O jornalista Klester Cavalcanti conseguiu entrar em Homs em maio de 2012 como intuito de apurar informações tanto sobre os conflitos que aconteciam na Síria há um ano, quanto registrar a rotina das pessoas que conviviam com uma situação de tensão tão duradoura. “Na maior cidade síria contra al-Assad”, ele chegou sabendo que três jornalista estrangeiros e mais de 20 mil pessoas haviam sido mortas até então em território sírio.

Mal chegou em Homs, foi detido por soldados a serviço do ditador Bashar al-Assad. Durante os seis dias que ficou na prisão, conseguiu (não do jeito que esperava) cumprir seus objetivos, especialmente o de registrar a rotina dos locais, por meio de conversas com outros presos e soldados. Em Dias de Inferno na Síria (Benvirá, 288 páginas, R$ 32,50), Klester reproduz bem a tensão que experimentou, mas não esquece que, mesmo no meio de um conflito tão violento, todo mundo é humano e tem uma boa história para contar. 

Qual o momento mais tenso que você viveu dentro da prisão?
O mais tenso foi durante uma discussão que dois presos tiveram por causa de futebol . Sério. Ficaram os dois gritando em árabe, de um jeito muito violento. Fiz um amigo na cela que falava inglês e traduziu para mim o que diziam durante a discussão. 

Além de você, tinha algum preso fora do perfil para o lugar?
Um dos presos era um universitário de 22 anos, de um curso de Artes. Esse cara conhece músicas de várias partes do mundo. Do Brasil, Tom Jobim, Caetano Veloso, Daniella Mercury. Perguntei se ele conhecia alguém mais jovem. Ele: “tem um cara que não lembro, mas ele canta assim “ai se eu te pego, ai, ai se eu te pego”. 

Depois dessa experiência, cobriria uma guerra de novo?
Tranquilamente. 

Há algo que você fez nessa viagem a Síria que você evitaria fazer em uma nova cobertura de um conflito?
Não acho que tenha cometido algum erro. Tinha contatos, autorização, nada do que me levou para a prisão foi por causa de um erro, mas sim circunstâncias fora do meu controle. O que fiz lá faço sempre é tratar todo mundo como igual. Não importa se é rebelde ou soldado. E isso vale para tudo. Entrevistar um senador, um policial, um faxineiro. Para todos os lugares que eu ia, as pessoas me tratavam com respeito, porque eu as tratava com respeito. 

Depois de tantos casos de jornalistas presos, torturados e mortos no conflito, acredita que pode haver uma melhoria na segurança e na punição de quem comete esses crimes?
Se mataram uma jornalista americana [Marie Colvin, morta em Homs durante um bombardeio em fevereiro de 2012] não deu em nada ainda, acredito que não. Uma melhoria só seria possível caso fosse feito algo como a Convenção de Haia, onde a ONU mobilizaria entre seus países membros a criação de leis de proteção para jornalistas trabalhando em zonas de conflito.

Dias de Inferno na Síria – VIP

Confira, com exclusividade, um trecho do novo livro de Klester Cavalcanti, "Dias de Inferno na Síria"

Ameaças, algemas e torturas
Dentro da sala havia três homens. Dois eram altos – um com cerca de 1,80 metro e outro com 1,90 – e atléticos. O terceiro não tinha mais de 1,60 metro e era uma figura raquítica – devia pesar uns 50 quilos. O rosto seco deixava as bochechas murchas e os ossos da face salientes. Sobre o nariz fino e alongado, ficavam apoiados óculos cujas lentes eram tão grossas que faziam seus olhos castanhos parecerem esbugalhados. O cabelo era ralo e cobria-lhe as orelhas. Era o único que usava um tipo de uniforme: calça cinza e camisa azul com divisas nos ombros, mas sem identificação. Todos fumavam.

O homem pequeno estava sentado numa cama de solteiro, encostada à parede frontal e atrás de uma escrivaninha de madeira. Diante dele, três cadeiras de plástico e um banco de madeira de uns 2 metros de comprimento, desses que há nas igrejas. Obedecendo aos gestos do sujeito mais alto, sentei-me no banco e apoiei o cotovelo direito na escrivaninha. O policial dos óculos fundo-de- garrafa começou a me interrogar. Em árabe. Eu apenas olhava para seu rosto, imaginando de onde ele havia tirado que eu falava seu idioma. Encarei-o e, com toda a calma que fui capaz de fingir naquele momento, falei: “No arabic, sir. Just english”.

