domingo, 16 de dezembro de 2012

A Superdona da verdade

 Michelson Borges*

 
A revista Superinteressante, ao longo dos anos e cada vez mais distante de sua proposta original, se tornou extremamente previsível e redundante. Tanto é assim que, quase sempre nos meses de dezembro, os editores dela dão um jeito de publicar alguma coisa sobre Jesus, desde que seja algo sensacionalista e contrário ao que dizem os Evangelhos. O título da matéria de capa deste mês é autoexplicativo e típico: “Jesus, a verdade por trás do mito”. É a mesma ideia de sempre: o relato evangélico sobre Jesus é mitológico, mas a Superinteressante, com base em duas ou três fontes (sempre liberais ou simplesmente descrentes), tem a verdade. É a Superdona da verdade.
Segundo a reportagem, “é consenso entre os historiadores de que Jesus nasceu mesmo em Nazaré”. Então citam John Dominic Crossan (sempre ele), para quem “tanto Mateus quanto Lucas dizem que Jesus nasceu em Belém com o objetivo de dizer metaforicamente, simbolicamente, que ele é o ‘novo rei Davi’”.
E a revista prossegue em sua tentativa de desconstrução da história: “O motivo que Lucas dá para José e Maria terem ido a Belém não existiu. O governo de Augusto é extremamente bem documentado. E não há registro de censo nenhum. Menos ainda um em que as pessoas teriam que ‘voltar à cidade de seus ancestrais’.”
Mas o fato é que, quando o assunto é a pessoa de Jesus Cristo, mesmo entre os incrédulos a resposta não é clara. “Existem aqueles que defendem a ideia do Jesus mito, dizendo que ele não foi nada além do que um plágio de divindades egípcias, gregas, romanas e do hinduísmo”, explica o pastor e teólogo Luiz Gustavo Assis, de Porto Alegre, RS. Alguns ateus militantes são taxativos em dizer que Jesus jamais existiu, e quase num malabarismo lógico (ou ilógico) tentam descartar as mais de dez referências extrabíblicas que O mencionam. Mais recentemente, o agnóstico Bart Ehrman lançou o livro Did Jesus Exist? The Historical Argument for Jesus of Nazareth (HarperOne, 2012), no qual ele curiosamente defende a historicidade do carpinteiro de Nazaré! “Afinal, quem está com a razão?”, pergunta Luiz.
Entre uma e outra crítica, existem uns poucos fatos bem conhecidos na matéria da Super. Por exemplo: “Outro consenso é o de que Jesus nasceu ‘antes de Cristo’. A fonte aí é a própria Bíblia [note como, de repente, numa crise de “bipolaridade jornalística”, a Bíblia passa a ser aceita como fonte histórica]. Mateus e Lucas dizem que Ele veio ao mundo durante o reinado de Herodes, o Grande (não confundir com Herodes Antipas, seu filho, o soberano da Galileia durante a fase adulta de Jesus). Bom, como esse reinado terminou em 4 a.C., Ele não pode ter nascido depois disso. E sobre o dia do nascimento a Bíblia é clara: não diz nada.” Curiosamente, Superinteressante escolhe os textos bíblicos que devem ser claros e confiáveis e descarta os que não quer que sejam confiáveis. Tanto é que, quando trata dos “reis magos”, sentencia: “Essa é uma história típica da mitologia em torno de Jesus.”
No quarto tópico tratado pela matéria sob o intertítulo “Jesus era só um entre vários profetas”, há a sugestão de que Jesus Cristo teria sido apenas um profeta. O especialista consultado é Chevitarese (sempre ele, também), para quem João Batista seria um “concorrente” de Cristo: “Ele não se ajoelharia na frente de Jesus e diria que não é digno de amarrar a sandália dele, como está nos evangelhos”, diz Chevitarese. E mais uma vez ficamos confusos: Superinteressante aceita ou não o relato dos Evangelhos?
