terça-feira, 31 de dezembro de 2013

FELIZ ANO NOVO!

 

A vida é primeiro tédio, depois medo.
  Usemo-la ou não, passa,
Deixa o que algo escondido escolhe por nós,
E a velhice, e depois o irremediável 
fim da velhice.

"Dockery and Son", poema de Philip Larkin, foi escrito em 1963 e publicado, com outros 31 poemas, no volume "The Whitsun Weddings", editado pela Faber and Faber.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

MAX ATRAI JOVENS EM BUSCA DE EXPLICAÇÕES PARA CRISES URBANAS

 Luis Ushirobira/Valor / Luis Ushirobira/Valor
O geógrafo britânico David Harvey lotou auditórios em três diferentes cidades do país - Florianópolis, São Paulo e Rio de Janeiro - em novembro, quando veio para falar sobre o capitalismo e promover um de seus livros mais antigos, "Os Limites do Capital", lançado em 1982 nos Estados Unidos, mas somente agora traduzido para o português pela Boitempo. A plateia, formada por pessoas especialmente na faixa dos 20 anos, mostra o interesse cada vez maior pelo autor, sobretudo, entre os leitores mais jovens.

Segundo a editora, 4,2 mil pessoas participaram dos quatro eventos realizados com o autor no país. Aos 78 anos, o próprio Harvey não sabe explicar essa audiência tão grande. Uma possível resposta, diz, é que há um aumento de interesse pelas ideias de Karl Marx (autor de referência para Harvey) após 2007-2008, a maior crise do capitalismo desde 1930. Mas, segundo o geógrafo, isso é só parte da verdade.

Harvey acha que se tornou uma pessoa mais conhecida ao fazer um site na internet há cinco anos e por ter colocado um curso gratuito na rede sobre "O Capital", obra de Marx. Ele conta que já são 2,5 milhões de visitantes no seu site e o curso já está traduzido para 27 idiomas, com a contribuição voluntária de pessoas que criaram legendas para as aulas.

O autor tem um olhar interessante e didático para a obra de Marx, na qual encontrou explicações para os conflitos do espaço urbano, sobretudo porque a mais recente crise relaciona mercado imobiliário e sistema financeiro mundial. Alguns pesquisadores acham que as ideias de Harvey ajudam a explicar os problemas vividos em grandes cidades como São Paulo, e são eles que estariam por trás dos conflitos ocorridos nas manifestações de junho.

A imersão em Marx começou a partir de um estudo nos anos 60, quando Harvey analisava o sistema imobiliário de Baltimore, nos Estados Unidos. Para ele, que atualmente é professor na pós-graduação da City University of New York, a paisagem geográfica é palco de um conflito social onde a luta de classes pode ser vista concretamente.

Acompanhando de longe as manifestações de rua no país e em outras cidades do mundo, o geógrafo diz que essa é uma nova forma de fazer política. Mas, ao mesmo tempo, para ele, é preciso relacionar esse tipo de ativismo político com o que chamou de alienação universal.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: O que torna as ideias de Karl Marx atuais?
David Harvey: Acho que as ideias de Marx sempre foram importantes. A questão é: qual o contexto em que as ideias foram usadas e como foram usadas. Foi mais difícil usar ideias de Marx em relação ao capital diretamente entre os anos 60 e 70. Mas, como consequência do neoliberalismo [corrente de pensamento que se evidenciou no pós-1970], ficou mais direta a conexão entre o que Marx dizia e o que está acontecendo ao nosso redor. A outra coisa é que, quando escrevi o livro, eram recentes as questões sobre o capital financeiro, não havia muitos escritos e questões sobre o papel da especulação, e, em particular, sobre a especulação imobiliária no espaço urbano. Agora, acho que é ainda mais importante esse olhar, porque a última crise, de 2007-2008, não se originou no mundo da produção, mas no da urbanização, particularmente, no sistema de financiamento imobiliário. Se voltarmos ao volume 3 de Marx, ele faz uma análise sobre a crise de 1847-48 e a de 1857. Nos dois casos, são crises financeiras e comerciais e não crises na produção. Então, Marx tinha uma teoria sobre crises financeiras e comerciais que ninguém tinha olhado.

"A coisa marcante é que nenhum dos eventos que estamos 
vendo foram antecipados"

Valor: O que o sr. poderia citar como um paralelo das crises que Marx estudou com a crise de 2008?
Harvey: Marx faz um considerável exame do que ele chama de papel incorreto do 'Bank Act', de 1844, quando o governo britânico fez uma revisão do papel do banco central. Marx mostra como aquela revisão exacerbou a crise posterior. Tornou-a mais profunda e longa do que seria. Acho que essa é uma boa maneira de se pensar o papel hoje do Banco Central Europeu (BCE). O BCE está tornando a crise mais profunda e estendendo-a na Europa. Acho que Marx é ainda mais interessante agora.

Valor: O sr. afirmou que a forma de trabalho caracterizado pela mão de obra barata em vários países também pode ser entendida usando a teoria de Marx.
Harvey: Marx fala de alienação no processo de produção. Entre os marxistas, há muitas críticas contra o termo alienação, porque ele não seria científico, seria mais emotivo e instável. Acho que isso é um grande erro, porque vimos que muitos protestos que aconteceram, e ainda acontecem, no mundo neste momento se originaram em um tipo de reação emocional. E muitos deles são instáveis. Então, esse é um ótimo momento para voltarmos a levantar questões sobre a alienação e como ela se relaciona com o ativismo político. A alienação produz diferentes tipos de respostas. As pessoas podem falar: 'Não posso fazer nada, não é da minha conta', e ficam sentadas assistindo à TV. Ou as pessoas ficam tomadas pela raiva. Nós temos visto muitos movimentos sociais nos anos recentes que são caracterizados por essa raiva explosiva em uma população, que parecia estar indiferente. Isso é um clássico modo de como a política da alienação ocorre no dia a dia. Acho que estamos lidando com uma coisa que chamaria de alienação universal nesse momento. Alienação sobre o trabalho, alienação sobre a natureza da vida urbana, alienação nos protestos...

Valor: Esse momento político pode mudar algo, sendo um tipo de alienação, ou não pode mudar nada?
Harvey: Essa é a dificuldade da política da alienação. Ela produz essa raiva e a questão é se essa raiva pode mudar, ser organizada e se transformar em um projeto político, nos levando para um mundo diferente. Isso me parece a grande questão no momento. O que existe é que a efervescência segue e vemos emergir novas formas de organização política. Pode ela de alguma forma superar suas diferenças e capturar a raiva existente e torná-la uma força política? Não sei se isso pode de fato acontecer.

Valor: Os protestos são fragmentados em todo o mundo. É necessário tornar esse movimento global para uma mudança significativa?
Harvey: Protestos globais possuem uma dinâmica curiosa. Se você olhar para trás, historicamente, em 1848, havia uma revolução em Paris, Londres, Frankfurt, Milão, mas a revolução acabou tomando todo o continente. Ninguém organizou isso em todos os lugares. Isso apenas aconteceu. Em alguns países recentemente houve esses movimentos de "occupy". Lembro-me melhor do movimento de 15 de fevereiro de 2003, quando havia perigo de guerra no Iraque e todo o mundo - 2 milhões de pessoas em Roma, 2 milhões de pessoas também em Madri, Nova York e Londres - fizeram um protesto simultâneo, sem nenhum plano organizado. A coisa marcante da situação atual é que nenhum desses eventos que estamos vendo foram antecipados.

Valor: Algumas pessoas analisam o protesto no Brasil como de pessoas que buscavam ter direito à cidade, um termo que o sr. usa...
Harvey: Não sei quais os movimentos sociais envolvidos, não estava aqui, então acho difícil fazer um julgamento. Eu ouvi isso de fontes confiáveis. E aceito que esse era um elemento. Mas não posso responder isso.

Valor: O sr. tem dito que há hoje um problema comum em diversas grandes cidades do mundo, relacionado ao aumento do capital especulativo imobiliário...
Harvey: O capitalismo está vivendo um duro momento. Na verdade, nos últimos 20, 30 anos ele está tentando achar formas alternativas e lucrativas para o investimento, porque a clássica forma de investimento está reduzindo seus retornos. Foi assim com o 'boom' dos eletrônicos da década de 90, que se tornou muito especulativo, e também com a bolha da internet que resultou no 'crash' do mercado de ações em 2000. E depois o dinheiro começou a ir para o mercado imobiliário e tivemos um 'crash' entre 2007 e 2008. Os sinais são de que o capitalismo não sabe nesse momento o que fazer com o excedente.

Valor: Como assim?
Harvey: O Federal Reserve (Fed, banco central americano) está colocando mais dinheiro na economia. A maior parte está indo para o mercado de ações e outra parte está ficando dentro do sistema bancário. Quase nada tem sido de fato investido na produção. Esse capital está, portanto, apenas circulando no sistema financeiro e as pessoas estão desesperadas para achar onde colocar o capital. A reurbanização é um dos locais em que o excedente pode ser absorvido com bons rendimentos [para o capital].

Valor: Quais lugares o sr. poderia citar como exemplo de onde isso ocorre atualmente?
Harvey: Na China, uma grande quantidade de dinheiro tem ido para a urbanização. Não me surpreende que existam megaprojetos no urbano. Esse tipo de investimento cria uma estrutura Ponzi [especulativa]. Você põe dinheiro na cidade, a cidade começa a explodir, e todo mundo coloca dinheiro nisso, e os preços das propriedades em todo o lugar sobem expressivamente. Isso está acontecendo em São Paulo, Londres, Xangai, Hong Kong e em Mumbai. Há muitas vezes remoção de população e isso tem trazido algum tipo de resistência. Por isso, não é acidentalmente que os maiores eventos políticos dos últimos tempos sejam sobre as cidades, sobre a vida urbana. Esse é um campo de uma vigorosa contestação política no momento. E continuará a ser até o capital encontrar outra coisa para aplicar seus recursos.

Valor: Estamos vivendo um momento em que há ainda mais aprofundada a divisão entre a cidade do rico e a cidade do pobre dentro de uma mesma cidade?
Harvey: As cidades sempre foram divididas em classes. Sempre foram microestados. Mas provavelmente as desigualdades aumentaram, porque a desigualdade de renda aumentou também. Por exemplo, na cidade de Nova York, em 2012, 1% da população vivia com US$ 3,75 milhões por ano, enquanto 50% da população tentava viver com menos de US$ 30 mil. Nunca vimos níveis de disparidades desse tamanho desde 1920. Nova York se tornou uma cidade incrivelmente rica, a cidade está indo muito bem, mas grande parte das pessoas está ficando muito pobre. Quando isso acontece, você vê mais lutas emergindo, derivadas dessas desigualdades.

"Na verdade, acredito que o custo do trabalho não faz 
muito diferença para o capital hoje"

Valor: E como mudar isso?
Harvey: Nós temos um prefeito recém-eleito na cidade de Nova York [o democrata Bill de Blasio]. E é possível que ele mude algumas coisas, mas não acredito que ele terá poder suficiente para fazer tudo que é preciso.

Valor: Quais poderes o prefeito tem, uma vez o sr. o entende que há uma dinâmica global do capital que vai além da jurisdição do prefeito?
Harvey: Ele tem alguns poderes de redistribuição. Ele tem falado sobre colocar impostos especiais sobre os muito ricos para que todas as crianças tenham acesso a creches públicas. Isso seria um benefício fantástico, porque não há educação desse tipo gratuita. As pessoas ricas de Manhattan pagam por essa educação. Se ele fizer isso, será algo muito progressivo.

