perguntei se eles não tinham saído de lá, e eles disseram: “Nós somos poetas, precisamos esperar aparecer alguma ideia. Não é como você, que se senta e escreve sua prosa”. E é verdade, eu posso simplesmente sair escrevendo e reescrevendo. Não é tão difícil.

Na Flip, a mesa da qual o senhor vai participar, junto com a americana Lydia Davis, é sobre o tema “limites da prosa”. O senhor já sabe do que vai tratar?
Estou aterrorizado. Acho que nós dois vamos nos olhar e dizer que não há limites para a prosa, o que acabaria com a mesa na hora. Então meu temor atual está relacionado aos poucos dias que tenho para pensar em alguma coisa para falar e ocupar o tempo de quem estiver lá. Mas considero a Lydia Davis fascinante em conseguir escrever aqueles pequenos fragmentos de história. Acho, até, que seus textos se aproximam mais da poesia do que da prosa.

Em “Luz antiga”, e em boa parte de sua obra, o senhor lida com a memória dos personagens. São histórias inseridas dentro de outras histórias, um percurso entre o passado e o presente ficcional, de idas e vindas. Como é a construção dessa narrativa em cima da memória?
Toda ficção é sobre o passado. Os grandes romances europeus da Era Vitoriana eram históricos, eram tramas passadas décadas antes de serem escritas. É um tanto nova essa ideia de que se pode escrever sobre o cotidiano presente, mas acho isso muito difícil de entender. Um tempo precisa ser digerido com profundidade antes de ser explorado. Por exemplo, eu não acho que conseguiria escrever sobre os eventos envolvendo o ataque às Torres Gêmeas, porque não acho possível escrever sobre algo até que haja uma distância temporal maior.

Outra característica que é bastante explorada em “Luz antiga” é o luto dos personagens, de Alexander Cleave e de sua mulher. Que elementos o senhor buscou para tratar dessa dor? Alguma referência religiosa?
Eu lido com essas questões de maneira um pouco diferente. Eu sou pagão, não acredito no monoteísmo. Acho que o monoteísmo provoca um dano grande às pessoas, especialmente aos cristãos, o que aumenta a dor em caso de pecados ou de perdas pela morte. Nietzsche tinha um aforismo maravilhoso, em que dizia que só existiu um cristão no mundo e que ele morreu na cruz. Então, quando o cristianismo assumiu a posição do paganismo, foi um desastre. Os gregos antigos eram gênios extraordinários, que inventaram um sistema que colocava na conta dos deuses tudo o que acontecia com a gente. Tudo mesmo, qualquer fenômeno, era influência dos deuses. Não importa se era racional, mas era uma visão poética da realidade. Hoje, nós vivemos num mundo que separa completamente o paraíso do inferno. É um desastre.

Quando ganhou o Booker Prize em 2005, por “O mar”, o senhor disse que ficava satisfeito em ver uma obra de arte recebendo o prêmio.
Ah, já sei o que você vai perguntar. Tenho sido assombrado por esse comentário desde então. Eu fui mal interpretado, mas também quis dizer exatamente aquilo. Meu ponto é simples: insisti, durante toda minha vida, que um romance pode ser uma forma de arte, não apenas aquele grande monstro descrito pelo Henry James (James criticava os romances grandiosos do século XIX, comparando-os a monstros). E Henry James sempre foi minha maior influência. As pessoas gostam de dizer que minhas influências foram Beckett, Joyce ou Nabokov, mas acho que James inventou um tipo de narrativa que foi seguido por muitos depois. As pessoas foram abandonando James em nome de uma literatura de vanguarda, que seria mais colorida e excitante, mas James inventou uma escrita superior, que serviu de base para outros tempos e estilos literários.

Em 2006, o senhor publicou seu primeiro romance assumindo o pseudônimo de Benjamin Black, para lançar livros policiais. Por que achou necessário criar Black e não escrever essas publicações como Banville?
O que aconteceu foi que comecei a ler Georges Simenon, o que nunca tinha feito antes, e fiquei impressionado com seu vocabulário, sua narrativa e os diálogos daqueles personagens fortes. Era um tipo de literatura pela qual nunca havia me interessado. Gostei tanto que decidi que queria fazer algo daquele jeito, mas também queria que os leitores percebessem que não seria uma estratégia literária de marketing ou uma piada. Era uma aventura séria na qual eu estava disposto a embarcar. Então escolhi um pseudônimo, mas em momento algum escondi isso. Sempre deixei claro que era eu.

