sábado, 25 de maio de 2013

Duas forças, dois mestres

 EDUARDO VERAS*
 
 William Kentridge na Fundação Iberê Camargo, em março deste ano, quando veio à Capital 
para a abertura da exposição “Fortuna”.
 O que, além da nacionalidade sul-africana, 
têm em comum Kentridge e Coetzee, 
dois visitantes recentes da Capital
Ideias simples são sedutoras. Daí é de estranhar que não se tenha propalado esta analogia até agora: Porto Alegre calhou de receber na primeira temporada de 2013 dois dos mais talentosos autores da África do Sul. Estiveram por aqui, quase ao mesmo tempo, o escritor J. M. Coetzee e o artista visual William Kentridge. Coetzee, ciceroneado pela professora Kathrin Rosenfield, fez conferência no Salão de Atos da UFRGS e lançou o livro A Infância de Jesus. Kentridge inaugurou a exposição Fortuna, na Fundação Iberê Camargo, com curadoria de Lilian Tone. A mostra encerra-se neste domingo. Aproximar os dois, Coetzee e Kentridge, ainda que brevemente, talvez possa afinar nossa percepção sobre a obra de ambos. Os dois teriam mais em comum do que a origem.

Comecemos pelo óbvio: Coetzee e Kentridge chegaram à idade adulta sob o odioso regime de segregação racial do apartheid (1948 – 1994). Nasceram brancos, o que não correspondia necessariamente a uma vida mansa. Primeiro, porque ser branco sob o regime de exceção, mesmo contando com as benesses reservadas à minoria no comando, não equivalia a estar a favor do Partido Nacional e de sua política racista (o pai de Kentridge, advogado, foi um notório militante pelos direitos civis; Coetzee, ele mesmo, ganhou projeção como voz antiapartheid). Segundo, porque não apenas os negros eram marginalizados. Carregar um nome judeu, como Kentridge, incluía o risco de tomar uma surra na rua. Um nome africânder, como Coetzee, também não era garantia. No livro Infância (1998), primeiro volume de sua trilogia autobiográfica, o escritor recorda o pavor escolar de ser transferido de uma classe de britânicos para uma de africânderes, garotos de pés descalços e cabeças raspadas.

Sublinhe-se que, tanto na obra de Coetzee quanto na de Kentridge, o tema do Apartheid quase nunca vem em primeiro plano, situa-se antes em uma zona latente, não nomeada, como uma espécie de fantasmagoria. A evocação por vezes tende ao alegórico, mas nem por isso se faz leve. No romance À Espera dos Bárbaros (1980), a sombra de um ataque inimigo, em uma cidade empoeirada de fronteira, justifica as piores vilanias. Às vezes, esse pano de fundo totalitário corre mais disperso. No recente A Infância de Jesus, a trama (Simón quer proteger e dar uma família a David, menino de cinco anos que, como ele, não tem nenhum passado) se desenrola em uma cidade novamente fronteiriça; dessa vez, porém, os forasteiros são acolhidos quase bem demais, em meio a gentilezas que camuflam as intolerâncias de um cotidiano já sem gosto.

Também os desenhos de Kentridge revivem os horrores do autoritarismo. Se na animação History of the Main Complaint (1996) dois brancos, sem hesitação nem piedade, chutam o rosto de um negro, no curta Felix in Exile (1994) o racismo ressurge pelo viés da indiferença e do isolamento. Talvez o mais impressionante, em Coetzee como em Kentridge, seja a noção de que a memória daqueles anos se mantém, queiramos ou não, como trauma. As narrativas de um e outro são assombradas tanto pelas lembranças de uma realidade embrutecida quanto pelos esforços de reconciliação pós-Apartheid.
J.M. Coetzee no Salão de Atos da UFRGS, onde proferiu, no mês passado, uma conferência sobre o tema da censura. 
Mestres da autorreferência, criadores de uma obra coerente e de enganosa simplicidade
Coetzee e Kentridge compartilham também a qualidade rara, própria dos grandes autores, da aparente simplicidade. Kentridge emprega o desenho a carvão e a animação mais caseira (o stop-motion), além de um recurso que remonta aos primórdios do cinema (o de-trás-para-diante), para atingir a mais alta sofisticação. Como já notou a professora Ana Albani de Carvalho, aqui mesmo, na edição de 6 de abril do Cultura, ele nunca descamba para a banalidade da decifração. Pede, antes, um olhar atento e uma curiosidade sincera. Suas imagens permanecem como enigmas. Quando parece que matamos a charada, acabamos voltando ao início mais uma vez.

Talvez o mesmo se possa dizer de Coetzee. A clareza da escrita e sua excelência expressiva rapidamente seduzem o leitor. Só aos poucos, com leitura atenta e curiosidade sincera, se alcança o autor em sua agudeza intelectual, seu rigor analítico e até mesmo, mais raro, em seu convite a retomar sentimentos por vezes negligenciados no mundo contemporâneo, os do belo e do bom. Como em Kentridge, há sentimentos, mas não concessão sentimentalista. Antes disso, o compromisso ético e a nota irônica (nunca cínica). Enfim, talvez algo mais aproxime os dois autores. Coetzee e Kentridge recorrem volta e meia à autorreferência. Claramente funcionam como projeção de Coetzee os protagonistas de Desonra, Diário de um Ano Ruim, Homem Lento, A Infância de Jesus: homens velhos ou de meia-idade, cansados da vida, conduzidos a situações desoladoras, tristes, mas prontos a redescobrir a beleza do mundo. Kentridge, a seu turno, empresta sua própria imagem, em fotografia e desenho, para se representar trabalhando ou pensando, literalmente dando voltas em torno de si.

Ainda nessa linha, há nos trabalhos do escritor e do artista elementos, personagens e imagens que continuamente se repetem – sempre com surpresa e algum humor. Em Homem Lento (2005), o personagem título depara com a protagonista de outro livro de Coetzee, Elizabeth Costello (2003), e chega a se perguntar se ele, o homem lento, não seria apenas um personagem secundário – um coadjuvante – em uma trama urdida por ela, Elizabeth. Em Fortuna, há figuras que somem e reaparecem ao longo do trajeto, de uma sala para a outra, de um suporte para o outro, do desenho animado para o espaço tridimensional, e vice-versa.

Claro que essa autorreferencialidade não é exclusividade deles. Uma porção de escritores e artistas visuais vem, com persistência, se dedicando a isso. O caso é que Coetzee e Kentridge sabem fazê-lo muito bem, nos convencem. São mestres.
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* Jornalista e crítico de arte, pós-doutorando em Artes Visuais pela UFRGS (bolsista Fapergs / Capes)
FONTE:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a4148557.xml&template=3898.dwt&edition=22040&section=1029

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