sábado, 29 de dezembro de 2012

O que os olhos não podem ver

J.J. Camargo*

 

Jose Saramago, no seu Ensaio sobre a Cegueira, observou que ela afasta a pessoa das coisas, mas que a surdez é pior, porque afasta-a das outras pessoas.

Lembrei disso quando a Iraci entrou tateando no consultório, acompanhada de uma família amorosa que não escondia afeto e preocupação com a ansiedade dela.

Aos 84 anos, com uma cabeça rápida e bem- humorada, tivera o diagnóstico de um pequeno tumor pulmonar havia seis meses, e relutara durante este tempo contra uma indicação cirúrgica que ela rechaçava com um argumento simplista: como não sentia nada, a agressividade do tratamento proposto não se justificava.

Pressionada pela revelação de que a lesão crescera numa nova tomografia, ela foi trazida, transbordante de medo, para ouvir uma segunda opinião.

Revisados os exames, rimos um pouco com a informação de que jamais tragara durante mais de 40 anos de fumo ininterrupto. Quando a repreendi dizendo do absurdo de fumegar durante tantos anos e nunca aproveitar o bom de fumar, ela deu uma risada espontânea que, tive a impressão fugaz, colocou um brilho pálido nos olhos azulados e mortos.

A justificativa da ausência de sintomas pelo pequeno tamanho da lesão, e que era exatamente por isso considerada tão boa candidata ao tratamento cirúrgico, pareceu remover uma tonelada de dúvidas e, na medida em que a consulta avançou, as mãos pareceram mais soltas, pararam de alisar nervosamente o vestido, e entraram na conversa como bengalas das palavras.

Quando ela espontaneamente anunciou que estava pronta para ser operada, nos despedimos, e abraçados, ela me disse: “Gostei tanto do Sr.! Que pena que não pude lhe ver!”

E eu respondi, provocativo: “Pois eu pude, e gostei do que vi!”

Ainda abraçados, ela completou: “Então vamos nos querer do meu jeito. E nunca subestime o que percebem aqueles que não podem ver!”

Quando ela saiu, os passos pareciam mais firmes e seguros. Havia a leveza de quem descarregara o peso da indecisão. No caminho de volta para casa haveria mais luz. Daquele tipo que, inalcançável aos olhos, só se acende com plenitude nos coração dos cegos.
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* J.J. Camargo é cirurgião torácico e chefe do Setor de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3995387.xml&template=3916.dwt&edition=21095&section=1028
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