sexta-feira, 24 de maio de 2013

Um rótulo vazio para um império do efêmero

 Carlos Felipe Moisés*
 
Peço ao leitor a gentileza de passar os olhos por esta meia dúzia de frases, colhidas ao acaso na internet: "Vende-se casa duplex, moderna, estilo contemporâneo", "O estilo contemporâneo seduz muitos decoradores", "O Hotel X é compacto e moderno, tem quartos de estilo contemporâneo", "Fulano executa sua composição mais recente, erudita, clássica, de estilo contemporâneo", "Música contemporânea é qualquer música contemporânea de quem fala", "Literatura contemporânea: a literatura após a 2ª Guerra Mundial".

A pergunta é: o que "contemporâneo" significa, nessas frases? Mesmo tendo relido com mais atenção, você talvez ainda não saiba responder. Não se preocupe. Há muito a palavra deixou de transmitir um significado. Ela apenas desperta em nós uma sensação agradável, que nos induz a pensar em algo novo, avançado, sofisticado, charmoso, chiquérrimo, descolado... "Contemporâneo" não quer dizer nada disso, mas seu uso indiscrimado criou em torno do vocábulo uma certa aura de fascínio irresistível. Palavra da moda, a intenção de que signifique muito faz com que não signifique nada.

A palavra é antiga, provém do latim, e seu uso remonta ao final do século XVIII, quando os historiadores passaram a chamar de "Idade Contemporânea" o período que se abre com a Revolução Francesa (1789) e se estende até hoje. Na origem, significava: qualquer coisa que existe ou existiu simultaneamente a outra. Sinônimos: coevo, coetâneo, concomitante, algo marcado pelo calendário e que só faz sentido em cláusulas relacionais.

A ideia de contemporaneidade é sempre relativa. "A é contemporâneo de B" faz sentido. Já a cláusula absoluta "A é contemporâneo", ponto, não quer dizer nada. "Contemporâneo" deve vir sempre acompanhado da preposição "de" (a comparação com o inglês é esclarecedora: "contemporary" ou "contemporaneous with").

Sabe-se ou conviria saber que algo só será "contemporâneo" por um breve tempo, cada vez mais breve à medida que nos aproximamos da atualidade. É só uma "classificação" provisória, à espera de que o tempo passe, ou à espera de que surja um nome próprio para a coisa em causa, que só será rotulada de "contemporânea" enquanto não soubermos designá-la com propriedade.

O rótulo não diz nada quanto às características, o teor, a natureza, a definição ou o conceito da coisa. Antes do uso abusivo do termo (que desponta, ainda tímido, com a eclosão das vanguardas na virada do século XIX para o XX), os estilos, por exemplo, tinham nome próprio: neoclássico, romântico, realista, impressionista etc. Mas a partir daí não mais: a desconcertante multiplicidade de tendências que se digladiam nesse período foi logo simplificada sob o rótulo "moderno", igualmente vazio.

O curioso da história é que classificar ou dar nome próprio não é imprescindível. Se você não souber que esta pintura está ainda presa ao gótico pós-renascentista, e aquela outra, a certo maneirismo que logo se converterá em rococó (estamos falando de pintura barroca, século XVII, mas é só um exemplo; poderíamos falar de música, literatura, moda, decoração etc., de qualquer época), isso não impedirá que você aprecie a exuberante beleza da arte em causa. A classificação pode ficar para depois. Mas se despejarem sobre você, diariamente, a falsa classificação "contemporâneo", como se fosse preciso fixar de antemão o nome pomposo e vazio, para só em seguida você se inteirar do que se trata, sua capacidade de percepção ficará comprometida. E você correrá o risco de se entusiasmar só de ouvir a palavra mágica, antes de prestar atenção a seja o que for.

É exatamente essa a estratégia da contemporaneidade triunfante: "a informação 24 horas por dia e o grau zero do pensamento" (Gilles Lipovetsky, "O Império do Efêmero", Companhia das Letras - leitura que vivamente recomendo, caso você esteja interessado em conhecer um diagnóstico severo da sociedade... contemporânea).

Há muito "contemporâneo" deixou de ser mero índice temporal (como o dicionário e a História ensinam) e se transformou em juízo de valor, arbitrário. É que vivemos numa "sociedade em que a opinião espontânea das pessoas é a de que, por natureza, o novo é superior ao antigo"; estamos submetidos ao "império do capricho, sustentado pela paixão da novidade" (Gilles Lipovetsky).

A pergunta mais incômoda é: qual o prazo de validade do "contemporâneo"? Mais de um século atrás, a revista "La Vie Contemporaine" (a vida contemporânea), publicada em Paris, dedicada às artes, à moda, à decoração, ao bom gosto, às boas maneiras, ao bem viver, em suma, brilhou em todas as capitais europeias, de 1893 a 1897. Acabou por envelhecer e desapareceu. Hoje há revistas que navegam nas mesmas águas, nos mais váriados ramos de atividade e interesse, todas obcecadas com o propósito de "inovar", a cada número. Mas todas sabem que, ao sair da gráfica, a edição já estará obsoleta.

O ritmo acelerado com que as novidades surgem, ainda que às vezes sejam velharias requentadas, obriga quem se pretenda cem por cento "contemporâneo" a mudar de aparência, de gosto, de estilo, pelo menos uma vez por semana. Ou a "mudar de filosofia como quem muda de camisa", na definição de Fernando Pessoa. Deve ser por isso que Drummond um dia desabafou: "E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno".

Hoje nada permanece, nada dura mais que dois ou três dias. O transitório (como é o caso de tudo o que é dito "contemporâneo") deixou de ser mera passagem entre o que já foi e o que ainda não é, para se tornar condição permanente. É a transitoriedade como valor em si, independentemente do significado que a paixão novidadeira possa ter. Daí a valorização do "retrô" (não confundir com "retrógrado"). O conservador quer de fato voltar atrás; já o "moderno" toma a liberdade de, vez ou outra, pinçar lá de trás algo que o capricho da hora decida repor em circulação, tornando-o tão "contemporâneo" quanto qualquer novidade.

A cena é comum. Se você não protagonizou, ainda vai protagonizar uma parecida. Depois de ouvir a ensaiada explanação sobre um quadro, uma gravura, uma peça de decoração, em que "contemporâneo" bimbalhou várias vezes, você pergunta ao expositor: o senhor por favor me explicaria o que é "contemporâneo"? Ele lançará na sua direção aquele olhar que fulmina de alto a baixo, expressão de desdém nos cantos dos lábios, e exclamará: "Ora, contemporâneo é contemporâneo", enquanto gira nos calcanhares e segue no rumo da sala mais próxima. Você entenderá a resposta: "Que pergunta mais idiota! Como é possível alguém não saber o que é contemporâneo?!".

Talvez sirva de consolo reparar que, dentre as frases de que partimos, a que parecia mais enrolada ("Música contemporânea é qualquer música contemporânea de quem fala") é a única que faz sentido. É só isso mesmo, mais nada. "Contemporâneo" é o que você quiser, ou tiver coragem de afirmar que é.
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* Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula", 2008), crítico literário ("Tradição & Ruptura") e ex-professor da USP e da Universidade da Califórnia, Berkeley.

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