terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tiro os outros

Francisco Daudt*
 
É da natureza humana tirar os outros por si; todos os deuses, por exemplo, tiveram formas humanas 

"Você vai deixar os arrozinhos e feijõezinhos aí no prato, separados dos irmãos deles que já estão na sua barriga?", disse a minha babá. Chantageado pela culpa, raspei o prato. Naquela época os adultos faziam seu prato e você era obrigado a limpá-lo. Será que isto tem alguma relação com meu combate à obesidade pelo resto da vida? O que sei é que nenhuma dúvida tive sobre a antropomorfização da comida. (Sinto pelo nome, mas significa atribuir humanidade a coisas e animais). Eu tirava o arroz e feijão por mim. Se fosse separado de meus seis irmãos, ficaria muito triste, logo...

Achamos perfeitamente natural que os personagens da Disney ajam como humanos. Nunca nos ocorre que Mickey é um rato, Pateta um cachorro, Clarabela uma vaca, Horácio um jumento, Donald um pato (vocês já viram o Donald nu? Ele só usa um colete, mas quando o tira para o banho, cobre com as "mãos" as partes baixas por pudor!). O próprio Pluto, apesar de ser o mais bicho de todos, exibe uma bela dentadura humana, sem um único "canino".

É da natureza humana tirar os outros por si. Pense nos vários E. T. São homenzinhos levemente diferentes sempre. Os psicólogos evolucionistas sugerem que nossa consciência nasceu com este tosco ato de reflexão: "Ele está fazendo aquela cara que eu faço quando quero trapacear alguém, logo, deve ser um trapaceiro". Não pense que nossos ancestrais formulavam com tal complexidade, senão estaríamos tirando eles por nós. Era, a princípio, apenas uma sensação. Foi a aquisição da palavra que produziu o pensamento complexo.

Mas continuamos a tirar os outros por nós. Rigorosamente todos os deuses inventados pelo homem tiveram formas humanas, inclusive Iavé (o deus-pai judaico-cristão), de barbas brancas, sentado na nuvem.

Mas é no terreno da compreensão do outro que a coisa pega. "Honi soit qui mal y pense" (amaldiçoado seja quem pensar mal disto), disse o rei inglês Eduardo 3º nos anos 1300, sugerindo que a maldade estava na cabeça de quem julgava seu gesto cavalheiro de pegar a liga que caíra da perna da moça no baile. Aliás, falando na riqueza que a palavra traz ao pensamento, que sorte deram os ingleses pela invasão normanda. O anglo-saxão que falavam era tosco. O latim dos franceses abriu-lhes as mentes para sempre. Por isto as armas britânicas trazem duas frases em francês. "Dieu et mon droit" é a outra.

Sim, a maldade pode estar na cabeça de quem julga. O problema é que a bondade também. O Tufão não era burro, só era muito bom, incapaz de conceber que alguém pudesse ser tão mau. Precisou de muitos dados para se convencer que não podia tirar sua mulher por ele.

É, os outros podem ser diferentes de nós! Anos de prática psicanalítica me ensinaram isto. Sempre aparece o velho cacoete natural, só que hoje ele conversa com o aprendizado.

Este é meu ponto: quem for rápido no julgamento deixará de contemplar a imensa complexidade humana, tirará o outro por si, será rasteiro. Por isto um tribunal ouve a defesa do mais escancarado malfeitor, como temos assistido. 
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* Colunista da Folha.
Fonte: Folha on line, 30/10/2012
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