Valor: Na sua opinião, apesar dos movimentos globais, há espaço para políticas públicas locais para o desenvolvimento...
Harvey: Algumas cidades vão melhor do que outras nesse sentido. Isso depende muito do tamanho do poder que um prefeito tem. Em alguns lugares, ele tem mais poder. Nos Estados Unidos, isso é muito significativo. Por exemplo, Baltimore gostaria de ter imigrantes ilegais vindo para a cidade e prometeu que a força policial nunca perguntaria a ninguém sobre seus documentos e não seriam levados para as autoridades de imigração. Baltimore também iniciou o movimento chamado de "living wage" (salário digno), que consistia de a cidade pagar esse salário para todos os funcionários públicos e todos os subcontratados relacionados com os serviços para a cidade. Então, por esses mecanismos, a iniciativa local pode fazer algo, que talvez só fosse feito em nível federal, ou que pode ir até mesmo contra o que seria uma lei federal.

Valor: A mudança depende do poder dos movimentos sociais?
Harvey: Baltimore se tornou uma cidade com 'living wage' por causa dos movimentos sociais fortes. Quando chegou a eleição, os candidatos tiveram que ter uma plataforma onde esses grupos foram ouvidos. Quem se dizia contra, não recebeu os votos desse movimento. Esse tipo de movimento político, por exemplo, ocorre muito nas igrejas e nas escolas. É muito interessante olhar como os republicanos se tornaram tão poderosos. Foi justamente por possuírem posições nos quadros dos conselhos das escolas. E a esquerda está agora vendo como os republicanos fizeram e entendendo que deveria fazer o mesmo.

Valor: O sr. acha que existe um caminho possível de transformação que se dá inevitavelmente por meio de partidos políticos?
Harvey: Tem uma vertente dentro da esquerda americana que acredita que para fazer alguma mudança, precisa mudar isso dentro do Partido Democrata. O partido agora está controlado por pessoas de muita fama, próximas a Wall Street. Há limites sobre o que se pode fazer com essas pessoas, pode-se tentar fazer uma agenda reformista. Mas também se pode fazer reformas revolucionárias.

Valor: O que seriam essas reformas revolucionárias?
Harvey: Quando os trabalhadores se juntam e cortam a jornada de trabalho, muitas vezes fazem um favor para o capital, porque o capitalismo impõe uma superexploração aos trabalhadores até o ponto em que não são eficazes no seu trabalho. Então, quando se corta a jornada, há trabalhadores mais sadios e mais eficazes. As fases iniciais da luta para cortar jornada de 14 horas para 10 horas, portanto, ajudam o capital. Podemos imaginar que se cortarmos de 10 horas para 3 horas, essa mudança não daria vantagem para o capital, mas aos trabalhadores. A luta pela redução da jornada no começo tem características de reformista, e em algum ponto ela se torna revolucionária.

Valor: A redução de jornada é uma conquista que geralmente ocorre com ajuda sindical, mas algumas empresas tentam evitar locais onde há sindicatos fortes para instalação de suas fábricas...
Harvey: Hoje, já não é tão importante fugir de locais em que são fortes os movimentos sindicais, porque em muitas produções a quantidade de mão de obra é muito reduzida. Comparado com o resto, as variações no custo do trabalho já não fazem grande diferença. Na verdade, acredito que o custo do trabalho não faz muito diferença para o capital hoje.

Valor: O que faz diferença?
Harvey: Custo da terra, de matérias-primas, isenções de impostos, eficiência na exportação... Acho que isso hoje é relativamente mais importante. Hoje, a quantidade de homens necessários para construir um carro é muito pequena.

Valor: Há alguns críticos que dizem que todas as ideias usadas pelo sr. estão em Marx, pouca coisa seria novidade...
Harvey: É verdade que estou sempre em constante diálogo com Marx. Mas estar em diálogo com ele não significa que necessariamente eu concordo com tudo que Marx diz. Tem vários aspectos de Marx que não aceito. Eu não gosto da teoria da tendência da taxa de lucro decrescente, não gosto da teoria da renda absoluta. Minha visão sobre Marx é que posso usá-lo toda vez que faz sentido para mim em termos do tipo de trabalho que estou fazendo sobre urbanização ou de desenvolvimento geográfico desigual. Se não faz sentido naquele contexto, tenho que transformar o que Marx está dizendo em outra coisa. Ou tenho que abandoná-lo. Eu faço as duas coisas.
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Reportagem  Por Vanessa Jurgenfeld | De São Paulo
FONTE: Valor Econômico online, 30/12/2013

O BRASIL PODE DAR CERTO?

Renato Janine Ribeiro*
Agência Brasil/ABr
Nenhum inglês rico completava a educação, nos séculos XVII e XVIII, sem o "Grand Tour", uma longa viagem ao continente europeu para conhecer cidades e artes. (O mais ilustre dos preceptores desses moços foi o filósofo Thomas Hobbes, que assim conheceu René Descartes.). Seria bom, hoje que a Europa está ao alcance da classe média, que nossos jovens a visitassem para aprender o que é uma realidade socialmente justa. Ao menos no núcleo duro da Europa Ocidental - França, Alemanha, Benelux, Escandinávia - uma cultura basicamente socialdemocrata se implantou após a Segunda Guerra e ainda resiste, formando um modelo de sociedade até hoje insuperado, superior ao nosso e ao norte-americano.

Levantei no Facebook a questão que considero a mais relevante para o Brasil: por que países devastados, como a Alemanha de 1945, ou atrasados, como a Espanha de 1975, conseguiram "dar certo" - e nós não? As respostas racharam. Em geral, quem se situa à "esquerda" protestou contra a ideia de "dar certo", sustentando que nem os europeus vão bem nem nós, tão mal. Já quem se diz liberal receitou reformas econômicas, como a desregulamentação da atividade empresarial (o exemplo mais comum). Entendo que essas são duas formas de não responder à pergunta mais importante sobre a sociedade brasileira.

Ética e gestão, os dois pilares 
da boa política

Começo discutindo as reações mais à esquerda.

Primeiro, o que é uma sociedade "dar certo"? Entendo:

1) um sistema de saúde eficiente e justo. Eficiente: que todos sejam atendidos bem, em prazo razoável, pelo menos para a maioria esmagadora das moléstias. Justo: ninguém receie que uma doença possa destruir sua renda ou patrimônio; a sociedade, pelo imposto (em especial, o de renda da pessoa física), cobrirá os gastos de saúde. Imaginem como esse ganho em termos de saúde melhorará as aposentadorias. Ninguém precisará passar a vida acumulando para o dia em que pagará 2 mil reais de plano de saúde, mil de remédios e ainda consultas e cirurgias.

2) uma educação de qualidade, gratuita ou quase. A importância inédita que a sociedade contemporânea atribui à educação tem duas grandes metas. Primeira: proporcionar, a todos, condições de concorrer em certa igualdade, neutralizando o bônus que a riqueza confere a alguns (e o bônus negativo que a pobreza inflige à maioria). Segunda: deixar que aflorem as mais variadas competências. Nunca houve sociedade rica e complexa como a atual. Ela precisa de competências mais variadas do que sociedades que só repetiam o passado. Hoje há mais espaço para cada um seguir sua vocação. Uma educação boa realiza vocacionalmente o indivíduo e capacita-o, se mostrar dedicação e empenho, a se projetar economicamente.

3) um transporte público bom, em grande parte - pelo menos nas maiores cidades - sobre trilhos. Na Grande Paris, mesmo no horário de pico dificilmente se gasta mais de uma hora e quinze para ir de uma ponta dos subúrbios a outra - com ou sem acidentes na rota. O transporte coletivo deve ser subsidiado, porque traz vantagens para a cidade, preservando-a da destruição operada por carros e avenidas. O Brasil é perverso: subsidia o carro privado, com isenção de impostos e construção de vias; por que não o transporte coletivo, que é mais saudável?

4) uma segurança pública decente, com policiais que respeitem o cidadão em vez de ameaçá-lo, e sejam dispostos e capacitados a apurar crimes.

Todos estes pontos associam ética e eficiência, valores e gestão. Todos tratam do que é mais justo socialmente, e do que é mais eficaz, virtude esta que geralmente associamos à economia e à administração. A fusão da ética com a eficiência é o segredo - que aguardamos - da boa governança.

Poderia falar da cultura, que aprimora qualidades humanas e capacidades profissionais, e das cadeias, que em vez de educar para o crime deveriam recuperar os detentos (como nas prisões rurais autogeridas de Minas Gerais, tema de recente reportagem do Valor), mas fico no "minimum minimorum". No Brasil, já seria uma revolução.

Esta satisfação das necessidades dá à Europa uma tranquilidade no convívio cotidiano. Se no Brasil as pessoas furam fila e passam pelo acostamento, em parte é pela crença de que "não vai haver o suficiente para todos": precisamos garantir o nosso, antes que a oferta se esgote. Mas, quando há bastante para todos, isso não é necessário. A vida fica melhor. O valor disso não tem preço.

Por isso, estranhei tanta gente que se diz de esquerda fechar os olhos ao desastre social que é nosso atraso nestes pontos. Os avanços petistas na inclusão social apenas tornam prioritária a construção de uma sociedade social-democrática (pouco a ver com o que propõe nosso partido de nome socialdemocrata). As faixas exclusivas de ônibus recentemente abertas em São Paulo fazem parte dessa mudança, mas que precisa ir além do emergencial - como as cotas, o elogiado Bolsa Família - e se tornar estrutural.

Estes anos, aumentou o dinheiro para os pobres consumirem, mas não houve um salto real nas funções distintivas do poder público. É paradoxal. O partido mais acusado de estatista promoveu um crescimento que beneficiou os pobres, sem tirar dos ricos. Talvez esteja se esgotando essa conciliação de classes. Talvez por isso, os conflitos sociais se tornem ásperos.

Discutirei, na semana que vem, o que a centro-direita propõe para o país dar certo.
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* Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
Fonte: Valor Econômico online, 30/12/2013

A reinvenção da América Latina

 Luis Hernández Navarro (*)

Arquivo

Se até agora sua inserção com o resto do mundo esteve condicionada pela presença das potências imperiais, com o novo século começou a trilhar outro caminho

Em 1958, o historiador mexicano Edmundo O’Gormam publicou um livro intitulado La invención de América, com o qual sacudiu a historiografia dedicada a documentar e explicar o descobrimento e a conquista americana. Inventar, significa, de acordo com o dicionário da Real Academia da Língua, achar ou descobrir algo novo ou não conhecido.

Em seu texto, O´Gormam explica, de maneira nova para seu tempo, a forma em que o relato sobre a história e o devenir do “novo continente” foi construído. Hoje, retomando essa imagem, podemos dizer que América Latina está se reinventando.

O conceito América Latina tem por trás de si uma longa história. Muitos anos antes de que O’Gormam publicasse sua obra, em 1857, o escritor colombiano José María Torres escreveu em seu poema Las dos Américas as chaves do novo imaginário regional: “Mais isolados se encontram, desunidos/Esses povos nascidos para aliar-se:/A união é seu dever, sua lei amar-se:/Igual origem têm e missão; /A raça da América latina, /A frente tem a saxã raça, /Inimiga mortal que já ameaça”.
Pouco antes, em 1856, o filósofo chileno Francisco Bilbao, havia usado, durante uma conferência, o mesmo termo.

A região está em um processo de reinvenção porque sua visão de si mesma, seu destino como território e sua relação com as grandes potências, especialmente com os Estados Unidos, está se transformando radicalmente. Se, até agora, sua inserção com o resto do mundo esteve condicionada pela presença das potências imperiais (Espanha, Portugal, Inglaterra, França e Estados Unidos), com o novo século começou a construir-se como um conglomerado de nações com processos de integração crescentemente soberanos.