O senhor consegue enxergar diferenças entre a forma de escrita de Benjamin Black e a de John Banville?
Benjamin Black é um artesão. Banville tem a aspiração de ser um artista. Por isso, escrever como Black exige espontaneidade, enquanto escrever como Banville me exige muita concentração. São processos diferentes que resultam em livros bem diferentes. Agora mesmo, acabei de escrever um novo livro de Black, uma história que me foi encomendada com Philip Marlowe de protagonista (Marlowe foi o principal personagem de Raymond Chandler, escritor americano morto em 1959). Vai se chamar “The Black-eyed blonde”.

O senhor também escreve regularmente, para jornais e revistas, resenhas de livros. Acredita que a atividade de pensar a literatura feita por outros influencia seu trabalho como escritor?
Eu acho que não. É como a relação entre Benjamin Black e John Banville: eu separo completamente meu trabalho como jornalista de meu trabalho como escritor. Além disso, o que eu faço é escrever resenhas de livros, nunca faço críticas. São coisas bem diferentes. O crítico lida com os cânones da literatura. Já numa resenha, o que procuro fazer é mostrar para os leitores o que ele pode encontrar num livro que está prestes a ser publicado. É a opinião de um homem sobre um livro.

Certa vez, numa entrevista, o senhor disse que odiava todos os seus livros. Por quê?
Esse é outro ponto que também preciso esclarecer. Odeio meus livros porque são de certo modo ultrajantes. Eu me orgulho muito dos livros de Benjamin Black porque são um trabalho de artesão, feito com honestidade. Mas os de Banville são uma vergonha para mim porque têm uma aspiração artística difícil de se alcançar. Sempre digo, e preciso explicar que isso faz parte de uma ironia, que meus livros podem ser bons para todos os outros, só não os acho muito bons para mim
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Democracia da imaginação: entrevista com Aleksandar Hemon

Nascido na Bósnia e radicado nos EUA, escritor lança livro de ensaios sobre trânsito
 entre culturas e a relação entre arte, 
poder e História


Por Guilherme Freitas

Em bósnio não há palavras equivalentes a “ficção” e “não ficção”, conta Aleksandar Hemon. Para o escritor, nascido em Sarajevo em 1964, também não há distinção entre o impulso que o leva a escrever contos e romances, como os elogiados “O projeto Lazarus” e “Amor e obstáculos”, e seus ensaios, reunidos pela primeira vez no recém-lançado “O livro das minhas vidas” (todos publicados no Brasil pela Rocco). Escalado na Flip para uma mesa com o francês Laurent Binet, dia 6, Hemon aborda nos ensaios temas recorrentes também em suas obras de ficção, como os desvios da memória e as articulações entre experiência individual e História.
Em um texto, lembra os dias decisivos de 1992 quando, durante uma viagem pelos Estados Unidos, viu de longe o início da guerra em seu país natal e foi aconselhado pelo próprio pai a não voltar. Em outros, fala sobre a dificuldade de adaptação (como recriar no novo país a receita perfeita de borscht, refeição preferida de sua família?) ou sobre intelectuais que colaboraram com o massacre dos bósnios. Faz também reflexões profundamente pessoais, de declarações de amor ao futebol a ruminações sobre a morte de sua filha, Isabel, quando ela tinha apenas 1 ano. De Chicago, onde vive há duas décadas, Hemon conversou por telefone com O GLOBO sobre o trânsito entre culturas e idiomas e a relação entre arte e poder: “A função da literatura não é melhorar as pessoas, e sim abrir um campo democrático de imaginação”, diz.