Os três policiais se olharam e trocaram algumas palavras, como que se questionando a respeito do que fazer comigo. Olhei para o que agia como chefe dos outros e disse quatro palavras, na esperança de fazê-lo entender o que eu tinha em mente: “Yasin Houssein. Arm. English”. Se eles chamassem Yasin, o militar poderia ajudar como intérprete. Deu certo. O homem pequeno usou o telefone preto em cima da escrivaninha e fez uma ligação que durou menos de um minuto. Tão logo desligou, acendeu outro cigarro e me ofereceu um copo de chá. Agradeci, mas recusei. Continuava imaginando que poderiam me envenenar a qualquer momento.

Fiquei sentado, calado e ouvindo os três indivíduos conversarem em tom formal durante quinze ou vinte minutos. Três pancadas na porta de ferro anunciaram a chegada de Yasin. Ao vê-lo entrar, senti enorme alegria. Era como reencontrar um grande amigo que há muito não via. Precisei me conter para não levantar e abraçá-lo. Um gesto de amizade entre mim e o soldado poderia criar problemas para ele.

- Salam Aleikum. – disse Yasin.
- Aleikum as-Salam. – respondemos, em coro.
- Como você está, meu amigo? – ele me perguntou.
- Mal. Fui trazido para cá e até agora ninguém disse o que eu fiz de errado para estar aqui. – respondi.
- Fique calmo. Tudo vai ficar bem.
- Aliás, você sabe por que eu estou aqui?
- Não. Ninguém me disse nada.
- Você sabe se este homem é da polícia? – perguntei, apontando com o nariz para o pequenino.
- Sim. É um policial.

Yasin passou a falar com o homem dos óculos fundo-de-garrafa, que mantinha a expressão sisuda. Ele queria me interrogar e Yasin serviria de intérprete. Passei cerca de 15 minutos respondendo às mesmas perguntas que já me haviam feito diversas vezes, entre elas: O que você veio fazer em Homs? Por que trouxe máquina fotográfica e filmadora? Quanto tempo pretende ficar na cidade? Conhece alguém aqui? Já esteve em Israel? Mantive a versão de que estava em Homs para procurar os familiares de uma amiga brasileira. Percebi que Yasin tentou ajudar, mostrando a cópia do e-mail com os nomes e telefones das pessoas que eu iria tentar localizar na cidade.

Enquanto o soldado fazia a tradução de tudo o que eu falava, o chefe escrevia tudo numa espécie de formulário. Quando já havia escrito o bastante para ocupar três páginas, ele disse algo a Yasin e entregou-lhe uma caneta.

- Você precisa assinar esse documento. – falou Yasin, apontando a caneta em minha direção e mostrando os papéis em cima da escrivaninha.
- Não posso assinar. Está escrito em árabe. – respondi.
- Mas ele escreveu apenas o que você falou. Pode confiar em mim.
- Eu confio em você. Mas não posso assinar um documento escrito num idioma que eu não entendo e, principalmente, numa situação como essa.
- Se você não assinar, a situação pode ficar ainda pior.
- Que seja. Mas esse papel eu não assino.

Antes mesmo que eu acabasse de falar, o homem franzino já tinha colocado em pé seu corpo esquelético. Em tom ameaçador, perguntou algo a Yasin. Ele queria saber por que eu ainda não assinara o documento. Com sua voz compassada e serena, o intérprete me disse que era melhor eu assinar logo. Caso contrário, o chefe iria me torturar até eu obedecer. Tomado por indignação, mantive minha decisão. Quando Yasin traduziu o que eu havia acabado de falar, o homem minúsculo se agigantou. Soltou gritos que preencheram os quatro cantos da prisão subterrânea. Chutou a cadeira ao meu lado, fazendo-a cair e escorregar uns 5 metros na direção da porta, e botou o dedo na minha cara. Vociferava, com os olhos quase atravessando as lentes grossas dos óculos e as veias do pescoço fino saltando. “Se estivéssemos só nós dois nessa sala, ele não gritaria assim comigo”, pensei.