Trata-se de um processo complexo, ambíguo, em algumas ocasiões contraditório, que não avança em linha reta, no que nem tudo está definido e cujo destino final não está ainda escrito. Um processo no qual suas riquezas naturais, como a abundância de água doce (cerca da metade do planeta), suas reservas de petróleo e gás, seus recursos minerais e a riqueza de sua biodiversidade, desempenham um papel central.

Como sinais distintivos dessa reinvenção se encontram, entre outras, a refundação de vários Estados nacionais a partir de Assembleias Constituintes; a ruptura com o Consenso de Washington; a recuperação de sua soberania petrolífera, de seus recursos naturais e bens estratégicos; o pôr em prática de políticas de inclusão social, redistribuição da renda e reconhecimento da diversidade cultural; a existência de poderosos movimentos sociais emancipatórios, e a assinatura de acordos de integração regional guiados pela ideia da cooperação, a complementação econômica e a ajuda mútua.

Essa reinvenção da América Latina implica, obrigatoriamente, uma nova redefinição de seu lugar na orbe, no qual abandone seu lugar como “pátio dos fundos” dos Estados Unidos. Um novo papel internacional no que tem como ferramentas medulares, a construção de foros e entidades regionais sem a presença de Washington – Mercosul, Unasul, Alba e Celac – e a diversificação das relações econômicas, comerciais e tecnológicas com nações que, em outras zonas do planeta, fazem contrapeso geopolítico a Washington, como a China, a Rússia e o Irã.

O fim da Doutrina Monroe

O último dia 18 de novembro, na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), o secretário de Estado John Kerry, anunciou o fim da era da Doutrina Monroe e a decisão dos Estados Unidos de compartilhar responsabilidades com os outros países do continente e tomar decisões como companheiros no marco de uma relação de iguais.

Entretanto, tão logo como foi proclamado, esse suposto fim do velho enunciado colonialista redigido por John Quincy Adams e enunciado pela primeira vez pelo presidente James Monroe – A América para os americanos –, foi desmentido pelo chefe da diplomacia estadunidense. Contradizendo suas palavras, marcou a agenda de seu país para a região: promover a democracia, melhorar a educação, adotar novas medidas de proteção ambiental e desenvolver o mercado energético. E, emendando, criticou a os governos de Cuba e Venezuela.

O fim da Doutrina Monroe tem, como pano de fundo, uma perda relativa da influência de Washington na região, não como produto de uma decisão da superpotência, mas como resultado das lutas dos movimentos sociais e a eleição de governos progressistas que reivindicam a recuperação da soberania, a ruptura com o neoliberalismo e a integração latino-americana. Esses projetos modificaram o esquema de relação com os Estados Unidos.

Entretanto, esta mudança não implicou, nem muito menos, o fim do domínio estadunidense na região. O Império está muito longe de ser um tigre de papel. Apesar dos problemas que enfrenta em todo o mundo e do surgimento de novos eixos de poder, sua supremacia militar, o vigor de suas empresas e investimentos, sua capacidade para condicionar os fluxos comerciais a seu favor, a hegemonia semântica de suas indústrias culturais e a fortaleza de suas agroindústrias o convertem na única potência estratégica global.

Estados Unidos é o país com maiores gastos militares no mundo. Em 2011, seu orçamento para este ramo representou 40% dos gastos totais no planeta, seguido, muito de longe, pela China e pela Rússia. É, também, o principal fabricante e exportador de armamento. Este predomínio tem atrás de si uma poderosa base produtiva. Lockheed Martin, Boeing e BAE Systems lideram a indústria militar mundial. As duas primeiras são estadunidenses.

Seu poderio e superioridade bélica se complementam com as 827 bases militares no mundo, 27 delas na América Latina. Em abril de 2008, restabeleceu o funcionamento de sua IV Frota, responsável pelas operações no Caribe, América Central e América do Sul.

Apesar de suas dificuldades, a economia estadunidense continua sendo a de maior grandeza do planeta. Seu PIB nominal representa uma quarta parte do PIB nominal mundial. Das 500 maiores empresas do mundo, 133 têm sua sede nos Estados Unidos, o dobro do total de qualquer outro país. Por vendas, 8 das 10 principais companhias da orbe são estadunidenses; por valor, 9 de cada 10, por tecnologias da informação e comunicação, 3 das 4 primeiras. Este Império conserva, a pesar das relocalizações, um relevante e competitivo setor industrial, especializado em alta tecnologia, que elabora 20% da produção manufatureira da terra. Seu mercado financeiro é o maior.

Para a Casa Branca, a comunicação e as novas tecnologias associadas a elas foram, desde a década de 50 do século XX, assunto de Estado. Sabe-se que quem conduzir a revolução informática será quem disporá do poder no futuro. Os artigos culturais e de entretenimento são uma de suas principais geradoras de divisas. Sua presença ultrapassa a esfera exclusivamente mercantil: seus produtos vendem um estilo de vida, são parte de uma hegemonia semântica.

Os Estados Unidos são o maior exportador agrícola mundial e mandam a metade de seu trigo e soja e três quartos de sua colheita de algodão a compradores internacionais. A China é o principal destino das vendas neste terreno.

A presença de Washington na América Latina em todos estes ramos é notável. É o principal abastecedor de armas para a região, apesar da crescente exportação russa e chinesa. De longe, é a potência militar mais influente na área. É, também, o principal investidor estrangeiro direto. Todo tipo de empresas desse país faz negócios no hemisfério.

Apesar da crescente presença chinesa, os consumidores latino-americanos compram em seus países uma vasta variedade de mercadorias com o selo “Made in USA”. As exportações de automóveis, computadores, milho, trigo, séries de televisão, carnes, filmes, sucos e frutas congeladas, celulares, brinquedos, cosméticos, combustíveis e aeronaves não cessam. Dos 20 acordos de livre comércio que os Estados Unidos têm com diversos países no mundo, a metade deles foram firmados com nações latino-americanas e do Caribe. Em 2011, as exportações de produtos estadunidenses aos países deste sub-continente alcançaram 347 bilhões de dólares. O aumento de 54% nas exportações para a região, é maior que a taxa média de crescimento de exportações com o resto do mundo. Aproximadamente 85% dos bens que comercializa Washington entram livres de impostos no Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua, México, Panamá e Peru.

Como se fosse pouco, como afirmou Juliam Assange, 98% das telecomunicações da América Latina até o resto da orbe passam pelos Estados Unidos, incluídos mensagens de texto, chamadas telefônicas, correios eletrônicos. Esse país tem à mão a informação de como se comporta a região, o caminho que seguem as transações econômicas, o comportamento e as opiniões dos principais atores políticos.

Ainda que formalmente declare o fim da Doutrina Monroe, seu intervencionismo na região é evidente, através de temas como o narcotráfico, o terrorismo e a migração, além de sua participação “discreta” em golpes brandos como os registrados em Honduras e Paraguai. Sua influência se faz sentir, também, na aposta pela Aliança do Pacífico, como contrapeso aos outros processos de integração da América Latina.

O dragão chinês

A atual bonança econômica da América Latina está estreitamente associada à entrada da China no hemisfério. O dragão asiático é um voraz consumidor dos alimentos, minerais, metais e combustíveis que se produzem na região. O investimento desse país foi central em permitir à área enfrentar sem grandes descalabros a recessão econômica de 2009.

A presença chinesa no hemisfério aumenta aceleradamente em todos os ramos: intercâmbios comerciais, investimentos diretos, financiamento e, inclusive, atividades culturais. Salvo um declive no crescimento ou graves conflitos políticos na nação asiática, nada parece indicar que esta tendência vá desaparecer.

Os investimentos da pátria de Mao Tse tung na América Latina aumentaram de 15 bilhões de dólares em 2000, para 200 bilhões em 2012. Em 2017 poderia alcançar a cifra de 400 bilhões. O volume de comércio deste país com o Brasil, o Chile e o Peru superou o que estas nações tiveram com os Estados Unidos. O gigante oriental foi, também, o segundo destino comercial da Argentina, Costa Rica e Cuba. Cerca de 40% das exportações agropecuárias da região vão para este país(1).

Os investimentos diretos da China na área em 2011 superaram os 8,5 bilhões de dólares. E, entre 2005 e 2011, concedeu empréstimos a países do hemisfério por 75 bilhões de dólares. Se trata de investimentos e empréstimos não condicionados à aceitação de dogmas de desenvolvimento, considerações ideológicas ou critérios estritamente políticos. Eles falam sempre de cooperação e apoio mútuo.

Segundo informa o periódico El País, a dependência da economia da América Latina com a China é tão grande, que a cada 1% que cresce o PIB no país asiático, aumenta 0,4% na região; a cada 10% que cresce o dragão asiático, se incrementam as exportações do hemisfério em 25%.

A crescente presença da China em uma área que tradicionalmente foi zona de influência estadunidense, não se topou com a animadversão de Washington. O Império tem tentado conter e administrar o impacto da potência oriental e circunscrevê-lo à esfera estritamente econômica. Por sua vez, Pequim tem atuado com cautela e tem deixado claro que sua intenção é ampliar suas fronteiras econômicas.

Entrevistado pelo El País, Daniel P. Eriksan, assessor do escritório para o Ocidente do Departamento de Estado dos Estados Unidos, disse, cauteloso, que a crescente economia do país asiático lhe obriga a procurar novos mercados, uma necessidade que também compartilha a América Latina pelos mesmos motivos.

O urso russo e as mineradoras canadenses

Impulsionada pelas crescentes vendas de armamento para a América Latina, a Rússia começou a redesenhar sua presença na região. Entre os quinquênios 1999-2003 e 2004-2008, as exportações de armamento do urso ao hemisfério cresceram em 900%. Se trata de seu novo mercado de produtos bélicos mais relevante. A Rússia abastece equipamento militar à região em melhores condições de pagamento e de entrega, também sem condicionamentos políticos. Com a Venezuela, realizou manobras militares conjuntas.

Seus negócios na região, entretanto, vão além desse assunto. O antigo império dos czares investe na área, também, em petróleo, metalurgia, moradia, hidroelétrica e fabricação de ônibus.

A principal carta de apresentação do Canadá na América Latina são suas empresas mineradoras. Segundo dados de 2008 as empresas canadenses controlam aproximadamente 37% da produção mineral. Atualmente estão ativas 286 empresas e 1500 projetos, ainda que nem todos em exploração (2). Todas elas deixaram um caudal de evasão fiscal, saqueio, contaminação massiva, problemas de saúde pública, corrupção, desapropriações, violência contra opositores.

O Canadá é a principal potência mineira do mundo. Cerca de 75% das mineradoras da orbe se registram no Canadá e 60% emitem suas ações na Bolsa de Valores de Toronto. Muitas delas são só formalmente canadenses porque, na verdade, são companhias com capitais australianos, suecos, israelenses, belgas e estadunidenses.

A legislação mineira canadense é flexível e em seu regime impositivo generosa com os investidores. Eles são favorecidos em seu financiamento e no terreno diplomático e jurídico. As empresas que cotizam na Bolsa podem pôr em valor potenciais jazidas. De fato, algumas tiram seus lucros da especulação na bolsa em torno de jazidas potenciais.

Em todos os países da América Latina no qual operam mineradoras canadenses a céu aberto se produziram severos conflitos comunitários. Essa é hoje a marca distintiva das relações estabelecidas entre a América Latina e seu outro vizinho do norte.