O GLOBO: Em um ensaio de “O livro das minhas vidas”, você lembra sua relação com Nikola Koljevic, poeta e professor que se tornou braço direito de Radovan Karadzic, líder político sérvio hoje preso sob acusação de crimes de guerra. Você escreve que, ao se dar conta da implicação de Koljevic nos horrores do regime, extirpou “aquela parte de mim que acreditava ser possível escapar da História e se esconder do mal nos confortos da arte”. Na Flip, sua mesa, sobre romance histórico, se chama “O espelho da História”. Como a literatura pode se relacionar com a História sem ser nem um espelho, nem uma fuga?

 
HEMON: A História, com H maiúsculo, cria um registro hierárquico de pessoas e eventos, atribuindo mais importância a uns ou outros, e por isso é sempre cúmplice de alguma estrutura de poder. Nesse sentido, a literatura é mais democrática do que a História, porque permite que imaginemos aquelas vidas que normalmente não são registradas em arquivos e enciclopédias. A literatura oferece um acesso imaginário a experiências diferentes das nossas e, assim, amplia os limites de nossa percepção da realidade. É por isso que regimes totalitários sempre tentam controlar não só a imprensa, mas também a literatura: para restringir a possibilidade de se imaginar uma vida diferente.

Por esse ponto de vista, a literatura não ficaria reduzida a um exercício de empatia por meio da imaginação?

Falar em empatia sugere um engajamento emocional que é parte importante do jogo da literatura, mas é claro que há outros elementos envolvidos. Quando lemos sobre a experiência de um sobrevivente do Holocausto, por exemplo, a empatia só chega até certo ponto. Muitos leitores preferem ficar numa posição confortável, só querem ter prazer lendo, e se fecham diante do que é desconfortável. Mas a literatura depende em larga medida do desconforto. Uma vez dei um curso sobre literatura e violência, no qual estudamos desde memórias de prisioneiros de campos de concentração e livros sobre escravidão aos romances de Cormac McCarthy. Notei que muitos alunos que falavam de literatura em termos de “empatia” e “sentimentos” ficavam completamente bloqueados diante de certas leituras. Eles perguntavam: “Por que eu leria algo tão distante da minha experiência? Não tenho como compreender a situação de alguém que está trancafiado à espera da morte”. E a questão é justamente essa: nem sempre se trata de “compreender”. A empatia é importante, mas a literatura também nos coloca diante do incompreensível.

Você falou sobre a “cumplicidade” entre História e poder e disse que a literatura é “mais democrática”. Mas os casos de Koljevic, um literato que colabora com o regime, e do próprio Karadzic, um tirano que já publicou vários livros de poesia, mostram que a arte também pode estar integrada a um sistema repressivo. O que você aprendeu sobre a relação entre arte e poder escrevendo ensaios sobre essas figuras históricas?

Concluí que a arte não é automaticamente enobrecedora. Você pode ler todo o Shakespeare que quiser, ou ouvir Beethoven, e ainda assim ser um criminoso de guerra. Eu me aproximei de Koljevic, quando ele era meu professor, porque tínhamos um amor comum pelos livros e eu achava que isso nos protegia dos horrores da História. Mas durante todo aquele tempo ele estivera participando ativamente desses horrores. Hoje entendo que ler não faz de ninguém uma pessoa melhor. E que a função da literatura não é melhorar as pessoas, e sim abrir um campo democrático de imaginação. Mesmo nos piores cenários, a literatura continua a ter a capacidade de ser um registro imaginário da experiência humana, ao qual será possível retornar para entender o que aconteceu e como. É preciso garantir a existência desse campo para que possamos sempre acessá-lo, mesmo que o acesso a ele, por si só, não garanta que as coisas sejam melhores.

Um tema que aparece em vários ensaios é seu trânsito entre dois idiomas, o bósnio e o inglês. Você já afirmou que, como escritor, quer “acabar com a noção de que artistas devem apenas representar a realidade”, porque a linguagem precisa sempre transpor “um abismo entre o eu e o mundo”. O fato de escrever ficção em inglês, e não no seu idioma nativo, faz com que você seja mais consciente das limitações da linguagem?

