domingo, 25 de novembro de 2012

A esperança arrancada

 CECÍLIO ELIAS NETTO*
 
Há exatos trinta anos — quando vendi meu jornal — despedi-me dizendo do que pretendia fosse minha nova opção: ser jardineiro. Meu propósito era o de — dedicando-me mais a meu universo pessoal, escrevendo, lendo, refletindo — fazer um jardim para mim e, especialmente, dentro de mim. Este último tem sido mais difícil, mas já vem nascendo. O de plantas e árvores e flores, esse, tenho-o feito e, dele, vou cuidando.

Passei a ter lampejos do que é o mito do Paraíso Perdido, o homem no Éden. Não temo dizer: passa-se a conviver com o sagrado. Até as pedras deixam de ser apenas pedras, revelando outros significados e sentidos. Os druidas — misteriosos sacerdotes gauleses e celtas — reverenciavam as árvores como deusas verdadeiras, criadoras das vidas. E as plantas e as flores e os animais. O Éden se tornou um sonho recorrente do homem, como se houvesse, em cada um de nós, a recordação de algo que já não temos, mas que devêramos ter conhecido. A alma individual traz lembranças da alma universal. A nostalgia do Éden se disfarça no desejo de encontrar a paz e a felicidade. Em algum lugar. Mesmo sabendo estar no interior de cada um.

O lugar, no entanto, é essencial. Criar um mundo pessoal — como se ele fosse único — é construir a própria vida. Jardineiros por profissão — esses que fazem, cuidam de e enfeitam jardins — são pessoas generosas, pacíficas, sensíveis. Os com quem convivi sempre foram assim, com um olhar diferenciado — como se vissem e enxergassem o invisível que há nas coisas. O olhar deles parece fixar-se no nada. Mas, na verdade, eles olham para além do que aparenta ser. A alma dos jardineiros voa com o olhar deles. E, ao retornar, carrega aromas, cores e sons.

Quis ser jardineiro de tanto me encantar com os que conheci e conheço. De me deslumbrar como eles tratam a terra com ternura filial, com respeito quase devocional. Eles não sentem nostalgia do Éden, pois o constroem em seu cotidiano. Por isso, quis ser um deles. E, especialmente, jardineiro de mim mesmo, de dentro de mim, limpando a terra interior intoxicada de tantas inutilidades, desses lixos que — seduzindo e enganando — se vão juntando nas falsas ilusões da vida. Arar a terra da alma, limpá-la, prepará-la, ir plantando sementes de generosidade — eis o jardineiro de si mesmo que, na verdade, se esconde no mais fundo do coração de cada homem angustiado diante da vida. Só o belo cura a angústia. E que de mais belo pode haver, na alma humana, senão o seu verdadeiro jardim?

Venho, pois, tentando fazer-me jardineiro na vida. Das pedras que atirei, consegui recolher algumas e, delas, fazer ornamentos. Dos espinhos que lancei, tento que sejam apenas parte do ramo de flor, do tronco da árvore. E fui e vou plantando o meu jardim externo e o da alma. Curiosamente, ambos são caóticos. Plantas e árvores se entrelaçam e convivem, como se dizendo que, realmente, o sol é para todos.

E amigos me dão mudas, as mais estranhas, exóticas. Mas todas belas. Ganhei uma pequenina pela qual nutri carinho especial. E avisei minha gente: “Esta é só minha.” A amiga que ma deu falou ser Esperança o nome da mudinha. Encantei-me mais ainda. E fui cuidando dela eu mesmo. Fiz até um cercadinho de varetas para protegê-la. Plantei-a num espaço onde pudesse vê-la, do meu lugar de viver e trabalhar, biblioteca. Sentia-me um pai com filhote pequenino, espiando, a toda hora, para ver se ele estava bem.

Foi uma luta. Certa manhã, a Esperança, ainda pequenina, estava destroçada por saúvas. Insisti, comecei tudo de novo. E, meses depois, ela ressurgiu, tímida mas viva. Entendi que Esperança é planta teimosa. E dei-lhe ainda mais atenção. Quando o jardineiro, meu amigo, ia podar plantas, cortar a grama, eu o avisava, alarmado: “Cuidado com a Esperança.” Mas, numa outra manhã, ela apareceu esmigalhada, como se alguém ou algum animal a tivesse pisoteado.

Recomecei, insisti. E ela renasceu, brotou, reviveu. E foi torturada mais uma ou duas vezes, como se alguém ou algo fizesse-o de propósito. Teimei. E ela teimou comigo. Finalmente, ela cresceu, foi mostrando-se. E, nesta Primavera, a Esperança — já com meio metro de altura — mostrou os primeiros brotos de suas flores. Fiquei excitado, a sensação de ver um filho — que sofrera tanto — revelar sua juventude esplêndida. Eu, então, me senti jardineiro da terra e jardineiro na alma.

Ontem, um moço — auxiliar do jardineiro — cortando a grama, ceifou minha Esperança, arrancando-a como se fosse uma erva daninha qualquer. Sobrou, dentro de mim, uma dor aguda, inexplicável. E um medo pânico: e se a Esperança morreu de vez? Não deveria, ela, ser a última a morrer?
Com lágrimas secas, irei regá-la novamente. Mas terei, ainda,tempo?
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* Jornalista. Escritor.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/11/22
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