A América Latina está em um processo de reinvenção como hemisfério. Seu futuro não está ainda definido, seu destino final não está escrito. O hemisfério está redefinindo sua inserção no mundo.

Na última década, a região obteve ingressos extraordinários pela venda de matérias primas, e capitais para o investimento de valores, exacerbados por liquidez abundante alimentada pelos bancos centrais do mundo e taxas de juros historicamente baixas. Mas hoje, esse ciclo, aponta para seu fim. Por isso, sua reinvenção implica necessariamente, uma redefinição de sua inserção em um mundo multipolar, no qual modifique seu atual papel de provedor de matérias primas, que o coloca em uma situação frágil e vulnerável, para alcançar um tipo de indústria com tecnologia de ponta e o desenvolvimento das manufaturas, ao mesmo tempo que desenvolve seu mercado interno com equidade e justiça. Se não conseguir, seus sonhos de integração e independência, anunciados por José María em seu poema Las dos Américas, serão muito difíceis de realizar.

Notas:

(1) http://www.wilsoncenter.org/sites/default/fiis/ LAP_120810_Triangle_rpt.pdf
(2) Ver: “La minería canadiense en Latinoamérica. Um panorama contemporáneo”, de Arthur Phillips, Mary Roberts, Alix Stoicheff e Saviken Studnicki-Gizbert.
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(*) Coordenador de Opinião e articulista do La Jornada de México.
Fonte:  http://www.cartamaior.com.br/29/12/2013

domingo, 29 de dezembro de 2013

AS VÍSCERAS DELICADAS

Marcelo Reis de Mello*
Delicadeza é uma palavra ambígua, difícil. Poderíamos usá-la para denunciar o lirismo comedido e afetado, como fez João Cabral em sua "Antiode": "Delicado, evitava/ o estrume do poema,/ seu caule, seu ovário, suas intestinações". E muito antes do pernambucano o simbolista francês Arthur Rimbaud já tinha escrito: "Por delicadeza/ Perdi minha vida". Mas também há quem enxergue na delicadeza uma potência positiva e uma sutil resistência à brutalidade do mundo. Além disso, a palavra sempre foi usada para enfatizar a perícia técnica e a sensibilidade invulgar dos poetas, não sendo difícil ler por aí que os versos de Drummond ou Bandeira - para ficar apenas com os exemplos canônicos - são de uma delicadeza extraordinária.

Tudo isso para dizer que o sexto livro do poeta carioca Eucanaã Ferraz, "Sentimental" (Companhia das Letras, 96 págs., R$ 32,00), é certamente delicado. Mas não é doce. Nem limpinho. Seu coração é uma víscera empedrada: "Quase só músculo a carne dura./ É preciso morder com força". Dentes fortes sim, sem dúvida, mas não para despedaçar ou despoetizar a poesia, como reivindicam alguns entre os seus pares. Ferraz não é um poeta barulhento, de punho cerrado e boca espumante. Mas nos melhores momentos a sua poesia é vigorosa, é radical.

Quando o livro "Desassombro" foi lançado, em 2002, Francisco Bosco afirmou acertadamente que Eucanaã Ferraz trabalha na "radicalidade dos desextremos". E é isso que o leitor encontra em todos os seus livros, inclusive no mais recente, no qual se recombinam os temas e as formas cristalizadas da tradição literária, para deslindar suas brechas, os interstícios, as margens dentro das margens.

Destacado no complexo cenário da poesia brasileira contemporânea por Heloisa Buarque de Hollanda, no fim dos anos 1990, Eucanaã Ferraz ficou conhecido pela revalorização da forma poética que os poetas marginais tinham trocado pela ideologia do desbunde e pelo espontaneísmo. O cuidado de Ferraz com o verso é acentuado desde "Martelo", de 1997, tornando-se perceptível principalmente pelo uso engenhoso dos "enjambements", ou cavalgamentos, que são os cortes ao fim dos versos.

Isso não basta, porém, para explicar os diferenciais e a qualidade da sua obra. Em retrospecto, a travessia do poeta pode ser vista como uma busca por formas sempre renovadas de dizer o mundo, sem estacar numa opção confortável ou em fórmulas bem-sucedidas. De um livro a outro, o que se nota é o enfrentamento com a tradição, a disposição ao erro e aos inevitáveis enganos de quem se reconhece lançado à transitividade das coisas e das palavras.

"Sentimental", que acaba de receber o Prêmio Portugal Telecom de Literatura, é a prova de que o autor se expõe ao abismo da língua sem cair no desespero. E mostra que é possível fazer um livro quase todo sobre a loucura, a solidão e a falta de sentido do mundo sem levantar a voz com arrogância sapiencial, sem desqualificar a diversidade da poesia, jogando igualmente com a prosa e com o lirismo.

Um dos poemas mais marcantes da recolha é "Sob a Luz Feroz do Teu Rosto", que aborda a distância escavada entre o ser amante e o ser amado; pois o amor transforma o outro em leão, em fera, e

 "à visão de nosso coração
ofertado, tudo nele se eriça,
seu desprezo cresce (...)". 

E é por isso que: 
"Amar um leão não se devia,
agora que já não somos divinos,
quando a flauta que tudo
encantaria, gentes animais
pedras, nós a quebramos contra
a ventania;
amar um leão é só distância: tê-lo ao lado,
não poder beijá-lo, o deserto
que habita em torno dele (...)".

O amor de que fala Eucanaã Ferraz não está banhado na sopa açucarada do "lirismo namorador" (o sintagma é bandeiriano), mas não nega a possibilidade do sublime ou a descoberta da beleza que habita a nossa condição trágica. Sem dúvida há uma violência implícita no amor, que, como disse Baudelaire em "Meu Coração Desnudado", é uma forma de tortura. Aliás, a própria linguagem pode ser também uma espécie de coração pedregoso.

A grande poeta polonesa Wislawa Szymborska uma vez escreveu: "Não tenho porta - diz a pedra". Por isso, no poema "Sou eu, me deixa entrar", de Ferraz, vemos a própria Wislawa cochilando, exausta, com a cabeça recostada numa pedra. Só que dessa vez a pedra está se abrindo para ela e (em sonho) a convida a entrar, pois assaltou "as chaves com que os minerais se trancam". Mesmo assim, a pedra não se abre sem dificuldade, "porque não há desabrochar suave, em pétalas, quando/ se ignora totalmente a primavera e tudo o que se sabe,/ não podes imaginar, é o cavo escuro do chão".

Não há formalismo tacanho, tampouco uma leveza distendida ou beleza ornamental. Sua delicadeza está mais próxima da que nos fala Roland Barthes, no livro "O Neutro". Ali, o princípio de delicadeza é uma forma de perversão da linguagem, de paixão pela diferença ("neuter": nem um nem outro), que no caso de "Sentimental" se manifesta entre o verso e a prosa, a fábula e a alegoria, a simetria e a desordem, a partir de uma leitura revigorante da poesia moderna.

E se Cabral, Bandeira e Drummond são sempre citados, é importante frisar que a influência dos poetas portugueses sobre Eucanaã Ferraz é igualmente marcante. Indo ao encontro da ternura de Sophia de Mello Breyner Andresen e Eugénio de Andrade - ambos de uma beleza sem fim e ao mesmo tempo de uma lucidez inegavelmente trágica -, os poemas de Ferraz se enriquecem de uma volta ao outro lado do Atlântico. Em "Turístico de Lisboa", um de seus poemas mais narrativos, fica evidente a autoironia do poeta na relação precária dos brasileiros com os lusos: "Lisboa, diferentemente de Paris, é cidade dos amores/ desfeitos, sítio de desencontros, é o que diz a rapariga/ ao seu amigo que eu não posso ver assim de costas/ numa mesa d'A Brasileira. Os brasileiros parecem estar sempre de costas para os portugueses".

O poema mais impressionante do livro, que por si só já mereceria uma comemoração, se chama "El Labirinto de la Soledad". O título é em espanhol porque foi tomado emprestado de um livro homônimo do mexicano Octavio Paz, um dos personagens com quem Yuri Gagarin (o "protagonista" do poema) se encontra ao voltar de sua viagem à Lua. Nesse poema entendemos a familiaridade da palavra sentimental com a loucura - ou uma espécie particular de "ternura devastadora".

O astronauta retorna do espaço arrebatado ao ponto de não distinguir mais entre as coisas e as palavras e por isso se expressa apenas por tautologias: 

"Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
 Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente
e dizia a água é transparente (...)". 

Ninguém sabia se ele estava apenas sendo óbvio, tolo, ou se havia se convertido num "idiota/ que se comovia mais que o esperado". Foi então que os "vizinhos e cunhados decretaram:/ o homem estava doido; mas sua mulher assegurava/ que ele apenas voltara sentimental".

É como se Yuri tivesse conhecido o silêncio da pedra sonhada por Wislawa Szymborska, mas fosse incapaz de dizê-lo. O homem perde todo o senso pragmático e se volta não à transcendência, mas à beleza das coisas efêmeras: "O astronauta/ lacrimoso sentia o peito tangido de amor total/ ao ver as filhas brincando de passar anel/ e de melancolia ao deparar com antigas fotos/ de Klushino (...)". Podemos presumir que esse homem não era um cidadão exemplar na União Soviética, nos tempos da Guerra Fria:

"(...) um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que 
Yuri Gagarin vinha sofrendo de uma ternura
 devastadora; sabe-se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamente isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou
doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
 do Partido a portas fechadas. (...)".

Com ironia fina, são postas em jogo tanto as imposturas e a hipocrisia do amor tipicamente burguês quanto a inaptidão para o amor dos burocratas comunistas. O senso pragmático de ambos faz que se tornem impermeáveis demais à loucura, à piração necessária ao amor, quando um indivíduo volta sentimental de um encontro com o sublime.

"Sentimental" é um livro muito rico e cheio de possibilidades de leitura. É merecido o reconhecimento do prêmio, que reivindica também uma atenção ainda mais generosa dos leitores de poesia e da crítica especializada. Eucanaã Ferraz é um autor delicado. Mas a delicadeza da sua poesia quase nunca é decorativa ou preciosista, apesar do polimento cuidadoso que ele dá às palavras; ao contrário, é um exercício sutil e constante de trapaça, movido por um desejo de burlar a rigidez dos dogmatismos literários. Sem recorrer a uma linguagem escandalosa, catastrófica, Ferraz acessa a violência do mundo. Por isso, a leitura de "Sentimental" é uma boa porta de entrada aos que desejam conhecer melhor o seu trabalho. E uma prova de que a poesia contemporânea está oxigenada, mesmo quando a asfixia do nosso tempo parece a única coisa a dizer.
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* Marcelo Reis de Mello é poeta, editor do selo literário Cozinha Experimental e membro da Oficina Experimental de Poesia. Sua dissertação de mestrado na UFF é sobre o conceito de delicadeza e a obra poética de Eucanaã Ferraz
FONTE: Valor Econômico online, 27/12/2013

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

DIA DE NATAL

ROBERTO DAMATTA*
Eu sinto falta das minhas infantis ansiedades natalinas. A gente ouvia: "amanhã é dia de Natal". E todos pensávamos no que íamos "pedir" a Papai Noel. Foi no Natal que primeiro exercitei o desejo aberto que singulariza e transporta ao sublime e à vergonha - quase sempre aos dois. Por causa disso, todo pedir é sempre atropelado pela insegurança. O que podemos pedir - eis a pergunta não dita - a quem realmente "dava" os tão esperados "presente de Natal" nas famílias de classe média que viviam dentro de orçamento apertado, como sempre foi o meu caso?