De certa forma, sim. Isso se relaciona também com os ambientes em que vivi. Na Iugoslávia estávamos imersos em propaganda ideológica, então aprendi cedo que a realidade pode sempre ser manipulada por meio da linguagem. Além disso, naquela época, o estilo literário dominante era o realismo socialista, com autores ligados ao poder que se acreditavam capazes de determinar o que era a “realidade” e o que ela não era. Quando cheguei aos Estados Unidos e passei a ler mais em inglês, antes mesmo de começar a escrever em inglês, percebi que, embora não houvesse uma pressão política ou ideológica impondo o realismo, há uma forte tradição na literatura americana que toma o realismo como um fato consumado. Para mim o problema é mais complexo. Não acredito que a realidade possa ser simplesmente “representada” sem que se questione a própria noção de realidade, e a literatura que me interessa é a que procura fazer isso.

Um dos seus “métodos” para aprender inglês nos Estados Unidos foi ler Nabokov, outro escritor que criou grande parte de sua obra em um idioma adotado. O que as obras dele e de outros autores que transitaram entre idiomas significam para você?

Nabokov foi fundamental para mim, mesmo antes de eu chegar aos Estados Unidos. Me interesso muito por autores que escreveram em um idioma não nativo, como ele, Beckett e Conrad. Mais do que isso, me interesso por autores que mantiveram uma relação tensa com o idioma e a cultura em que escreveram. Penso em Bruno Schulz, por exemplo, um judeu polonês que passou a vida inteira em um mesmo vilarejo que, devido aos conflitos da primeira metade do século XX, pertenceu a cinco países diferentes. E penso em Kafka, que fez parte de minorias em vários sentidos, um judeu que escrevia em alemão em Praga, primeiro sob o Império Austro-Húngaro e depois parte da Tchecoslováquia. Não por acaso, encontramos nesses autores formas muito inventivas de lidar com a questão da “realidade” e com a articulação entre experiência pessoal e História.

Você já escreveu sobre o fato de que em bósnio não há palavras equivalentes a “ficção” e “não ficção”. Para você, quais são as distinções entre uma e outra?

Para mim, o conceito amplo de literatura transcende os termos “ficção” e “não ficção”, porque implica um engajamento com o campo da linguagem por meio de vários modos e gêneros. Sempre pensei na literatura dessa forma e, talvez por isso mesmo, escrevo ficção e não ficção sem considerá-las instâncias tão afastadas. O que as aproxima é a ideia de narrativa. São parâmetros diferentes de narrativa, claro: em ficção podemos enfeitar um pouco mais e as expectativas do leitor em relação ao texto são diferentes. Mas o impulso que me move é sempre o mesmo: contar histórias.
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Fonte:  http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/06/29/democracia-da-imaginacao-entrevista-com-aleksandar-hemon-501613.asp

Marcos Nobre; a crise de um sistema político fechado em si

Para o filósofo Marcos Nobre, convidado da Flip, as manifestações pelo Brasil colocam em xeque o ‘peemedebismo’, como ele chama 
a blindagem contra a influência das 
forças sociais de transformação

Por Leonardo Cazes

O filósofo e professor da Unicamp Marcos Nobre conta que passou 10 dias sem dormir para escrever o e-book “Choque de democracia: razões da revolta”, lançado na quinta-feira e que marca a estreia do selo Breve Companhia, da editora Companhia das Letras, exclusivamente digital e dedicado a textos curtos de ficção e não ficção. O ensaio é uma interpretação sobre os protestos que varrem o país desde 13 de junho e suas consequências para a política e a sociedade brasileira. Em entrevista ao GLOBO, Nobre — que estará na Flip — explica o que chama de “peemedebismo”, a forma encontrada pelo sistema político de se blindar contra as forças sociais e cujo primeiro arranjo já apareceu na Constituinte. O termo foi cunhado em 2009 e é a chave do livro que Nobre terminava de escrever quando foi atropelado pelos acontecimentos. Na sua opinião, há uma necessidade inequívoca de se aprofundar a democracia brasileira.

Qual sua avaliação do movimento que tomou as ruas do país desde o início do mês?

