sábado, 20 de outubro de 2012

Para especialistas, Mo Yan representa via do meio na China


Quando o chinês Mo Yan foi anunciado pela Academia Sueca como o vencedor do Nobel de Literatura de 2012, no último dia 11, seu nome veio acompanhado de adjetivos como “subversivo”, colados a ele pela própria instituição de Estocolmo. Mas a reação exaltada de dissidentes como o artista plástico Ai Weiwei e o poeta Liao Yiwu, autor de um poema que é considerado uma antecipação do massacre da Praça da Paz Celestial, de 1989, nublou a figura do escritor. Um dos chineses mais traduzidos hoje, Mo Yan foi apontado por opositores mais ferrenhos ao comunismo como um autor oficial. Um pelego.
Como Yan é desconhecido no Brasil, onde seus livros chegam apenas em traduções para o inglês e para o francês importadas por livrarias como a Saraiva e a Cultura, VEJA Meus Livros procurou especialistas fora do país que pudessem explicar qual é de fato a sua posição, como funciona o jogo político no mercado literário chinês e como opera a censura no país de Mao.
De modo geral, a opinião de Michel Hockx, professor de chinês na Universidade de Londres, e Eric Abrahamsen, tradutor americano com base em Pequim, é de que Mo Yan representa uma via do meio. Não é um crítico feroz do regime comunista, mas não se furta a fazer comentários políticos em suas obras. Não deixa de manter boas relações dentro da esfera oficial, mas isso não impediu que alguns títulos seus fossem tirados de circulação, como foi o caso de Big Breasts and Wide Hips, de forte teor sexual. “É possível ficar no meio, se você for prático e fizer o jogo do governo, dizendo algumas coisas para agradá-lo, sem se submeter totalmente. Acho que é o caso de Mo Yan. Ele é um escritor que tem declarações políticas a fazer, mas não pega pesado a ponto de atrair para si a fúria oficial”, afirma Abrahamsen.

Confira abaixo a entrevista de Michel Hockx e Eric Abrahamsen.
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O inglês Michel Hockx

Na biografia disponibilizada no site do Prêmio Nobel, a Academia Sueca diz que o livro The Garlic Ballads (Tiantang Suantai Zhi Ge, 1988), de Mo Yan, e o satírico The Republic of Wine (Jiuguo, 1992) foram considerados “subversivos” por suas “críticas à sociedade chinesa contemporânea”. E, falando ao jornal The New York Times, o secretário permanente da academia, disse que Yan é “muito crítico em relação à história da China e ao país hoje”. Na sua opinião, o Nobel foi uma decisão política?
Michel Hockx: Não. Mo Yan é provavelmente o escritor chinês vivo mais traduzido em todo o mundo. O seu trabalho tem sido vertido para o inglês há quase duas décadas, e tem recebido muita atenção de críticos e especialistas desde os anos 1980. Autores que venceram o Nobel antes dele, como o japonês Kenzaburo Oe, vinham pedindo repetidamente que ele fosse agraciado com o prêmio. Ele é muito bem conceituado na literatura mundial.
Eric Abrahamsen: Eu realmente não tenho ideia do que a Academia Sueca pretendia, mas me parece impossível que a política não tenha sido levada em consideração.
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Para dissidentes como o artista plástico Ai Weiwei, as críticas feitas por Mo Yan não são suficientes. Weiwei disse que Yan foi uma má escolha da Academia Sueca. Mas ele também admitiu não ter lido seus livros. Na sua opinião, Weiwei está certo?
Michel Hockx: Ai Weiwei já se retratou pelo que disse. Seus comentários foram digiridos a Mo Yan como indivíduo, não contra o seu trabalho. Eu respeito a posição de Weiwei, mas não concordo com ela. Eu acho que um escritor deve ser julgado em primeiro lugar pelo seu trabalho e não por sua posição política.
Eric Abrahamsen: Eu costumo gostar do que Ai Weiwei diz e faz, mas neste caso acho que ele estava apenas tentando atrair atenção para si mesmo.
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Outro dissidente, o poeta Liao Yiwu, declarou que o problema de Mo Yan é “moral”. Que ele não deveria ser tão próximo do Partido Comunista. É possível, na China de hoje, estar numa espécie de via do meio? Ou é tudo preto no branco?
Michel Hockx: Nada mais é preto no branco na China. O mercado editorial chinês é tão comercial quanto o de países ocidentais e o governo em geral não interfere muito. Contudo, um pequeno número de intelectuais que tem por hábito se manifestar, como é o caso Liao Yiwu, sofre, e por isso a sua posição é compreensível e eu a respeito. Apesar disso, eu tenho de discordar da sugestão de Yiwu de que os escritores deveriam ser seres humanos moralmente superiores capazes de guiar as pessoas. Não é esse o modo como eu vejo a literatura, e eu não acho que seja assim que o Nobel a encare.
Eric Abrahamsen: É com certeza possível estar na via do meio, e creio que Mo Yan e Yan Lianke são exemplos de escritores que ocupam esse espaço. Existe de fato uma mentalidade segundo a qual tudo deve ser preto no branco. É assim que pensa gente como o poeta Liao Yiwu, para quem, se você faz concessões ao governo, seu trabalho não presta. Mas dá para ficar no meio, , se você for prático e fizer o jogo do governo, dizendo algumas coisas para agradá-lo, sem se submeter totalmente. Acho que é o caso de Mo Yan. Ele é um escritor que tem declarações políticas a fazer, mas não pega pesado a ponto de atrair para si a fúria oficial.
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O tradutor americano Eric Abrahamsen