Se Papai Noel não existia, pois era o nosso próprio pai, como saber o presente possível? Todos nós (éramos cinco meninos e uma menina) sabíamos que o tal "saco de Papai Noel" era enorme e como Papai Noel era gordo e muito rico. Tão rico quanto os Estados Unidos que o haviam reinventado para a minha geração dos anos 30 e 40. Mas sabíamos também que o seu lugar era um lugar fora do nosso alcance. Como escrever uma carta num inglês que nos era desconhecido e remetê-la para o Polo Norte se correio não era lá essas coisas?

Eu que, felizmente, tive um pai até ser pai, sabia que papai estava ao meu alcance. Mas o tal Papai Noel levantava uma paternidade estacional. Ele só aparecia no final do ano e, a seu lado, surgiam também as figuras santificadas e concretas do Menino Jesus, de São José e da Virgem Mãe. Um amigo dizia que era preciso escolher entre gastar movido pela "propaganda" ou rezar num verdadeiro e escrupuloso Natal. Eu até hoje fico impressionado com a fácil moralidade de plantão.

A Sagrada Família era pobre mas Papai Noel tinha um trenó puxado por renas - estranhos veados grandes que, além do mais, voavam. Ademais, ele entrava nas casas pela chaminé. Eis um detalhe que completava o seu exotismo, porque as casas onde morávamos não tinham chaminé - tinham cafuas e porões. À ansiedade dos presentes, sempre aquém do meu desejo, havia a dúvida porque, afinal, éramos "crianças" e Papai Noel pertencia ao universo dos "grandes". E os adultos sabiam de coisas secretas, como a tal cegonha que, no meu caso, durante sete ou oito anos, trouxe, embrulhado numa fralda, um irmãozinho que me roubava carinho, atenção e espaço...

Camelos, cegonhas e chaminés eram elementos que compunham o mistério dessas figuras periódicas.
Ao escrever essas recordações natalinas, descubro porque, quando visitei o Cairo, Egito, para tomar parte numa ambiciosa conferência de antropologistas, usei a oportunidade para observar os camelos. Diante das pirâmides, eu olhava e perguntava sobre os camelos. Tocava-os, admirava sua capacidade de resistir a sede e tinha curiosidade sobre suas corcovas. Camelo ou dromedário? Uma ou duas corcundas? Eis uma pergunta que não quer calar diante de certas pessoas, sobretudo dos que me governam. E foi assim que, diante da velha Esfinge, eu edipiana e estupidamente paguei para dar uma volta num velho camelo e, mais que isso, tirei uma fotografia. O guia ria e repetia "Lawrence da Arábia", mas eu estava vivendo um dos reis Magos...

Do mesmo modo e pela mesma lógica, essa também ligada ao meu amigo e companheiro de toda a vida, um rapaz chamado Édipo, jamais perdi a fascinação pelas chaminés que estudei, medi, admirei e olhei com fascinação nas casas europeias e américas. O fogo dentro de casa era uma contradição na minha vida de brasileiro cuja família vinha de uma Manaus, de uma Salvador e de uma Niterói nas quais o calor era "de matar" e o risco de algo "pegar fogo" era constante. Como, pois, ter essas chaminés com um fogo caseiro que servia para aquecer, quando só falávamos em ventilação e sonhávamos com o hoje rotineiro e transformador "ar condicionado"?

Papai Noel descia ou entrava pela lareira e eu jamais deixei de espiar escondido para o interior tenebroso das lareiras americanas. E se o bom velhinho fosse o amante da dona da casa, como questionou meu ciumento pai diante da estupefação de seus irmãos e cunhados? Mais que isso, como descer pela chaminé sem se sujar, conforme estabelece uma famosa e intrigante parábola judaica? 

O fato antropológico, porém, é que o fogo da lareira contrasta somente em parte com o da cozinha. Os dois se fundem. E produzem uma fumaça humana reveladora de vida. Pois a fumaça que tinge os céus já escuros e frios dos invernos gelados que hoje eu conheço tão bem, seja no norte ou no sul, é o triunfo do calor que resiste ao frio imutável do infinito. Parece com o fósforo lutando inutilmente com o quarto escuro no qual vivemos.

E assim é o Natal. Uma noite de luz na imensa escuridão de nossas vidas. Uma pausa para reconhecer nos próximos o seu amor e a sua paciência para conosco. As rotinas realçam mais o feio e o raso do que o belo e o profundo. Mas o Natal dos "amigos ocultos" e das trocas de presentes redime o outro que está em todos os nossos próximos e, quem sabe, dentro de cada um de nós.

Feliz Natal!
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* Antropólogo. Escritor.
Fonte: Estadão online, 25/12/2013
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NATAL MATERIAL

Marcelo Coelho*

Mercantilização excessiva que predomina nesta época do ano não chega a ser um grande problema

Como ideia de marketing, vai ser difícil acharem outra melhor. Uma companhia aérea organizou uma linda surpresa para seus clientes, e o filminho faz sucesso na internet. 

Para começar, o passageiro faz seu check-in num daqueles terminais eletrônicos de autoatendimento. Uma pausa, e surge a imagem do Papai Noel. Ele repete o nome do passageiro em voz alta, emite a risada típica e pergunta-lhe o que quer ganhar de Natal. 

Ouve a resposta: um computador, um perfume, uma prancha de surfe. Ri novamente, e deseja boa viagem ao passageiro. 

Os pedidos foram registrados, e imediatamente se transmitem ao pessoal de apoio, no aeroporto de destino. É de supor que a viagem seja razoavelmente longa. O filme mostra, em todo caso, as horas de trabalho frenético da equipe da tal companhia aérea. 

Eles compram, embrulham e etiquetam tudo o que foi pedido pelos viajantes. Quando estes desembarcam no aeroporto, encontram junto com as malas, na esteira de bagagem, perfeitos pacotes com fitinhas. Dentro, está o que pediram a Papai Noel. 

Não fica nisso. Neve artificial começa a cair no salão das esteiras, a porta automática se abre e... ho, ho, ho, Papai Noel em pessoa aparece e é aplaudido pelos viajantes. 

Como delírio natalino, e como estratégia para agradar os clientes, a proeza é praticamente insuperável. Só se, durante o voo, dessem um jeito para que o trenó do bom velhinho passasse, em velocidade supersônica, ao lado do avião, de modo a ser visto das janelas. 

Insuperável, e também irrepetível. No ano seguinte, não haveria de ser pequeno o número dos que, no check-in, arriscassem pedir um Porsche ou um Balenciaga de presente. 

Com alguma morbidez, imagino se tudo desse errado: um desastre aéreo de grandes proporções, e os pacotes natalinos girando órfãos, na esteira, indefinidamente... 

Mas é isso que a iniciativa, no fundo, quer esconjurar. Trata-se não apenas de fazer um agrado especial aos clientes, mas também de mostrar o alto grau de organização e confiabilidade da empresa.
Continuamos, claro, sem acreditar em Papai Noel. Mas acreditaremos um pouco mais naquela companhia aérea, a quem tentaremos retribuir, se não com fidelidade eterna, ao menos com um excelente comportamento no voo de volta. 

O importante, em todo caso, não foi o valor dos presentes recebidos. Nesse ponto, não concordo totalmente com quem reclama da excessiva mercantilização que predomina nesta época do ano. 

Tudo é feito para aumentar as compras, não há dúvida. Os produtores de perus parecem mesmo ter inventado este ano uma espécie de ceia antecipada, tendo como pretexto a "inauguração da árvore de Natal". Como a data coincide, pelos meus cálculos, com a do Dia de Ação de Graças americano, fico imaginando se não querem liquidar por aqui mesmo o excesso de aves que sobrou de alguma exportação mal sucedida. 

Não importa. Se o Natal não se resume à troca de presentes, cabe perguntar sobre o seu significado religioso. Nada mais comum, entretanto, do que entender a religião como uma troca de presentes também. 

O jogador agradece a Deus pela vitória de seu time, como se os adversários fossem, sabe-se lá, pecadores ou infiéis. Antes de entrar na água, o banhista faz o sinal da cruz. A família do doente reza por sua recuperação, e, na hora da aterrissagem, o pensamento de muitos passageiros se volta para os céus. 

A criança comportada espera atenção especial do Papai Noel; também quer coisa parecida, agora ou depois da morte, muita gente que busca seguir o caminho do bem. 

Mesmo que a religião tenha formulações mais sofisticadas do que esta, não chega a ser um problema que as coisas se passem desse jeito. 

O presente que se pede nunca é apenas um presente. É sobretudo uma relação de confiança --não apenas voltada para aquele a quem pedimos, mas ao mundo de forma geral. Trata-se de acreditar, não em Deus ou em Papai Noel, o que para mim nunca fez muita diferença, mas no futuro. 

É pensar que o mundo, as coisas, a vida, de alguma forma, e de vez em quando, sejam maleáveis aos nossos desejos. E ter, quando isso acontece, algum sentimento de gratidão. 

A quem? Por que não, por exemplo, ao fulano da companhia aérea que inventou aquela jogada de marketing? 

Na materialidade de um brinquedo, de uma agenda, de um iPhone, algum afeto ganhou forma. Da noção vaga ou absoluta de um Criador todo-poderoso, racional, arbitrário e cego, surgiu a figura de um ser feito de carne, e que sofreu. 

Bem material, sem dúvida, esse Jesus Cristo. Talvez ensine que há algo de divino no olhar de todos os homens. 

BLOG INFORMA:  A companhia aérea canadense WestJet decidiu realizar uma campanha de Natal bastante inovadora neste ano. Antes do embarque, passageiros foram questionados por um simpático Papai Noel eletrônico com a pergunta “O que você gostaria de ganhar neste Natal?” (http://www.bhaz.com.br/companhia-aerea-faz-magica-e-realiza-pedidos-de-natal-dos-passageiros/)
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* Colunista da Folha. Escritor.
Fonte: Folha online, 25/12/2013
Imagem da Internet

Entrevista a António Lobo Antunes

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Entrevista a António Lobo Antunes

O escritor recebeu a VISÃO na sua casa, espelho da sua própria sedução

Trata-as em diminutivo, assim por cima do ombro, as crónicas, "uns contitos", fragmentos, "aguarelazitas", "esboços", "fantasias", "palavrinhas", "pequeninos nadas", "piscinas para crianças" com água pela cintura e onde nunca se perde o pé. E, no entanto, é nas suas crónicas que tantas vezes António Lobo Antunes se revela e expõe de uma forma tão íntima - a ele e a nós, nos nossos pequenos devires de inseto, sempre a formigar na mesquinhez dos dias. 

Mais velho de seis irmãos - gosta de se dizer "filho mais velho de dois filhos mais velhos" -, António Lobo Antunes lembra-se de quando eram pequenos: adoecia um, adoeciam todos. E o pai, "um pai muito pouco ternurento", médico anatomopatologista, ia até ao quarto dos seus rapazes, sentava-se numa das camas e lia-lhes poesia. Ou fazia com eles um jogo temível. Citava uma frase e eles tinham de acertar em quem a houvera escrito. Ou punha a tocar os primeiros acordes de uma sinfonia para os filhos lhe adivinharem a autoria. A VISÃO propôs a um dos escritores maiores da literatura mundial o mesmo jogo, um pouco perverso. Lançar-lhe algumas das frases que ele escreveu nas crónicas quinzenais desta revista (coligidas em Quinto Livro de Crónicas) e decifrar-lhe sentidos ocultos, escavar-lhe as profundezas e outros canais subterrâneos. "Isto é muito difícil, porque me faz perguntas e eu não tenho respostas, só ainda mais perguntas. E quando penso que tenho uma resposta, ela transforma-se numa pergunta dentro de mim... E a seguir a essa não resposta vem um vazio angustiado... Eu estou cheio de perguntas e cada vez tenho menos certezas. Penso que os livros vão ficar, mas o que passei nos últimos seis anos [com o cancro e a recidiva], fizeram-me questionar tudo e até estar-me nas tintas para que os livros fiquem ou não". "O que é que me interessa isso, se eu morro." 