Algumas coisas já se sedimentaram no debate público: o movimento não tem uma pauta única, não tem um centro único de organização. São muitas pautas, muitos centros, as redes sociais são muito importantes. As pessoas olham isso e falam: não estamos entendendo. É claro! Se você pegar os movimentos de massa do Brasil, as Diretas ou o impeachment do Collor, havia uma espécie de unidade forçada. Os diferentes grupos abriam mão de suas diferenças para combater um inimigo comum. Agora não existe essa unidade forçada. Não é uma frente com objetivo único. Então, dizem que é desorganizado, mas, na verdade, o que ele não tem é essa unidade forçada. É um movimento inteiramente novo. Qual é o traço de união que ele possui? Para mim, todos esses movimentos são contra o sistema político que se blinda contra as forças sociais. Veja o que aconteceu desde o impeachment do Collor. Primeiro, derrubou-se um presidente. Depois, quando houve a batalha campal entre os senadores Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho, os dois renunciaram aos mandatos. Aí vem o mensalão, em 2005, com vários deputados processados e dois cassados. Em 2007, a coisa começa a mudar. Mesmo com aquela pressão toda sobre Renan Calheiros, ele renunciou à presidência do Senado, mas não ao cargo de senador. Quando vem o José Sarney, em 2009, há a série de denúncias dos atos secretos e ele não perde o mandato nem a presidência do Senado. Claramente existe um fechamento do sistema político em relação a insatisfação da sociedade. Esse processo não ocorreu de um dia para o outro. Ele começa no impeachment, que foi um momento traumático para o sistema político.

Mas o impeachment não foi possível porque Collor mantinha uma base frágil no Congresso Nacional?

Esse foi o peixe que o sistema político vendeu para a sociedade: Collor caiu porque não tinha uma supermaioria no Congresso. O mito da necessidade de uma supermaioria foi a maneira de o sistema político se blindar para continuar funcionando do mesmo jeito de sempre. Esse fechamento em si mesmo é o que chamo de “peemedebismo”, em homenagem ao partido que criou essa figura na década de 1980 para frear as forças sociais na Constituinte. É a própria ideologia do sistema político fechado em si mesmo que cria esse mito da supermaioria. E aí a gente trava, não avança.

Quais são as origens históricas do “peemedebismo”?

O primeiro ensaio do “peemedebismo” se dá na Constituinte. A transição brasileira foi um pacto de elites, um dos maiores apoiadores da ditadura se tornou o primeiro presidente civil. De repente, esse sistema político se vê diante de uma quantidade gigantesca de forças sociais organizadas. Nunca houve tanta participação popular no Brasil quanto na Constituinte. Então, é criado um sistema de filtragem e barragem da pressão popular. Como isso foi feito? As forças sociais eram muitas e diversas, não tinham uma unidade ou um partido que as representassem. Nesse contexto, o “centrão” da Constituinte é fundamental. Primeiro ele enfatiza a fragmentação dos movimentos, ao negociar individualmente com cada um, para impedir a formação de uma unidade. Depois ele diz: tudo bem, vamos aceitar todas essas demandas, mas todas vão precisar ser regulamentadas. Assim, o sistema político retoma para si a efetivação da Constituição. Essa é a primeira figura do “peemedebismo”, embora sem a tecnologia de administração de interesses conflitantes que será desenvolvida nos anos 1990. O “condomínio peemedebista” está no poder há duas décadas. Não é à toa que todos os partidos no Brasil querem ser o PMDB, e por isso são tão irrelevantes enquanto partidos. Na hora de defender os interesses para valer, o que se forma no Congresso são bancadas suprapartidárias, como a ruralista, a religiosa.

Contudo, quando Lula assume em 2003, ele não faz uma aliança com o PMDB.

