domingo, 31 de março de 2013

Peixe

Rubem Alves*

Tenho estado fazendo uma pergunta às pessoas religiosas: “Por que não se come carne na semana santa e se come peixe?” Até agora a única resposta que ouvi é: não se come carne porque comer carne é o mesmo que comer a carne do Filho de Deus. Resposta tola, sem fundamento eucarístico. Não se come carne e se come peixe precisamente para se comer a carne de Cristo! Pois, o que é a eucaristia? Não é uma refeição em que se come precisamente a carne e se bebe o sangue de Cristo? Foi ele mesmo que assim explicou o sacramento. E onde é que entra o peixe? Todo mundo sabe que o peixe é o símbolo do cristianismo. Símbolo, por quê? A palavra “peixe”, em grego, é “IXTHUS”. Os cristãos viram nessa palavra uma confissão de fé, representada por cada letra: “I”, Jesus; “X”, Cristo; “TH”, de Deus; “U”, o filho; ‘S”, salvador. Come-se peixe precisamente para se comer a carne de Cristo. Come-se peixe para participar da eucaristia.

Ovo de chocolate

Um lixeiro bateu a minha porta para me desejar uma “feliz Páscoa”, na esperança de que minha resposta seria uma nota de dez reais. Aí, só de maldade, eu disse: “Lhe dou se você me disser o que é Páscoa”. Ele não hesitou, sabia muito bem o que era Páscoa: “Páscoa, doutor, é aquele dia quando a gente compra uns ovos de chocolate para as crianças...” Dei-lhe os dez reais. Todo mundo sabe que Páscoa é dia de comer ovos de chocolate. O lixeiro sabia o que todo mundo sabe. No domingo de Páscoa todos dão, como presentes, ovos de chocolate.

Se eu dissesse para o lixeiro que Páscoa é dia de poesia ele não entenderia. A poesia se faz com metáforas. As metáforas são mentirosas. O carteiro, amigo do Neruda, disse: “Sou um barco batido pelas ondas”. Mentira. Ele era um carteiro. Não era um barco batido pelas ondas. Nenhuma pessoa, jamais, foi um barco batido pelas ondas. No entanto qualquer pessoa sabe o que o carteiro queria dizer. Sabe, porque todos nós nos sentimos, por vezes, como barcos batidos pelas ondas. Esse sentimento, entretanto, não pode ser dito em linguagem literal. A poesia é a linguagem das coisas que não podem ser ditas. O poeta diz a sua própria experiência. Mas esta fala, nascida dos sentimentos dele, individuais, tem um poder de reverberação. Ao bater em nós – como o repicar de um sino, ao longe – o corpo estremece emocionalmente. Esse estremecer é a prova de que o poeta, dizendo o absolutamente particular, disse o absolutamente universal.

A Páscoa é um poema. Metáfora. Fala sobre o nosso destino, diante da Morte. Ou, de maneira mais precisa, fala do destino da Vida, diante da Morte. Há uma lei da ciência, a 2ª lei da termo-dinâmica, que diz que o destino do universo é a morte. No fim dos tempos, o universo morrerá. Isso me dá uma grande tristeza. Para dizer a verdade, não me importo muito com a minha eternidade. Mas pensar que o universo vai morrer, isso é muito triste. Adeus barcos, gaivotas, árvores, pássaros, cachorros, crianças, música, amizade, comida, amor: tudo se transformará em nada, eternamente. A morte é o fim. Pois a metáfora da Ressurreição é uma afirmação louca de que a verdade é o contrário: a morte se transformará em vida. Essa afirmação poética está contida na metáfora de um homem que, havendo descido à sepultura, voltou a viver. A semente é enterrada. Se continuar como sempre foi, morrerá. Mas se morrer, brotará como árvore. Todo túmulo é um canteiro.

A função dos dias sagrados, quando se faz uma interrupção nas rotinas da vida, é fazer pensar. Ovos de Páscoa nos fazem pensar. O poema da Ressurreição nos obriga a pensar. A estória não é história, um relato do que aconteceu no passado e, por que aconteceu no passado, nunca mais vai acontecer. A estória da Ressurreição é algo que não aconteceu porque acontece sempre. Ela não pertence ao tempo. Pertence à eternidade. E o eterno não é o tempo sem fim, mas o tempo que é sempre presente. A metáfora de Páscoa nos questiona sobre o que estamos fazendo com a nossa própria vida. Versos de Whitman: “Quem anda duzentas jardas / sem vontade / anda seguindo o próprio funeral / vestindo sua própria mortalha”. Há muitos mortos com a aparência de vivos. A estória da Ressurreição é um desafio para nos livrarmos da mortalha.

Mas o poema, numa outra estrofe, diz que o Ressuscitado subiu aos céus — uma forma poética de dizer que o corpo, a vida, enche o universo inteiro. Na linguagem dos reformadores protestantes o corpo de Cristo é “ubiquo”— está em todos os lugares, até na mais efêmera flor, no menor grão de areia, no mais singelo gesto de amor. Por detrás dos espaços infinitos e do silêncio das estrelas que horrorizava Pascal, há um Rosto que nos olha tranquilamente e nos desafia a sair das sepultura e a viver.
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* Escritor. Educador.
Fonte:  http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/03/30
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