VISÃO: 'Devemos fazer tudo o mais simplesmente possível mas não mais simplesmente do que isso" - é um dos títulos que deu à crónica em que fala da pouca importância que lhes dá, quando as retira ao acaso da gaveta e as envia para a editora...

ANTÓNIO LOBO ANTUNES: Foi Einstein que disse essa frase. E é tão verdadeira, não é? [Pausa.] Às vezes mostravam-lhe um conjunto de equações e ele dizia "é esta": "Porque é a mais simples e a mais bonita." As crónicas nasceram um bocado assim, há 20 anos, quando o Vicente Jorge Silva me convidou para um suplemento de domingo do Público. Aceitei com a condição de o Zé [Cardoso Pires] poder alternar comigo, pois andávamos ambos bastante aflitos de dinheiro. Pensei que deveriam ser assim uma coisa levezinha, divertida e não sei quê... Nunca pensei que tivessem tanto sucesso e que viessem sequer a ser traduzidas lá fora... Espanta-me, porque onde jogo a minha vida é nos livros... O problema para mim, depois de escrever uma crónica, é regressar ao ritmo do livro. 

"As crónicas são um galope diferente, que me seca a cadência do livro e me atrapalha o ritmo. O segredo de escrever é ser estrábico, ter um olho na bola e outro nos jogadores (...) descobri-me lagarto numa pedra, à coca, muito quietinho, rodando as pupilas para sítios diferentes, guloso da mosca de uma frase." 
Faço a crónica num dia. Mas, depois, já não consigo voltar a pegar no livro que estava a escrever. Tenho de voltar a despir-me de tudo...  

Nas crónicas, fala muito do seu passado, da sua infância, da guerra, da doença, dos avós. Mas, depois, também diz: "O passado é a coisa mais imprevisível do mundo, não para de se transformar." 
A frase é do [George] Orwell, eu sempre canibalizei muita coisa. O meu pai tinha uma mania para nós, seis irmãos rapazes, horrorosa. Dizia: "Quem não sabe quem escreveu esta frase não sai no sábado." Ou então punha meia dúzia de compassos de uma sinfonia a tocar e ameaçava: "Quem não sabe quem compôs isto não sai no domingo." E a Memória de Elefante [primeiro livro, 1979] estava cheio desse jogo com o leitor. Se calhar era uma pequena vingança contra o meu pai. 

Mas, por outro lado, também refere: "Estou cheio de citações, que gaita. Pareço um cigano a mostrar o ouro falso dos anéis..."
A gente quer que as pessoas nos admirem por fazermos uma bela metáfora ou fazermos uma pirueta, mas o importante no livro é que ele seja eficaz. O que interessa andar a mostrar plumas, e penas e proezas? A mim o que me interessa é escrever. O que está à volta custa-me um bocado, a exposição pública, tudo o que rodeia os livros. A minha vida é muito retirada, não vou a lançamentos. E finalmente lá consegui que a editora se deixasse disso. Durante anos e anos, escrevia os livros e deitava-os fora no fim.Um amigo meu viu um maço de papéis, jogado a um canto, perguntou-me o que era. Era a Memória de Elefante. Levou-o a várias editoras que não o quiseram e o livro acabou por ser publicado em 1979. Mas foi tarde demais, porque, nessa altura, eu já tinha escrito dois. 

Porque é que deitava tudo fora?
Porque ainda não tinha encontrado a voz. Pensava "ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto...". Eu sou canhoto, escrevia com a mão esquerda. E quando tento desenhar com a direita sai diferente. E a Memória de Elefante já foi escrita com a mão direita. Mas as receitas do hospital continuava a escrevê-las com a esquerda. Os gestos mais finos, de desenhar ou pregar um botão também os fazia com a esquerda. Não tenho talento para desenhar, é evidente, mas o meu pai tinha e obrigava-nos a fazer cópias de quadros famosos, como nos obrigava a ouvir música. Nos primeiros anos de casados, os meus pais tiveram logo quatro filhos e, então, quando um estava doente, adoeciam todos. Ele vinha com um livro, sentava-se numa das camas e começava a ler para nós, sobretudo poesia. Aos 19 anos, eu só escrevia poesia, queria ser poeta. Então descobri que não tinha qualquer jeito e fiquei desesperado com aquilo... Fazia umas tentativas muito canhestras e a minha poesia era, de facto, muito má... Havia pouco dinheiro lá em casa. O meu pai era médico, só estava no hospital e não ganhava muito. Ia uma vez por semana ao consultório, mas muitas vezes não levava nada aos doentes, trazia-os para casa, para jantarem connosco. O mestre dele, o Egas Moniz, dizia que nunca se devia levar dinheiro a artistas - e de repente todos eram artistas, até os bandarilheiros [risos]. De maneira que foi assim que conheci uma série de gente interessante. Era um homem que não se dava com quase ninguém, um homem muito fechado, mas um homem de paixões, até ao fim: a leitura e a pintura, a música... Fui fazer a primeira comunhão a Pádua por causa de uma promessa, por eu não ter morrido de meningite, em bebé... 



Entrevista a António Lobo Antunes
Nas crónicas, fala de doenças, não só do cancro mas até da eclampsia da sua mãe, quando nasceu inanimado: "Depois de me tirarem a ferros quem ia indo desta para melhor era eu, porque toda a gente, ocupada da moribunda, se esqueceu de mim." Tinha um avô que não se esquecia de si...
O meu avô, que também se chamava António, tinha uma grande devoção a Santo António, levou-me a Pádua fazer a primeira comunhão. Enquanto o meu pai só me levava a museus, museus, museus.... Naquela altura, os museus tinham escarradores cromados a cada dez telas, e do que eu gostava era dos escarradores. 

Aliás, diz: "O problema é que nunca soube cuspir em condições. Ainda hoje não sei cuspir decentemente e envergonho-me disso."
Sim, o meu pai com discursos sem fim sobre a perspetiva em Tintoretto para uma criança de sete anos e eu fascinado com os escarradores [risos]... Pouco antes de ele morrer, um dos meus irmãos, o Miguel, perguntou-lhe: "O que gostava de deixar aos seus filhos?" E ele respondeu: "O amor das coisas belas." Só já muito perto da morte lhe fiz a pergunta mais íntima que existe: se ele acreditava em Deus. E ele, anatomopatologista, naquele gabinete cheio de cérebros, ficou calado durante um bocado e depois, sem olhar para mim, respondeu: "o nada não existe na biologia" e, depois, não disse mais nada. Portanto, as nossas conversas eram assim... 

O seu pai não gostava de "pieguices". Entre os irmãos "não há efusões, não há gestos". Era assim em sua casa?
Não havia confidências, nem manifestações exteriores de ternura... Com o meu irmão João, que é, talvez, a pessoa que eu conheço melhor, não partilhamos confidências e, no entanto, sabemos tudo um do outro, sem falar. Não se falava muito em minha casa, de facto. Eu não falava muito, o meu pai e a minha mãe não falavam muito. Não havia grandes expansões físicas de ternura. Há alturas em que penso que tivemos a sorte de não termos sido amados... 

Porque é que diz sorte?
Porque, se fosse ao contrário, se calhar não escrevia, não é? A gente escreve para gostarem de nós. Quando o Mozart, aos 5 anos, tocou para a corte francesa, ele foi a correr sentar-se ao colo da Maria Antonieta e pediu-lhe "aimez moi!". 

Mas, por outro lado, tinha com eles esta estranha cumplicidade de fazerem chichi juntos: "Deve ser difícil as mulheres entenderem isto mas, para os homens, fazer chichi lado a lado, ao ar livre, é sinal de amizade."
Nós temos a imensa vantagem de poder fazer chichi de pé. Era engraçado, na tropa: quando um tinha vontade, íamos todos [risos]. É muito engraçado isso. Lembrei-me agora de repente, do [Ernesto] Sabato, no livro Sobre Heróis e Túmulos, que acaba com duas personagens que saem da camioneta, e fazem chichi à beira da estrada, enquanto observam como é bonito Buenos Aires ao longe. Não sei como é com os meus irmãos, nunca falámos disso, mas eu carrego a grande dor de não ter tido uma irmã. É talvez o maior desgosto da minha vida. 

Porquê? Gostava de conhecer a mulher numa outra perspetiva?
Um autor americano dizia "o que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?". Esta frase tocou-me sempre tanto... E a sensação de que se calhar tive uma irmã gémea que abandonei ao nascer, percebe o que eu quero dizer? 

Não muito bem...
É evidente que não tive, mas isso foi sempre, dentro de mim, uma nostalgia  grande e uma dor. Poder gostar de uma mulher como de uma irmã. 

Mas nunca lhe aconteceu na amizade?
Nunca consegui a pureza que eu imaginava que teria essa relação. Onde o sexo e os instintos estavam abolidos. Adorava ter tido uma irmã e hei de morrer com essa pena. Nem imagina o que essa frase me tem feito pensar... "O que fizeste da tua irmã gémea que abandonaste ao nascer?"

Se calhar é porque existe um lado feminino cromossomático (XY) em todos os homens, todos nasceram de uma mulher...  
Eu gosto da parte masculina das mulheres, mas não gosto da parte feminina dos homens. Como mulheres, os homens deixam muito a desejar... 

Mas tanto nos livros como nas crónicas coloca-se tantas vezes dentro de uma voz feminina...
Pois é, e cada vez mais. Não sei porquê... Gosto dos homens que são tão homens que não têm medo de serem mulheres. 

As suas mulheres, tão melancólicas e solitárias, parecem saídas dos quadros do Hopper, a olharem o vazio...
Não as consigo ver. Para mim são vozes. São aquelas vozes que vêm e entendo-me bem com elas. As crónicas são muito apanhadas aqui. Este é um bairro pobre [Conde Redondo], está cheio de viúvas, em quartos alugados... As pessoas são tristes, aqui. 
Aliás, o bairro é feio, triste e pobre. Não sei, talvez se vivesse noutro sítio, as crónicas sairiam diferentes. Mas isso tem-se acentuado nos últimos tempos, desde que vivo nesta casa [uma antiga casa de chá remodelada]. Eu não me ponho grandes perguntas. Limito-me a escrever. 

Aliás, diz que escreve onde calha...
O sítio onde escrevo é-me indiferente, não tenho rituais, nem maço ninguém... Desde que não falem comigo. Escrevo devagar, mas também não faço mais nada. Gosto de desenhar as letras, o ato de escrita tem uma componente infantil que me agrada. Escrever é fazer redações. E as pessoas a darem importância às redações... Por isso, fico sempre surpreendido quando dizem que os meus livros são complicados. Para mim são tão óbvios, é tão claro aquilo, que parece que tinha mesmo de ser assim. Não me interessa nada contar histórias. 

O que o interessa é "experimentar, penosamente, alcançar com o dedo as areias do fundo, quero lá saber de personagens e enredos: servem-me, quando muito, de isco, para atrair o leitor, e sobretudo para me atrair a mim mesmo"? 
Sim. E aquelas vozes. Normalmente, sento-me e tenho de ficar uma hora à espera, a esvaziar, a esvaziar... Depois vem uma palavra... Começar um capítulo é sempre difícil, o arranque é tão, tão, difícil... E até aquilo que está dentro de nós começar a sair e a andar sozinho.... E só se faz aquilo que o livro quer. Nós vamos atrás do livro, não vale a pena fazer planos, ele foge--nos para todos os lados, não o orientamos, não o dirigimos, vai-se atrás dele. E ele é que diz que acabou. 