É o meu contraexemplo. O Lula assume com um programa “antipeemedebista”, porque o PT foi concentrando as forças populares de transformação. No momento em que o Lula vai para o segundo turno em 1989 contra o Collor, as forças sociais vão se aglutinando em torno do PT. Isso permitiu que o PT virasse o PT, porque o Lula foi para o segundo turno só com 16,8% dos votos. Então, ele assume o poder em 2003 com dois mandatos: reformar radicalmente o sistema político e reduzir todas as formas de desigualdade. Aí vem o mensalão e todo mundo diz que sem supermaioria ele corre risco de impeachment. O sistema político chantageia o tempo inteiro com a supermaioria. Só em 2005 Lula faz o pacto com o “peemedebismo”, que é o mesmo modelo de acomodação de interesses do governo Fernando Henrique. No primeiro momento ele recusou essa lógica, mas depois aceitou e foi além. Porque o Lula construiu uma tal supermaioria que aniquilou a oposição. Por que faz isso? Porque, no fundo, o PSDB também é um partido “peemedebista”. Aqueles quadros do governo Fernando Henrique, principalmente na economia, são o que eu chamo de “cordão sanitário”. O acordo foi: nas áreas estratégicas, como a Fazenda e o Banco Central, vocês não podem mexer, mas ficam com todo o resto. No fundo, o “peemedebismo” significa que se você se organizar e tiver peso eleitoral suficiente você ganha um quinhão correspondente no Estado onde você vai instalar a sua máquina e se reproduzir. Ao mesmo tempo, você ganha um poder de veto contra qualquer assunto que vá contra os seus interesses. As mudanças promovidas pelo governo Lula, como aumento do salário mínimo, a reforma do crédito e o Bolsa Família, foram feitas porque não encontraram vetos no sistema político. Enquanto o PT estava na oposição havia uma força política organizada que dizia que o “peemedebismo” não era algo normal. Quando o Lula faz o pacto, há uma naturalização do “peemedebismo”.

A reforma política seria a saída para superar essa crise do “peemedebismo”?

O que se abre com esse movimento é a possibilidade de formação de uma frente antipeemedebista para reorganizar a política institucional. Se isso vai acontecer ou não é outro problema. A reforma do sistema político não tem nada a ver com reforma política. A reforma política que querem fazer é uma reforma eleitoral, que é importante, mas é só parte da história. A ideia de que você vai fazer uma reforma eleitoral e vai resolver todos os problemas do sistema político é um tanto ilusória. As manifestações em si mesmas são muito positivas porque já mudaram a cultura política do país, reorganizaram forças sociais e mostraram que o sistema político está em descompasso com a sociedade. Esses protestos também dizem que não dá para continuar com um sistema político encastelado no Estado, que trava as transformações. Um sistema “peemedebista” polarizado é uma desgraça, mas pelo menos tem dois polos. Um sistema político “peemedebista” que só tenha um condutor faz com que a oposição migre para dentro do governo. Quem nasceu em 1995 nunca viu inflação e nunca viu um debate político polarizado. Então como você faz formação democrática de uma geração desse jeito? É uma tragédia para o país.

Essa crise do “peemedebismo” também é uma crise do lulismo?

A sociedade já está em um novo modelo e o sistema político ainda não. É o modelo que eu chamo de social-desenvolvimentismo, por oposição ao nacional-desenvolvimentismo que houve no país entre as décadas de 1930 e 1980. O resultado desse processo histórico, iniciado no governo Fernando Henrique, é ambíguo porque é ligado à democracia e coloca a necessidade de reduzir a desigualdade no seu centro, mas foi conquistado a duras penas em uma aliança com o “peemedebismo”. O lulismo é uma figura do “peemedebismo”, um acordo novo que elimina a oposição, ao mesmo tempo em que é também uma figura desse social-desenvolvimentismo. As ruas estão dizendo que houve enormes avanços sociais, mas que, agora, ou se aprofunda a democracia ou não vai dar. Uma das características fundamentais desse movimento é a velocidade e a intensidade. É incrível como tudo muda de um dia para o outro. O sistema político ficou completamente desarmado. Os políticos ficaram 20 anos se blindando contra as ruas e aí vêm as ruas e passam por cima deles. Além do Movimento Passe Livre, os comitês populares da Copa foram fundamentais nas mobilizações. Eles não são ligados a nenhum partido e possuem uma independência e autonomia que outros movimentos perderam. São forças que não fazem parte do consenso social-desenvolvimentista colocado pelo governo Lula, de que só havia uma única forma e um único ritmo possíveis para fazer as transformações.
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Fonte: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/posts/2013/06/29/marcos-nobre-crise-de-um-sistema-politico-fechado-em-si-501610.asp