Mais: não é possível aceitar que Jesus fosse apenas um profeta. Nenhum profeta bíblico jamais assumiu prerrogativas divinas como a de perdoar pecados e se dizer Deus. Conforme lembra Luiz Gustavo, no Antigo Testamento, o verbo hebraico salah (perdoar) só ocorre tendo Deus como sujeito. “Quando Jesus utilizou esse verbo, estava deixando bem explícito como Ele via a Si mesmo”, diz o teólogo. Jesus fez isso mais de uma vez, tanto é que quase foi apedrejado por blasfêmia. Fosse apenas humano e teria sido mesmo uma blasfêmia. Fosse apenas humano e não teria aceitado a declaração de Tomé: “Meu Senhor e meu Deus.” Se Jesus fosse apenas humano, jamais teria sido aceito como profeta, apenas. Ou seria um lunático ou um impostor. Não profeta.
O tópico 5 vai mais longe ao afirmar que Mateus, Marcos, Lucas e João não são os autores dos evangelhos. “Ninguém sabe quem escreveu os livros”, afirma a revista. Falso. Os chamados pais da igreja, ou seja, a geração seguinte de líderes que sucedeu os apóstolos, citaram vários textos dos Evangelhos, tanto é assim que, conforme acreditam alguns estudiosos, mesmo que se perdessem os manuscritos dos apóstolos seria possível recuperar toda a história de Jesus com base nos textos patrísticos que citam os Evangelhos.
Outra “verdade” da Super: “O mais provável é que comunidades cristãs tenham encomendado esses trabalhos [os Evangelhos] – e ditado aos escribas as histórias que conhecemos hoje.” Por quê? Porque, segundo a revista, os discípulos seriam analfabetos. Contraditoriamente, a mesma matéria informa que Mateus era cobrador de impostos e que Lucas era médico. Seriam mesmo analfabetos? De acordo com o especialista em Novo Testamento Ben Whiterington III, do Asbury Theological Seminary, nos EUA, a palavra grega agrammatos, utilizada em Atos 4:13 referindo-se aos discípulos de Cristo, tem o significado de não ser treinado nas leis rabínicas e não significa ausência de instrução. (Certa ocasião, a revista Galileu também afirmou que Jesus seria iletrado, esquecendo-se completamente da cena em que Ele escreve no piso do templo.)
“Dos evangelhos, o primeiro a ser escrito foi aquele que hoje [não apenas hoje, mas desde sempre] é atribuído a Marcos, quase 40 anos após a morte de Jesus”, afirma a matéria, se esquecendo de que uma fonte tão recente assim em relação aos fatos ocorridos seria facilmente refutada pelas testemunhas oculares ainda vivas na época. Segundo Luiz Gustavo, atualmente existe acalorada discussão envolvendo um fragmento descoberto entre os Manuscritos do Mar Morto, na Jordânia, e o Evangelho de Marcos. Trata-se do documento 7Q5, que muito provavelmente seja o manuscrito mais antigo desse evangelho, de acordo com o falecido papirologista espanhol e teólogo Josep O’Callaghan. “É bom lembrar que a comunidade de Qumran foi destruída antes do ano 70 d.C., e na biblioteca deles já havia um exemplar do Evangelho de Marcos. Sem dúvida, ele deve ter sido escrito antes dessa data”, conclui Luiz. Os textos de Paulo são ainda mais próximos do tempo de Jesus. Um exemplo disso é 1 Coríntios 15:3-7. Trata-se de um antigo credo cristão que Paulo estava citando para os fiéis de Corinto. Existem várias palavras e expressões nesses versos que jamais foram utilizadas por ele em outras passagens, demonstrando que ele estava citando algo. Não só isso, mas os verbos “entregar” e “receber” eram termos técnicos utilizados no meio rabínico para transmitir tradições orais.
As fortes tendências semíticas nesses textos demonstram que esse credo surgiu na região de Jerusalém e Paulo deve ter tido contato com ele em algum momento depois de sua conversão, em 34 d.C., poucos anos após os ministério de Jesus, que se encerrou em 31 d.C. “Em outras palavras”, explica Luiz, “o que temos em 1 Coríntios 15:3-7 é um credo cristão falando da morte, sepultamento, ressurreição e das aparições de Jesus, elaborado pouco tempo depois desses eventos, e que facilmente poderia ser desmentido.”
Na contramão da Super, a jornalista Isabela Boscov, na revista Veja do dia 15 de dezembro de 2004, escreveu: “As fontes mais aceitas sobre a trajetória de Jesus – os evangelhos sinópticos, de Mateus, Lucas e Marcos – são consistentes com o que se sabe sobre a Palestina do século I, de forma que a chance de serem fruto da imaginação de seus autores é desprezível.”
