domingo, 19 de maio de 2013

O gato que gostava de cenouras

 Rubem Alves*
Gulliver — esse era o nome do gatinho recém-nascido — trouxe grande alegria a seus pais, quando nasceu. A mãe gata e o pai gato puseram esse nome no filho — o nome de um gigante! — porque sonhavam que ele seria um gato enorme, forte, valente, caçador.

Mas, para espanto de seus pais, Gulliver cresceu um gato diferente. Não gostava das coisas que os gatos normais gostavam: peixes, ratos e passarinhos. Seus pais lhe traziam deliciosos ratinhos recém-nascidos, pardais saborosos, peixes perfumados: tudo em vão. Seus pais acharam que ele estava doente. Levaram-no ao médico. Mas depois de muito examiná-lo o médico concluiu que ele não tinha doença alguma. A doença dele — se é que é doença — não está no corpo. Deve estar na alma...”.

O fato é que os pais ignoravam que Gulliver comia escondido, comida que era proibida para gatos. Comia comida que só os coelhos comiam! Cenoura! Gullinho era um gato diferente! Gato que comia cenoura... Seus pais estranhavam que ele fosse um solitário, estava sempre sozinho. Não andava com os outros gatos. Claro que não. Os outros gatos gostavam de sair juntos para caçar e comer ratos. Um dia até que Gulliver tentou. Mas vomitou. A alma de Gullinho era feita de cenouras e não de ratos..

Um dia, a mãe gata, preocupada com o filho, disse ao marido:
— Acho que você deveria seguir o Gullinho. Tenho medo de ele se meta em más companhias. E assim foi. Na próxima vez que Gullinho saiu sozinho seu pai o seguiu sem que ele o visse. Andou muito, até chegar ao sítio de seu Joaquim. Lá havia canteiros com todo tipo de hortaliças, ente elas — lindas, amarelinhas, doces, fresquinhas — cenouras a perder de vista. Aí Gullinho sorriu da felicidade e começou a comer a comida que era proibida para os gatos.

Seu pai quase morreu do coração. O filho, que em seus sonhos deveria se parecer com um tigre, na realidade se parecia mais com um coelho. Voltou para casa. E ali, ele e a gata, sua mulher, choraram amargamente.

Os pais terem descoberto ainda não foi nada. O terrível foi quando os outros gatos, colegas de escola, passaram a suspeitar dos hábitos de Gullinho.

Gulliver tornou-se objeto de zombaria. Seus colegas lhe puseram o apelido de coelho...
Os pais, padecendo com o sofrimento do filho, resolveram apelar para a religião. Pra Deus tudo é possível. Mandaram então que o Gulinho fosse conversar um padre.

O gato-padre era um gato impressionante. Pelo lustroso, pretíssimo, olhos verdes, longo rabo encurvado. Seu nome era D. João Severo. Ele abriu um livro sagrado e disse que Deus, o Gato Supremo, determinara que ratos, passarinhos e peixes são os manjares dos deuses. Assim, por determinação do Deus-Gato, gatos têm de comer ratos, passarinhos e peixes. Comer cenouras é pecado mortal. É contra a natureza. Aí lhe falou sobre o inferno, um lugar terrível para onde vão todos os gatos que comem cenouras. — Esse será seu destino se você não mudar seus hábitos alimentares — rematou.

Seus pais não desanimaram. Tinha de haver uma cura. Enviaram Gulliver a um psicanalista, o melhor, o mais caro, Dr. Gatan. Tiveram de tirar dinheiro do banco para pagar o tratamento. Pais são assim: fazem os maiores sacrifícios para que os filhos fiquem iguais a seus sonhos.

A análise durou vários anos. Ao final da análise, Dr. Gatan lhe deu uma explicação complicada. Falou de Freud, de Édipo, de repressão. Nem ele nem seus pais entenderam a explicação. Explicações não adiantam. Explicações ficam na cabeça. Não chegam até o corpo, onde mora o sofrimento. Gulliver continuou a gostar de cenouras... (continua)
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* Educador. Escritor. Teólogo.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/05/19
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