Se Mo Yan é tão próximo do Partido Comunista, por que teve livros proibidos na China?
Michel Hockx: Ele não é “próximo” do Partido Comunista. Ele não se opõe ao sistema e ocasionalmente aparece em eventos oficiais em que a sua presença é requisitada, mas outros escritores chineses fazem a mesma coisa.
Eric Abrahamsen: É importante perceber que o governo chinês não é um monólito feito de uma única opinião. Você pode ter boas relações com uma parte do governo, enquanto ofende uma outra parte. Mais: você pode ser aceito pelo governo e ao mesmo tempo fazer coisas que ele não aprova – ele então poderá repreendê-lo, mas não fará nada pior. Acho que o romance Big Breasts and Wide Hips, de Mo Yan, foi banido mais por seu conteúdo sexual. Ele certamente toma cuidado, ao escrever, para que seus livros sejam bem aceitos.
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Mo Yan diz que critica a situação da China de modo sutil e que um escritor sempre encontra um modo de dizer o que deseja. Você concorda?
Michel Hockx: Sim. Eu não acho que Mo Yan tenha medo de falar de algo que o interesse. Mas ele não deseja ser um ativista político nem quer ser usado para propósitos políticos. Quando ele visitou Londres alguns meses atrás, ele fez uma leitura em uma universidade e disse que a sua primeira e principal preocupação é com a literatura. Ele comenta questões sociais e se interessa pelo que acontece na sociedade, mas intervém na realidade apenas como escritor, de modo literário, não político.
Eric Abrahamsen: Um escritor chinês pode encontrar um jeito de dizer o que quiser. Mas acho que a maioria não faz isso, tanto por autocensura quanto por falta de ambição.
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Mo Yan também diz que não deixa de correr riscos quando lança seus livros. É verdade?
Michel Hockx: Alguns de seus livros forçaram os limites do que era aceitável no passado, então houve de fato algum risco, mas eu diria que o risco foi maior para o seu editor, que teria prejuízos financeiros com o banimento de um determinado título. Vale dizer que escritores, de modo geral, não comentam questões políticas de forma direta. Eles preferem ser circunspectos e assim deixar brechas para múltiplas interpretações. Esse tipo de abordagem da política pela literatura é possível na China e pode ser vista em alguns dos romances de Mo Yan, como em Red Sorghum, o livro que virou filme: ali, os bravos heróis que combatem os invasores japoneses não são guerreiros comunistas, mas camponeses comuns.
Eric Abrahamsen: Não. O maior risco que ele corre é de ter um livro banido ou de perder espaço na esfera oficial. Não creio que conte como um perigo real.
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Em alguns livros, Yan ataca a Revolução Cultural e a Reforma Agrária da primeira metade do século XX. É permitido, na China, falar do passado, mas não do presente?
Michel Hockx: Virtualmente, você pode falar de tudo na China atual, do passado e do presente. Há apenas um pequeno número de tópicos sensíveis, que não chegam a ser completamente proibidos, mas têm uma abordagem oficial a ser seguida. São tópicos considerados cruciais para a legitimação do governo e para a integridade do Estado, sobre os quais nenhuma discussão é permitida. Por exemplo: você pode falar do que ocorreu em 1989 na Praça da Paz Celestial, mas não em termos de um massacre cruel, e sim como um evento caótico, que infelizmente teve de ser contido para garantir a prosperidade econômica e o crescimento do país. Da mesma forma, você pode escrever sobre temas delicados como o Tibet, desde que não defenda a independência do local – o mesmo vale para Taiwan. E você pode escrever sobre o Nobel da Paz Liu Xiaobo, mas não pode manifestar simpatia por ele.
Eric Abrahamsen: Sim, é normalmente mais fácil falar do passado. Há aspectos do passado que você ainda não pode abordar em seus textos – certas passagens da história do Partido Comunista, por exemplo, ou ocorrências negativos em determinadas campanhas políticas  –, mas de modo geral são poucos. Escrever sobre o presente é mais arriscado porque você pode ofender alguém que esteja vivo e no poder, e que terá meios de dificultar a sua vida.
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Como funciona hoje a censura na China?
Michel Hockx: Cabe às editoras verificar se os manuscritos que pretendem publicar obedecem às regras, embora não haja regras claramente definidas (como essa questão dos tópicos proibidos). Algumas casas editorais podem decidir correr riscos, lançando um livro que toque num tema delicado e que, se não for vetado, possa se tornar um sucesso comercial. O governo raramente intervém, exceto em casos em que uma determinada publicação penetra em território político sensível e recebe muita atenção da imprensa. Como não existem regras bem definidas, há muita negociação entre editores e censores e uma certa margem para se reivindicar liberdade. Na internet, essa margem é ainda maior, porque as regras são ainda mais relaxadas. Além disso, os escritores chineses são livres para lançar o que quiserem em Taiwan ou Hong Kong, sem risco de punição.
Eric Abrahamsen: A maior parte da censura acontece antes da publicação do livro. Primeiro, com os escritores, que evitam tocar em determinados assuntos, e depois com seus editores, que irão fazer mudanças e cortes no texto para reduzir os riscos políticos para eles próprios. Antes de ser lançado, um livro passa ainda por uma cuidadosa revisão. E, até aqui, ninguém do governo se envolveu no processo. Se um livro causa problema depois de publicado, os editores podem ser punidos e o escritor pode perder a carreira. Mas é difícil que isso aconteça, porque a autocensura de autores e editores evita maiores danos. É por isso que a censura é tão eficaz: ao manter escritores e editores nervosos, o governo não tem trabalho.
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Reportagem por Maria Carolina Maia
Fonte:  http://veja.abril.com.br/blog/meus-livros/19/10/2012

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