Os dois homens de roupas civis me arrancaram do banco e me forçaram a sentar numa das cadeiras. Tentei levantar, mas eles me empurraram de volta. O maior deles ajoelhou-se no chão, atrás do encosto da cadeira, e me abraçou na altura dos cotovelos, mantendo meus braços presos à cintura. O outro segurou meu rosto com as duas mãos. Ainda gritando, o chefe deu uma longa tragada o cigarro e segurou-o entre o polegar e o indicador da mão direita. Ele berrava me encarando nos olhos. Seu nariz pontudo quase tocou o meu. Chegou tão perto que senti gotas da sua saliva molhar meu rosto. Yasin traduziu os gritos: “Se você não assinar o documento, ele vai queimar seu olho com o cigarro”.

Acreditei que fosse um blefe. Por mais cruel e insano que fosse, o policial sírio não teria coragem de queimar o olho de um jornalista brasileiro que estava em seu país com o visto de trabalho devidamente autorizado pelo governo. Permaneci calado, encarando meu algoz. Com o cigarro entre os dedos, aproximou a ponta acesa do meu olho esquerdo. Eu olhava-o nos olhos, como que não acreditando que ele seria capaz de cumprir a ameaça. Senti o calor da brasa, a dois ou três centímetros da minha retina. Só então percebi que o policial estava realmente disposto a queimar meu olho. Mas eu não iria voltar atrás na minha decisão. Quando estava na iminência de tocar o meu olho, o homem pequeno desviou o cigarro e pressionou a ponta acesa na minha face esquerda. Senti o calor queimando minha pele. A dor me fez trincar os dentes, apertar os olhos com toda a força que tinha e respirar de forma ofegante, apenas pelo nariz. Lembro de ter ficado aliviado por não ter sido no meu olho.

Meu agressor virou as costas para mim, tirou outro cigarro do maço e acendeu-o, sentando em cima da escrivaninha. Era tão miúdo que seus pés não tocavam o chão. Parecia uma criança numa cadeira de adulto. Com a voz mais calma, falou algo para Yasin. Acreditei que ele desistira da ideia de usar a violência para me forçar a assinar o documento em árabe. Muito pelo contrário. “Ele disse que queimou seu rosto apenas como uma amostra. Se você não assinar agora, ele vai apagar o cigarro no seu olho”, traduziu Yasin, com a voz preocupada. “Meu amigo, assine logo esse papel. Você pode ficar cego”, ele me disse. Ainda sentindo meu rosto arder e com os homens me mantendo preso à cadeira, falei que não iria assinar. “Se você escrever meu depoimento em inglês, eu assino. Caso contrário, nada feito”, falei para Yasin.

O soldado traduziu o que eu falara, fazendo o policial dar um salto da escrivaninha e parar em pé à minha frente, com os joelhos tocando os meus. Com o cigarro entre os dedos, ele repetiu todo o procedimento, passo a passo, de forma metódica, como se já tivesse feito aquilo diversas vezes. Quanto mais perto a ponta acesa chegava da minha retina, mais certo eu ficava de que o policial, de fato, iria queimar meu olho esquerdo. Yasin não parava de falar, nervosamente: “Diga que você vai assinar o documento! Diga que você vai assinar!”. Eu não podia aceitar aquele tipo de intimidação. “Sou um cidadão brasileiro. Tenho meus direitos. Não fiz nada de errado para estar aqui”, eu gritava para Yasin. Toda a minha firmeza evaporou-se quando senti o calor do cigarro a milímetros do meu olho. “Ok. Ok. Eu assino”.

O policial não precisou de tradução para entender que sua tortura havia funcionado. Deu um discreto sorriso, revelando dentes amarelados, e recolocou o cigarro na boca. Fez um sinal para que os dois homens me soltassem e entregou-me uma caneta, apontando com o indicador ossudo onde deveria assinar. Obedeci. De certa forma. Na verdade, não assinei o documento. Não queria minha assinatura num depoimento escrito em árabe e cujo conteúdo nunca me foi revelado. Apenas escrevi meu primeiro nome, em letra de forma. Felizmente, o policial não pensou em conferir minha assinatura no passaporte – que estava nas mãos dele – com o nome que eu acabara de escrever no documento. Se o fizesse, talvez a situação voltasse a se complicar para o meu lado.
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Fonte: http://vip.abril.com.br/cultura/literatura/camaradagem-no-meio-da-guerra/