domingo, 16 de dezembro de 2012

O Juízo Final!

ANDRÉ SANT'ANNA*
 

EU NÃO DISSE que ia voltar para o Juízo Final? Então cá estou, homenzinhos! Sei até que aquilo foi uma maluquice que deu na minha cabeça, quando comecei a falar em amor, em perdão, em um deus de amor e de perdão, que é o Deus! O Deus único! O Deus pai! O Deus meu pai! O Deus eu! Uma maluquice que me deu! Um amor imenso por todas as coisas que há!

Aquela maluquice que me deu de insistir com aqueles primitivos dos tempos em que eu, filho de Deus, passei pela Terra, que eles, os primitivos que apedrejavam adúlteras, que torturavam e crucificavam filhos de Deus com incrível naturalidade, não deveriam ficar, lá, julgando os outros, apedrejando os outros, crucificando os outros, fazendo de tudo para que todas as pessoas que há sejam sempre infelizes, inclusive eles próprios, os primitivos apedrejadores de adúlteras!

Com tanta infelicidade em seus coraçõezinhos, tanto ressentimento recalcado, os infelizes não só me torturaram muito, não só me botaram na cruz, como também, logo a seguir, foram deturpando as minhas ideias, até transformarem o Filho de Deus, o próprio Deus, eu, numa espécie de inspetor de alunos, de bedel de colégio de padres, de freiras, essas parada!

Sim! Os selvagens primitivos apedrejadores de adúlteras abandonaram o amor! Abandonaram o perdão! Abandonaram o desapego material! Os mendigos! Os leprosos! As adúlteras! Os lírios do campo! As criancinhas! Sim! O Bem! Tudo! Deixaram tudo de lado: aquela maluquice toda, aquela parada meio hippie, meio comunista, meio maluca, aquela parada de sermos todos irmãos, iguais em importância! E o coitado do Deus, o pobre de mim, Jesus, fui transformado em mero guardião da masturbação alheia, em vil controlador do comprimento da saia das moças! O pobre maluco de mim, Cristo, acabei pintado pelos detratores como um caretinha falso moralista que proíbe tudo! Que proíbe inclusive o amor! Que proíbe principalmente a felicidade!

Mas esse Jesus de vocês, ainda muito primitivos, selvagens, recalcados, esse caretinha, bedel, controlador, inspetor, proibidor, não sou eu, Jesus de verdade! Não sou eu, Jesus do amor! Esse Jesus caretinha, na verdade, sim, meus amigos, é o próprio Capeta, o Deus do Dinheiro, o Deus da Caretice! Por mil demônios!

Então, a brutalidade de vocês, selvagens primitivos caretas adoradores do dinheiro, sem nenhum amor ao próximo, sem nenhuma capacidade de perdoar, predominou sobre a Terra!
Ficou tudo invertido!

Os criadores do Jesus Capeta Careta, selvagens descendentes daqueles primitivos que apedrejavam mulheres e torturavam filhos de Deus na cruz, venceram e convenceram toda a humanidade, que é formada em sua esmagadora maioria por indivíduos primários, violentos, possuídos por toda espécie de recalques e ressentimentos profundos inconscientes, de que o importante não é olhar os lírios do campo, que são cobertos de beleza e glória mesmo não se preocupando em acumular riquezas, roupas douradas, bens materiais, enfim! Não! Para os capetas caretas acumuladores de ouro, o importante é justamente o contrário! Os brutos convenceram os imbecis, vocês, de que o importante é ter muito dinheiro, é dirigir aqueles automóveis com vidro preto para que os mendigos, os leprosos, as adúlteras, os filhos de Deus, não possam olhar vocês nos olhos, a cara bem barbeada de vocês, adoradores do Bezerro de Ouro!

Convenceram os energúmenos de que o importante, o respeitável, é usar gravatas! Sim! Gravatas!

Que contradição paradoxal insolúvel! O Homem de Bem, construído pelos primitivos sem amor, esses que estão sempre usando o meu nome em vão, é justamente aquele cara caretinha, com aquele cabelo arrumadinho e... gravata! Enquanto que os considerados inimigos do bem e da respeitabilidade são esses humanos meio esquisitos, malucos, meio mal vestidos, meio cabeludões que não se preocupam muito com a própria aparência, igual aos lírios do campo, sem carro, sem cartão de crédito!

Os considerados pecadores, desde a ressurreição do deus que ama e perdoa, no caso eu, modéstia à parte, acabaram sendo exatamente esses caras meio parecidos comigo, Jesus do amor, cabeludo meio hippie, meio mendigo, meio comunista, com esta mania meio hippie, meio comunista, meio maluca, de repartir o pão e compartilhar o amor!

Vocês, primitivos selvagens idiotas tapados, não têm mesmo salvação. Vocês usaram muito mal o livre arbítrio que Deus, no caso eu, modéstia à parte, lhes deu! Vocês optaram pela moral hipócrita, pela autoimportância, pela perseguição cruel aos diferentes, os maluco! Vocês realmente acham que são os favoritos de Deus, se acham melhores do que um macaco, um cão, uma barata, um verme! Vaidade! Arrogância! Vocês vão todos para o Inferno, canalhas!

Hoje, apenas uma meia-dúzia vai subir ao Reino dos Céus! Justamente esses que foram perseguidos, humilhados, proibidos! Os diferentes! Os mendigos! Os leprosos! As prostitutas! As criancinhas pobres maltratadas! Os que não sabem dar o nó na gravata! Os que andam a pé! Ah! Eu sou maluco! Viva os maluco!

Bye bye, baby, bye bye!

Bum. 
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* Escritor. Músico.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/84084-o-juizo-final.shtml
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