quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

A filha do tempo

 L. F. Veríssimo*
 

Ricardo III, cuja ossada acaba de ser descoberta sob um estacionamento em Londres, é o melhor – ou, no caso, o pior – dos vilões de Shakespeare. Nenhum outro tem, como ele, tanta consciência da própria vilania e a exerce com tanto gosto. O Ricardo III do Shakespeare e da História é um monstro que manda matar seus pequenos sobrinhos para herdar o trono, seduz a viúva de um homem que acaba de matar e comete um sortimento de maldades para se manter no poder – sempre festejando seu próprio mau caráter. Foi o último rei da Inglaterra a morrer em combate e, segundo Shakespeare, na véspera da batalha em que perderia a vida (pedindo “Um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo!”), é visitado pelos fantasmas de suas vítimas, e ouve de todos a mesma imprecação: “Desespera e morre!”.

Mas Ricardo III pode ter sido injustiçado pela História e por Shakespeare. Uma escritora escocesa de livros policiais chamada Josephine Tey colocou o herói de várias das suas histórias, o inspetor Alan Grant, da Scotland Yard, numa cama de hospital com uma perna quebrada e sem nada para fazer. Para combater o tédio, Grant resolve investigar, usando apenas livros e documentos que lhe são fornecidos por um amigo pesquisador, a verdadeira história do suposto tirano. A conclusão do inspetor e da sua criadora é que Ricardo III não era nada do que diziam dele. Talvez a sua deformidade física – ele era corcunda, o que foi comprovado pela ossada recém recuperada – tenha contribuído para a sua fama de monstro. Mas não há registro histórico da sua monstruosidade. Nenhum documento da época menciona as pobres crianças presas na Torre de Londres até o tio desalmado mandar matá-las. E, além de tudo, Grant, contemplando um retrato dele pintado na época, deduz que aquela não é a cara de um assassino. Antes, é de um doce de pessoa.

O título do livro de Josephine Tey é A Filha do Tempo. Vem da frase de autor desconhecido: “A verdade é filha do tempo” . Os fatos que geram a História são alterados pela má memória, pela interpretação conveniente, pela ornamentação fantasiosa, por tudo que vem com o tempo depois do fato. Com o tempo, o mito vira realidade e a realidade vira mito. Mas é só dar mais tempo ao tempo, que a verdade aparecerá.

O exame dos ossos de Ricardo III não revelará nada sobre sua personalidade, mas é provável que o novo interesse pela sua figura resulte numa correção da injustiça. O que não seria mais do que a História está lhe devendo.
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* Jornalista. Escritor. 
Fonte: ZH on line, 07/02/2013
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