segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

A Igreja e a reinvenção do Ocidente

Mauro Santayana*
 

Ao surpreender o mundo — menos alguns íntimos de sua fadiga — com a renúncia ao papado, Bento XVI revela a grande crise por que passa a Igreja Católica. Quando Gregório XII renunciou, em 1415, seu gesto unificou a instituição, então dividida sob três pontífices desde 1378. Ângelo Correr percebeu, com acuidade, que ele assim serviria melhor à sua própria posteridade ao servir à unidade da Igreja e abandonar o trono papal.

Ele não era O Papa, mas a terceira parte de um poder que, dividido, enfraquecia-se cada vez mais diante do mundo e, o que é pior, diante da História. Os dois anos de vida que lhe sobraram — morreu em 1417 — lhe devem  ter assegurado esse consolo. Ele tinha 90 anos ao renunciar — uma idade difícil de atingir naquela véspera do Renascimento — mas deu a seu gesto o claro caráter político, ao negociá-lo com o adversário mais forte e influir na escolha — unânime, do sucessor, Martinho V — da poderosa família Colonna. Não alegou cansaço mas, sim, responsabilidade política.



Mais longa do que o Grande Cisma dos séculos 14 e 15, que durou quase 40 anos, é a já duradoura crise do Ocidente, de que a Igreja foi fiadora e principal organização política, desde Constantino e Ambrósio. Depois da morte de ambos,  a Igreja se proclamou herdeira do Império Romano, com base em um documento apócrifo, a  Constitutum Constantini, segundo o qual Constantino legava ao papa Silvestre I — e, assim, à Igreja — todo o poder político e todos os bens do Império. O documento, forjado no século 8, foi desmascarado por Lourenço Valla,  no século 15.

Um dos mais destacados latinistas e gramáticos da História, Valla provou que o latim usado para redigir o documento não existia no século 4. A inteligência lógica de Ambrósio arquitetou a construção política da Igreja, conduzida na sábia combinação entre a concentração da autoridade espiritual no Vaticano, exercida mediante os bispos, e a distribuição do poder temporal entre os reis e os senhores feudais, sem esquecer o domínio direto  sobre os estados pontifícios, que garantiam a incolumidade dos papas.

Dessa forma foi possível, em esforço de séculos, domar a anarquia, conter e assimilar os bárbaros e dar estrutura política e social à Idade Média, com a consolidação da injustiça de sempre contra os pobres e os pensadores que os defendiam, quase sempre levados às inquisições e à fogueira, como ocorreu a Giordano Bruno, no auge do Renascimento, em 1600.

Ambrósio, nobre burocrata do Império, pagão até ser eleito bispo de Milão, não  agiu como teólogo, que não era, mas, sim, como um dos mais hábeis estrategistas políticos da História. Coube-lhe salvar os pontos basilares da ideia do Ocidente.

A Igreja sempre fez alianças com o poder temporal, algumas piores do que as outras, a fim de evitar a prevalência do verdadeiro cristianismo sobre seus interesses políticos no mundo. É assim que o Vaticano de nossos dias — depois de tolerância criminosa com Hitler, sob Pio XII — mantém o acordo firmado entre Reagan e Wojtyla,  há mais de trinta anos, com o objetivo, atingido, de destruir a União Soviética e combater o socialismo. É preciso lembrar que, para o êxito da conspiração, contribuíram o traidor Gorbatchev, hoje garoto propaganda dos artigos de luxo da Louis Vuitton,  e as operações do Banco Ambrosiano (valha a coincidência), para financiar o Solidarinost, o sindicato de direita da Polônia, liderado por Lech Walesa.

Mesmo que não a desejasse, Ratzinger seria compelido à renúncia, pelos mais eminentes membros da Cúria Romana, que se preocupam com a sanidade mental do pontífice, cujo engajamento com os setores mais conservadores da Igreja tem comprometido o seu arbítrio. Acrescente-se o movimento, subterrâneo, mas vigoroso, da Igreja Latina — e mais perceptível no episcopado italiano — de encerrar o período de papas menos universais e empenhados em sua razão nacionalista, como o polonês e o alemão. Isso não significa que o clero italiano recupere a Santa Sé, mas anuncia uma campanha intensa durante o conclave em favor de um candidato com as chances de Ângelo Scola, atual arcebispo de Milão, e advogado de diálogo franco e aberto com o islã.


Em seu pronunciamento de renúncia, o papa associou seu gesto à crise do pensamento ocidental, no tempo de alucinantes mudanças: “...   no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor, quer do corpo quer do espírito; vigor este que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado”.        

Como anotou Gregório de Tours, no enigmático século 6, o mundo de vez em quando envelhece, encasulado na dúvida, e reclama a metamorfose. A Igreja Cristã (não só a Católica) e o Ocidente, xifópagos há 16 séculos, necessitam reinventar-se. Talvez a astúcia hoje dependa de pensadores abertos, como o arcebispo de Milão, sucessor de Ambrósio no episcopado. Talvez seja o tempo de se convocar não um Concílio da Igreja Católica mas de organizar-se  um Concílio Ecumênico Universal, para salvar a ideia de um Deus comum, reunindo todas as crenças em nome da vida e da paz entre os homens de boa vontade.
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* Jornalista.
Fonte: Jornal do Brasil, 11/02/2013
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