sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O inesperado da renúncia e a bifurcação da Igreja

Jung Mo Sung*


Se há um fato sobre o qual todas ou quase todas as análises concordam ao tratarem da renúncia do papa é o seu caráter inesperado. Há diversas teorias e hipóteses sobre a razão e o objetivo da renúncia.

Provavelmente nunca saberemos de modo satisfatório. Eu não sou "expert” nos assuntos ligados ao Vaticano ou a papado, por isso não vou me atrever a oferecer mais uma hipótese sobre as razões; nem listar as qualidades que gostaria de ver no novo papado. (Aqui mesmo na Aditaljá foram publicados vários artigos sobre esse assunto e eu não tenho nada de importante para acrescentar.) Quero somente compartilhar algumas reflexões sobre o "inesperado”.

Normalmente, nós tememos tudo que nos remete ao inesperado. Parece que o inesperado será sempre algo que perturbe nossa paz ou nos traga problemas. Inesperado nos gera insegurança. É como se a humanidade tivesse um gosto especial pelo conhecido e pela segurança. O medo de muitos pelo desconhecido mostra isso. E o inesperado é o desconhecido que se nos apresenta abruptamente. O fato em si pode ser conhecido, mas a sequência de fatos era desconhecida, por isso é vista como inesperada.
Um truque que a humanidade criou para conviver com esse medo, ou melhor, para diminuir esse medo e insegurança diante do fato inevitável de que o inesperado acontece nas nossas vidas, foi uma determinada noção da providência divina. Segundo essa doutrina, que existe em várias formas, tudo já estaria previsto (nada é inesperado) porque Deus tem controle da história ou porque as leis que regem a vida na sociedade e na natureza são sagradas e, portanto, imutáveis. A ilusão da imutabilidade ou do controle da história pela "providência” divina nos faz esquecer que a vida é feita de acontecimentos inesperados que geram desordem à ordem que era vista como divina ou imutável.

O apego dos setores mais conservadores da Igreja Católica à ideia de que a atual estrutura da Igreja (incluindo o Vaticano e a forma como as igrejas locais são dirigidas) é fruto da Tradição e que, portanto, não podemos modificá-la é também uma variação desse desejo de se apegar a uma ordem pretensamente imutável para negar o inesperado como parte constituinte da vida humana e social.

Diante do inesperado da renúncia, muitos voltam a discutir as "profecias” que já teriam anunciado a sequência dos papas (portanto, não seria inesperado) ou que o Espírito Santo estaria conduzindo todo o processo, desde a renúncia até a eleição do novo papa. Mas, por mais malabarismos retórico que possamos produzir, um fato é inegável: a renúncia foi inesperada.

Um ato inesperado dessa proporção gera, é claro, consequências também inesperadas. Por isso, podemos especular sobre como será o conclave e o novo papado, mas não passam de especulações com maior ou menor probabilidade de acerto.

O inesperado gera insegurança e desordem, mas essas são exatamente as condições de possibilidade do surgimento do novo. Uma nova ordem, isto é, uma nova forma de interação interna da Igreja e de funcionamento na sociedade global poderá surgir dessa tensão entre a ordem existente e a desordem gerada pelo inesperado. Poderá ser uma forma de ser Igreja mais capaz de testemunhar a boa-nova do Reino de Deus nesse mundo marcado pelo Império global. Por outro lado, dessa tensão poderá também resultar uma igreja mais petrificada, menos capaz de compreender o mundo atual e de se renovar para se fazer à altura da sua missão. Este é um momento que os teóricos chamam de bifurcação.

É difícil dizer o que Bento XVI esperava com o seu gesto inesperado. Mas, além da maior humanização do papado –como vários analistas indicaram–, a sua renúncia "balançou” a crença de muitos de que o caminhar da Igreja no mundo já estava traçado pela simples inércia da tradição.
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* Teólogo. Escritor. Jung Mo Sung, autor, com J. Rieger e N. Miguez, de "Para além do Espírito do Império” (Paulus). Twitter: @jungmosung].
Fonte: Adital 

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