Como é que lhe diz que acabou?
Um livro acaba quando a gente sente que o livro está farto de nós, já não aguenta mais correções. Como quando nos querem beijar e já não nos apetece mais, e os lábios parecem bifes, e se nos tocam, a gente deita-se na pontinha da cama, na esperança de que não nos toquem mais... Quando aquilo de que antes gostávamos nos irrita, a maneira de cruzar a perna, ou de atender o telefone, ou os tiques verbais, que até tinham encanto... E então a gente sente que o livro está farto. Júlio Pomar citava  uma frase do Marcel Duchamp: "Um quadro nunca está acabado, está definitivamente inacabado." Num livro é sempre possível continuar, há sempre um "que" ou um "mas"... O Zé [Cardoso Pires] tinha uma relação muito angustiada com a escrita. Uma vez, virou-se para mim, com uns olhos esquisitos: "Os meus livros não são assim tão maus, pois não?" E estava a ser profundamente sincero. E ele, que era um homem duro, parecia um miúdo. 

Tinham uma grande cumplicidade?
Eu compreendo a infidelidade no amor, mas não a compreendo na amizade. E o Zé tinha uma enorme fidelidade na amizade. Com 15 anos comprei o livro O Anjo Ancorado e mostrei-o ao meu pai. E ele: "Um homem chamado Pires não pode ser um bom escritor." Mais tarde, numa entrevista, falei nisso. Conheci-o no aeroporto e ele disse: "Eu sei que sendo Pires não posso ser bom escritor mas tu és e gosto muito de ti." E foi assim, ficámos amigos de infância. É assim: instantâneo e absoluto como o amor. 

E porque é que entende a infidelidade no amor?
No amor, o ciúme é normal, e até posso aceitar o sentimento de posse. Na amizade, isso não existe, os nossos amigos têm outros amigos, e nós aceitamos isso. Mas talvez não sejam sentimentos tão diferentes... Para mim, a amizade é completamente assexuada, não sou capaz de sexualizar uma amizade, nunca fui, mas no amor às vezes também não. Porque o amor é tanto, que a gente fica sufocada de paixão e nem pensa em sexo, ficamos a olhar apenas, só o privilégio de poder estar a olhar... e existe aquela sensação de que se tocar vou estragar, porque posso fazer ali uma nódoa, um amolgão, qualquer coisa... Ultimamente, acho que é uma honra tão grande estar vivo... E um acaso...  

Diz que deixou muita gente para trás, para se dedicar à escrita...
Não percebo. Explique-me melhor essa ideia... 

A ideia é sua.
Então, mais uma razão para me explicar melhor. [Risos.]
Entrevista a António Lobo Antunes

Pôs sempre a escrita primeiro?
[Pausa.] Sim, pus em primeiro lugar a escrita. Para ser honesto, é verdade. Pus à frente das miúdas, até. Lembro-me de uma delas me dizer "O pai quando está a escrever é um chato, porque não faz mais nada, e quando não está a escrever ainda é pior porque está sempre a olhar para o teto." Quando estou com um livro estou sempre agarrado a ele e sobra pouco para os outros. 

 O seu livro abre com uma crónica chamada Zezinha, em que fala da mágoa de estar longe, na guerra, em Angola, quando a sua filha nasceu...
Foi das coisas que mais me custou, na ditadura. Até isso me roubaram, já viu? A miúda nasceu e soube três dias depois, por um telegrama cifrado R... A... P... A... e pensava que a seguir vinha um Z, para lhe chamar António, porque achava que ia morrer lá. Estava tão furioso, que fui para o arame farpado chorar como uma Madalena... É um milagre tão grande fazer um filho, depois ficam uns adultos chatos, mas ali são só nossos, ou talvez não sejam nossos, mas não são de mais ninguém. Mandavam-me retratos, mas os bebés estão sempre a mudar e quando, meses depois, a vi, disse "mas esta não é a minha filha" e aí foi a mãe que se fartou de chorar... 

Numa outra crónica conta como a sua filha o desarmou com uma palavra inventada: "Aborrecente".
Quis fazer com ela o que o meu pai fez comigo. Levei-a a um museu e ela sempre muito caladinha. No final, perguntei-lhe se gostava dos quadros e ela respondeu-me "achei um bocado aborrecente" [risos]. E se calhar tinha razão, nunca mais a levei a um museu, é aborrecente.  

Escreveu: "Ainda não aprenderam a ler-me. Tentam abrir a porta com a chave que trazem no bolso, pequenina, estreita. E surpreende-me que não vejam que basta empurrar com um dedo." Não se sente bem lido?
Os bons escritores ensinam-nos a lê-los. As primeiras vezes que li Conrad achava aquilo muito complicado e percebia mal. O problema não era dele, era meu. Que estava a ler aquilo com a minha chave, com os meus valores, com as minhas noções... 
E não estava a deixá-lo levar-me para onde eu tinha de ser levado... Ontem, estava a ler a história da literatura inglesa a partir do Dickens, e os ingleses são tão diferentes dos portugueses a falarem de literatura, tão mais profundos, com uma aparente simplicidade nos termos, na forma como expõem... Nós, portugueses, parece que arranjámos uma metalinguagem... Quem somos nós para julgar?

Mas já citou Joyce, dizendo que gostava de "dar trabalho aos críticos por 500 anos"...
Fico sempre insatisfeito - até que ponto é possível falar sobre um livro? Posso dizer gostei, mas nós confundimos ideias com paixões: há livros que sei que são bons e de que não gosto. Não gosto do Musil e do Thomas Mann, mas sei que são bons. Há outros que são maus e de que gosto... 

É uma questão de charme?
Um livro de que eu goste tem de ter charme e o Musil não tem charme nenhum... Ler um livro bom é uma alegria tão grande. Por isso, eu não entendo a inveja e a rivalidade entre escritores, porque isto não é nenhum desporto de competição. Não faz sentido a inveja em arte.  

Sente que ela existe?
Estava a lembrar-me do Nabokov, que era um homem com muito talento... Não é um escritor de que eu goste muito mas tenho de reconhecer que é bom, embora tivesse ciúmes de toda a gente - dizia mal do Conrad, dizia mal do Hemingway, dizia mal do Faulkner. Só dizia bem de escritores que ele achava maus e muito mais  pequenos. Não entendo, nunca tive ciúmes nem inveja. Para mim é uma alegria encontrar-me com um livro bom.  

Mas há livros que ficam e outros que se evaporam?
E depois? O Bach não esteve 200 anos esquecido? O Proust morre em 1922 e só é recuperado para aí nos anos 60...

E o Balzac que era desprezado...
O Balzac era espantoso, não era? E tinha aquela bengala com uma bola de vidro com os caracóis dos cabelos das admiradoras, sabia?

Não. 
O que me importa é o que eles deixam. Vou à feira do livro e vejo os escritores sentados com os livros à frente e fico espantado, é extraordinário, repare, eles escrevem! Quando era miúdo, vinha do liceu Camões e passava a pé por uma cervejaria, onde almoçavam o David Mourão-Ferreira e a Natália Correia e uma data de escritores... E eu ficava cá fora, a olhá-los, a vê-los comer - porque eles escreviam... 
Entrevista a António Lobo Antunes
Mas também manifesta o seu desapreço: "Leio livros maus uns atrás dos outros: a quantidade de tralha que se imprime deixa-me de boca aberta. O que pensarão os autores destas coisas, das bodegas que fizeram? Se calhar andam felizes..."
Pois, vemos muita porcaria, é tremendo... Ainda ontem, a minha editora [Maria da Piedade Ferreira] esteve a mostrar-me os tops. Não há lá um único livro de literatura. São só livros de autoajuda, biografias muito mal escritas. Os livros bons não se vendem, porque será isto? 

Mas há romances portugueses que o Lobo Antunes não considera muito e que vendem que se fartam... 
O que é um romance, não sei muito bem... O Guerra e Paz é um romance? O Tolstoi resolvia a coisa dizendo que um livro é aquilo que um escritor põe por baixo do título, ou como fez o Gogol que escreveu "poema" por baixo do Almas Mortas. Até que ponto será legítimo haver distinção por géneros, conto, romance, novela, eu digo sempre livros... 


Parece-me que lhe agrada que haja uma distinção como fazem na grande casa alemã onde edita... Entre literatura e best-seller...
Sim, de um lado põem muitas coisas nórdicas, policiais e aquele género de leitura de aeroporto americano. Mudei-me para lá, porque havia um editor com quem me agradava trabalhar: é mais difícil encontrar um bom editor do que um bom escritor. Embora também não haja grandes editores sem grandes escritores. Mas vejo, sim, a quantidade de biografias mal escritas, o que é que quer? As pessoas não sabem gramática... 

O que torna um livro bem escrito é apenas a sua consonância com a gramática?
Claro que não. Estava a tentar responder de uma forma rápida para as pessoas. O que é que o leitor encontrará lá? Eu não consigo compreender... 

Talvez a facilidade os seduza ou algum embalo da previsibilidade...
Pois, não sei. Acho o Hermann Hesse um escritor para adolescentes; a gente, depois, cresce e começa a gostar de outras coisas. Noutro dia, puxei-o da estante e li esta frase "É estranho caminhar no nevoeiro, as árvores não se conhecem umas às outras". Isto é muito bom, fiquei cheio de inveja, eu que já tinha arrumado o Hesse em "escritores para adolescentes"... Ali, no corredor, passei pelo Dickens, uma parte em que um homem vai visitar a mãe num hospital e pergunta-lhe: "Tens dores, querida mãezinha?", e ela diz: "Tenho a impressão de que há uma dor aqui no quarto mas não sei se sou eu que a tenho." Isto é extraordinário, porque quando se está doente é exatamente isto. Bom, eu não sabia se ia viver ou morrer, mas a sensação é essa: ele consegue exprimir exatamente o que se sente num quarto de hospital. Onde se passa a noite a olhar pela janela à espera da manhã, como se ela nos viesse salvar. Mas a manhã nunca nos salva de nada... Se a gente trabalha muito, há milagres assim... 


Por outro lado, afirma que sem talento nada feito...
Tem de se trabalhar muito, mas de onde vem aquilo que se escreve? Vem de nós? Até que ponto é legítimo a gente assinar com o nome? De que parte nossa ou não nossa vem? Os momentos bons parecem-me a mim que me são ditados, não há motivo para ser vaidoso, e julgo não ter vaidade. Julgo saber também o que os meus livros valem, mas não tenho vaidade nenhuma porque, sinceramente, não acho que seja o dono deles. Uma vez, um tipo disse ao Bach: "Ah, como eu gostava de ter composto essa tocata" e ele respondeu "se você tivesse trabalhado tanto como eu..." Não há talentos, há bois, pessoas que marram e marram e marram...

Mas não tem dúvidas de que as suas obras são das que ficam...
Não me serve de nada... porque eu morro. Quando estava doente, e não sabia se ia viver ou morrer, estava-me bem nas tintas para os livros, e deram-me o Prémio Camões.  Eu queria lá saber, acabavam-me de dizer que tinha um cancro. Aliás, o que é um prémio literário? Um prémio não honra um escritor, os escritores é que honram os prémios. Devíamos dar os parabéns ao Nobel por alguns grandes escritores o terem ganho... 

