sábado, 27 de outubro de 2012

A feiúra é feia

Cecílio*
 
Apenas a arte consegue criar beleza na feiúra, mesmo sendo, ela, feia. Há um livro monumental, um outro, de Umberto Eco — História da Feiúra — diante do qual, vendo texto e ilustrações, o editor manifestou seu espanto: “Como é bela a feiúra!”. Artistas geniais conseguiram, através dos tempos, compor obras-primas diante do feio. A feiúra, porém — mesmo mascarada pela obra de arte — é feia.

Agora — que começou a baixar a poeira do “frisson” em relação à novela Avenida Brasil — ainda mais penso nisso. Assisti, por instância de familiares, apenas ao último capítulo do folhetim. Até então, não havia visto sequer uma cena de seus capítulos que foram apaixonando o público. No entanto, ouvia comentários, lia críticas, assistia a debates. Falava-se numa novela que retratava um novo Brasil, uma nova classe média, um novo povo, uma nova nação.
No entanto, os ecos do que eu lia e ouvia refletiam — a meu entender e pelo conteúdo dos comentários — como que uma apologia do e ao mau gosto. E foi a convicção que me ficou ao ver o último capítulo: a vulgaridade posta em destaque, a mediocridade como parâmetro, a desordem como referencial. E, ao fim, uma mensagem generosa de cordialidade e de compaixão.

Quanto aos méritos da novela, não os discuto. Folhetins são, também, obras de arte, medíocres ou respeitáveis, mas parte do universo artístico. Todavia, quando se tornam puro entretenimento — comandados pela audiência, que influi no rumo da história e no comportamento dos personagens — a arte é, também, prostituída pelo mercado. Mesmo assim, não discuto os méritos do autor e os de sua produção. Como entretenimento, alcançou o seu objetivo e mereceu os aplausos. Ir além disso, no entanto, é repetir o episódio do sapateiro que, vendo o quadro do pintor — a figura de um homem — lhe advertiu sobre erros nas sandálias. O pintor aceitou a advertência, corrigiu os traços, mas o sapateiro insistiu em opinar sobre outros detalhes. O artista lhe pediu: "Sapateiro, não vá além das sandálias”.

Penso enquadrar-se nessa perspectiva a tentativa de sociologizar a novela, tendo-a como retrato de um novo Brasil, de uma nova classe. Sapateiros não devem ir além dos sapatos. O Brasil seria pequeno demais, um país sem destino e sem futuro se corresponder ao retrato feito por Avenida Brasil. Ora, claro que há segmentos sociais semelhantes aos do folhetim, mas seria terrível se ele representasse a realidade brasileira. E mais terrível, ainda, se seguirmos essa outra esperteza do mercado em enfatizar que há uma nova classe média, apenas porque surgiram milhões de novos consumidores. Há diferença fundamental entre um cidadão verdadeiro e um consumidor de ocasião. Todo cidadão pode ser consumidor. Nem todo consumidor pode ser reconhecido como cidadão.

O velho Marx — que começa a renascer das cinzas, revisto até mesmo por economistas ditos liberais — sentenciou: “A cultura dominante é a cultura da classe dominante”. Ora, se a classe dominante brasileira for essa retratada na novela da Globo, em que País nos transformamos, que anseios de nação poderemos ter? A mediocridade — dizem os sábios da teologia — é um atentado ao espírito divino. Um País onde o mau gosto e a feiúra são incensados e apontados como referenciais não pode e nem deve orgulhar-se de si mesmo.

De equívocos em equívocos, estamos afundando-nos em um abismo cívico e moral. Até recentemente, culpavam-se as elites por todas as mazelas do País. Mas o problema está no inverso: o Brasil tem sofrido por falta de elites, pela ausência e silêncio dos melhores, pelo recolhimento deles. O feio surge quando o belo se apaga. E o ruim se impõe quando o bom se esconde.

Definir uma nação por classes sociais baseando-se apenas na capacidade de consumo delas é solapar valores e destruir princípios que formam a própria nacionalidade. O Brasil não é Avenida Brasil. Esta foi um simples folhetim inspirado em agrupamentos sociais romanceados e ambientados no Rio de Janeiro. Se for um retrato de um segmento da realidade carioca, que assim seja entendido. Mas que não o transformemos em retrato nacional. Pois, na verdade, a grande luta brasileira, hoje, é enfrentar exatamente a mediocridade, a vulgaridade, a feiúra moral.

A feiúra pode ser bela apenas como obra de arte. Pois, na sua essência, ela é feia. Não nos esqueçamos de que Humberto Eco — além de sua História da Feiúra — tem a sua História da Beleza. E é na exaltação do belo — desde os rabiscos do homem da caverna — que a humanidade se construiu.
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 * Colunista do Jornal Correio Popular.
Fonte: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2012/10/colunistas/cecilio/5824-a-feiura-e-feia.html

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