Sir William Ramsey, célebre historiador e arqueólogo do século 19, esforçou-se por demonstrar que a história de Lucas estava cheia de erros. Entretanto, após toda uma vida de trabalho e estudos, ele escreveu: “A história de Lucas é insuperável quanto a sua fidedignidade” (The Bearing of Recent Discoveries on the Trustworthiness of the New Testament [Grand Rapids: Baker], p. 81). Mas a Superdona da verdade consulta esse tipo de fonte? Não, nunca.
A revista não ia perder a chance de colocar o dedo na polêmica em torno da suposta esposa de Jesus: ao falar a respeito dos “evangelhos apócrifos”, informa que “um deles é aquele descoberto recentemente e que ficou famoso por dizer que Jesus era casado”. Trata-se de um fragmento de papiro em que se lê: “Minha esposa [...].” O resto está cortado. “O manuscrito é dos anos 300 d.C. Bem mais recente que os evangelhos do Novo Testamento”, diz a matéria, em outro caso de contradição evidente. Como mais recente? O evangelho de Marcos não data do ano 70, segundo a própria Superinteressante? Vai entender... Mas o pior vem a seguir: “O que ele [o fragmento egípcio com texto incompleto e cortado] significa? Que alguma comunidade cristã daquela época acreditava que Jesus era casado.” Isso é interpretação mirabolante de quem não estuda a Bíblia. Ainda que acreditássemos na autenticidade do papiro, o fragmento de frase “Minha esposa [...]” poderia significar muitas coisas, inclusive uma menção à igreja, representada no Apocalipse (e em outros livros bíblicos) como a “esposa do Cordeiro”.
Além de também tentar redimir o traidor Judas (tópico 6) (leia sobre isso aqui, aqui e aqui), no tópico 7, a revista vai mais longe: procura reinterpretar as palavras de Jesus (registradas nos evangelhos que ela não aceita, relembre-se). “O reino de Deus ou Reino dos Céus) que Jesus pregava iria acontecer aqui na Terra mesmo [...] Jesus chega a afirmar que o Reino de Deus já chegou”, diz o texto, numa clara tentativa de sugerir que Jesus não Se refere ao fim do mundo. Que falta faz a boa teologia! Superinteressante deveria fazer o dever de casa e perguntar a alguns bons teólogos por que Jesus Se referia ao reino de Deus no futuro e no presente. Algum desses estudiosos poderia explicar que Jesus faz menção ao reino da graça (presente) e ao reino da glória (futuro). Como Rei dos reis, onde Jesus está, ali está o reino dos Céus. Portanto, o reino já estava de fato entre as pessoas do século 1, e também pode estar com qualquer um que convide Jesus para morar em seu coração, em sua vida. Mas o aspecto glorioso desse reino de fato está no futuro, quando Jesus voltar à Terra para resgatar aqueles que aceitaram o reino da graça. Simples assim. Não tem nada de oportunismo, como Superinteressante sugere, como se Jesus, ao ver que Sua pregação apocalíptica não se cumpria, teria se saído com esta: “Meu reino não é deste mundo.”
O viés da matéria da Superdona da verdade fica ainda mais claro no fim do texto, no “Para saber mais”. São indicados apenas dois livros, de autores que defendem a mesma linha de pensamento: André Chevitarese e o ex-cristão Bart Ehrman. Existem vários acadêmicos de respeito que poderiam ser citados como contraponto. O teólogo e filósofo Gary Habermas, da Liberty University, nos EUA (leia entrevista exclusiva com ele na revista Conexão 2.0 de janeiro), e Craig Evans, da Acadia Divinity College, no Canadá. Ambos possuem vários livros publicados sobre Jesus e o surgimento do cristianismo, mas são sempre ignorados em matérias como essa da Super.
Se não consegue sequer fazer bom jornalismo “ouvindo os dois lados”, como Superinteressante vai nos fazer crer que é capaz de falar de Jesus com isenção? Bem, o importante é vender revistas e Jesus é um bom “vendedor”. Isso é fato e a Super sabe muito bem.
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* Michelson Borges é jornalista e mestre em teologia.
Fonte:  http://www.criacionismo.com.br/2012/12/15

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