Há pouco disse não sentir vaidade mas parece ter noção do fascínio que provoca nas mulheres, por exemplo: "A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, Che Guevara ou eu, e eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo."
Às vezes faz-me impressão ver, nos restaurantes, casais que não trocam uma palavra, ou vão os dois no carro a olhar em frente. Nós sonhamos sempre com um amor absoluto e sem fim. Eu vi isso nos meus avós. As minhas tias, já adultas, tinham de andar com os pés a bater no chão antes de entrarem numa divisão onde eles estavam para não os surpreenderem aos beijos e aos abraços. E não me lembro de ver os meus pais tocarem-se. O Freud defendia que numa relação sexual havia sempre quatro pessoas, às vezes até pode haver mais. Chega-se a uma altura em que a gente compreende que, às vezes, é mais importante estar de mão dada no sofá do que a fazer amor. E que isso pode ser mais íntimo, mais profundo e dar um prazer de uma intensidade muito grande. Pudesse eu andar de mão dada com o meu avô... [risos]. 

O tal avô de que falava no início desta entrevista...
O meu avô paterno. Era monárquico, fascista, salazarista e era a pessoa mais tolerante, mais aberta e extraordinária. Foi o homem de quem eu mais gostei. Morreu quando eu tinha 18 anos e tenho muitas saudades dele. Era tropa de cavalaria, vivia apavorado que eu fosse maricas, porque escrevia coisas, o que era, para ele, uma coisa inconcebível. Chamava-se 
António Lobo Antunes, tal como eu, o meu nome todo. O avô dele passava fome na Póvoa do Lanhoso e o pai meteu-o, com 12 anos, num barco para o Brasil, num veleiro, por isso, veja as minhas origens: o primeiro Lobo 
Antunes, cujo pai era o tal Antunes que foi no veleiro e a mãe era uma senhora do Brasil que se chamava Lobo, que era evidentemente judia... O meu avô devia ser duro, porque era muito corajoso, muito forte fisicamente, mas nunca o vi ser violento. Não era muito inteligente, mas tinha uma grande bondade e generosidade. Dava-me beijos na rua e eu tinha imensa vergonha. Imagine a estupidez, um miúdo de 13 anos a ser beijado pelo avô, com medo de julgarem que éramos dois maricas. Fazia-me festas. Chegavam as férias e ia para casa dele, e, à noite, na cama, ia-me dar um beijo e levava-me bolachas e água... Mas, ao mesmo tempo, queria que aprendesse a disparar uma espingarda horrível e eu tinha um medo... tinha medo de tudo...  

Fala muitas vezes de já estar "a rapar o fundo ao tacho", de não conseguir escrever mais...
Eu sinto que tenho livros para fazer, às vezes penso que sou como uma vaca, ou égua, ou cabra, que ainda pode engravidar mais três ou quatro vezes. Gostava de continuar a escrever. Às vezes penso que talvez tenhamos nascido com certo número de livros cá dentro. Se eu não os escrever, a minha vida não tem sentido. 

Não pensa em fazer uma autobiografia, mas tem memórias tão marcantes e tão presentes na sua literatura... 
Em todos nós. Ortega y Gasset dizia que a vida adulta era a infância fermentada. A minha vida já está toda nos meus livros. Sobretudo nos últimos. Nos primeiros, tive de fazer aquela catarse, de me libertar da guerra e das coisas horríveis que vivi. E do sofrimento muito grande que sempre me acompanhou, para grande indignação da minha mãe que dizia "nasceste com tudo: és bonito, és inteligente, tens uma família que gosta de ti, não passas fome e nunca estás satisfeito..." Eu não sou grande espingarda na alegria, de facto. Nunca fui extrovertido nem alegre e sinto esta sede de amor e de ternura inextinguível... 

A proximidade da morte mudou-lhe a vida? 
O que passei nos últimos seis anos, fez-me estar nas tintas para que os livros fiquem ou não. Passei por coisas muito duras, diante da morte. Aquele encontro com o [George] Steiner foi maravilhoso, nunca nenhum homem me impressionou tanto como aquele: pequeno, aleijado, com o braço direito com metade do tamanho do esquerdo, e a mãe, que odiava a autopiedade, obrigava-o a escrever com a mão direita... Nunca vi um homem tão culto, inteligente, luminoso... Disse-me: "Sabe porque é que eu não quero morrer? Porque depois não posso ler o jornal do dia seguinte." Quando ele sorria era extraordinário: tornava-se tão atraente. Ele é daquelas pessoas raras que, quando estão a falar connosco, parece que mais ninguém existe a não sermos nós e que nos fazem sentir únicos, está a ver?  

Sim.
É tão raro isso, ele estava a olhar para mim e nada mais existia a não ser nós dois. E eu a dizer bem do Monte dos Vendavais e ele "mas não acha aquilo um bocadinho histérico?" e, de repente, dei por mim a olhar para o Monte dos Vendavais com os olhos dele e a achar que, de facto, é um bocadinho histérico [risos]. Quando leio 
Nabokov parece que ele me está sempre a dizer "repara como eu sou inteligente, repara como eu sou inteligente"... E isso irrita-me, não quero sentir o autor. Pois, disse o Steiner, mas ele inventou uma coisa: as Lolitas, que agora há por todo o lado. É verdade, ele é que as inventou... Passei uma tarde maravilhosa, foi tão bom, um prazer intenso, ele tinha em casa o piano do Darwin, e cartas do Freud para o pai... Em Harvard, o gabinete dele ficava ao pé do  de um grande físico, um homem de grande beleza, com um cachimbo, e que toda a gente tentava imitar, os gestos e tal. Uma vez, Steiner ouviu-o a dar uma descompostura a um outro físico: "Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco?" Como é que você que é tão novo ainda fez tão pouco... É extraordinário. 

Mas já afirmou que não acredita em bons romances antes dos 30 anos...
Porque é preciso ter vivido. Quem teve, como eu, uma infância isolada, em Benfica, que era um arrabalde, com pouca gente, onde todos se conheciam... A minha mãe sabia as horas pelas pessoas que passavam nos elétricos, e dizia-se "ir a Lisboa"... Saí dali para o liceu. Do liceu para a faculdade. Da faculdade para a guerra. Não tinha vivido nada. Não havia raparigas, não tinha irmãs, era o filho mais velho de dois filhos mais velhos, não tinha primas, só nasceram muito depois. Não sabia o que era uma rapariga, tinha imensas fantasias, mas não sabia o que era. Os liceus não eram mistos, só na faculdade é que havia raparigas, mas era tímido demais para meter conversa e fui virgem até muito tarde. Tinha uma vida solitária. Foi só na guerra que me apercebi de que não era o centro do mundo. Era um como os outros, ali. E os rapazes portugueses eram extraordinários, vi-os na guerra, na doença, com uma dignidade... "Abraça-me que é o último abraço que me dás", já viu isto?... E como a morte é injusta e cruel o sofrimento... O condutor do rebenta-minas era sorteado, tinha mais chances de morrer, e vinham ter comigo, porque queriam fazer o testamento: tinham um fio, um anel e um relógio, quando tinham... Uma vez, numa emboscada, um rapaz sem pernas só dizia: "Quando o meu pai souber mata-se, quando o meu pai souber mata-se..." E foi aí que comecei a tornar-me pessoa crescida. Na faculdade, havia aquele movimento contra a ditadura, mas eu era cobarde e tinha medo. E então em África, os soldados só admiravam as pessoas quando eram duras e eu queria ganhar o seu respeito, porque me tinha comportado sempre como um cobarde: na faculdade tinha medo da polícia de choque, tinha medo da Pide, tinha medo de tudo... Era um cobarde. E agora a coisa em que eu tenho mais orgulho é no amor dos meus soldados. Eu olho para eles e, de repente, eles têm outra vez 21 anos, quase todos do Norte, mas muito mais adultos do que eu, que, com 26, me achava um homem. Só então percebi porque fomos nós que andámos nas caravelas... Fazíamos uma guerra sem condições nenhumas, o stresse era constante, mas havia momentos bons, mesmo de alegria, foi lá que conheci pessoas extraordinárias, corajosas, generosas, boas. E eu que não sabia que as pessoas podiam ser tão boas. Se as minhas filhas estivessem aqui, começavam já a dizer em coro: "O pai tem a mania que toda a gente é boa"... [risos]. As pessoas sofrem tanto, e a vida é tão injusta, quase para toda a gente... e o que a gente sofre e ninguém sabe...  


Há muitas crónicas em que parece que fala com amor da amizade...
É engraçado, eu beijo os meus amigos, que não são muitos, mas beijamo-nos sempre. Mas nunca tive um amigo homossexual que me beijasse. Esses estendem-me sempre a mão. Nunca percebi porquê. O Cardoso 
Pires beijava-me, o Eugénio de Andrade nunca. E, no entanto, eu sei que ele gostava muito de mim. Nunca o fui ver, porque a doença o tinha atacado naquilo que ele mais prezava: a sua beleza. Tinha sido muito bonito, uns olhos verdes lindíssimos. E sei que ele esperava por mim, porque dizia à senhora que tomava conta dele "ponha o meu fatinho aí, porque se calhar o meu amigo vem ver-me", e eu nunca o fui ver... E ele comigo foi sempre de uma ternura e doçura. Quando mataram o Dias Coelho teve a coragem de publicar um poema. Tinha, em relação aos amigos, uma imensa elegância. Numa ocasião, saíra um livro do Jorge de Sena, de quem ele era muito amigo, que era o Dedicácias, em que Sena atacava, de uma forma, a meu ver, reles, homens que tinham muito mais talento do que ele, o Mário Cesariny, o [Vitorino] Nemésio... Cheguei lá a casa do Eugénio de Andrade e disse-lhe: "Já viu o que o seu amigo Jorge escreveu?" Ele ajoelhou-se e tirou o livro de baixo do sofá e explicou-me que o tinha escondido ali para que eu não pensasse mal do Jorge. Acho isso extraordinário de amor. Arranquei a página de um livro com uma dedicatória de um escritor italiano que diz: "Para o António com amorzade."  

Está ali na sua parede...
Achei tão bonita a frase que a emoldurei. A amizade é como o amor, a gente encontra uma pessoa e fica amigo de infância.  E o Zé [Cardoso Pires] faz-me muita falta. Ele dava-me o braço na rua, um homem seco e rugoso, com uma personalidade difícil, dava-me o braço na rua... imagine. Ele tinha gestos de uma infinita generosidade... Sempre que um pedinte o interpelava, ele, sempre com tão pouco dinheiro, parava e andava à procura nos bolsos... e dava. Uma vez, fez-me um telefonema tão bonito: "É para te dar os parabéns, porque ganhei um prémio." E depois tinha a mania do Nobel, e dizia "perdemos", porque ficava muito triste porque não me tinham dado o Nobel.  

Já não pode mais com a conversa do Nobel, pois não?
Quero lá saber, já me deram tanta coisa. Prémios que eu nem sabia que existiam. Noutro dia, telefonaram-me de Espanha, foi uma barraca, porque me disseram que tinha ganho o prémio Rufo e a minha resposta foi "Quanto?" - e ouvi imensos risos de pessoas, estava em alta voz, em plena conferência de imprensa. Era uma pipa de massa.  

Há bocado pareceu-me que fugiu à questão quando eu lhe perguntei, citando uma frase sua, se tinha noção do fascínio que exercia nas mulheres...
Aí voltamos ao Mozart. Se eu pudesse sentar-me ao colo da Maria Antonieta e pedir-lhe para ela gostar de mim...
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 Reportagem Por Ana Margarida de Carvalho texto e gonçalo rosa da silva fotos
Fonte:  http://visao.sapo.pt/23/12/2013 - Site português.