terça-feira, 21 de agosto de 2012

Um itinerário para Deus

o comentário de Simone Weil à oração do Pai-Nosso

 Simone Weil

Talvez, para introduzir o comentário que Simone Weil faz ao Pater e à possibilidade de o rezar, valha a pena reler um testemunho hodierno que tematiza precisamente o contrário, o interdito radical face à experiência orante. Recorro às páginas iniciais de um pequeno texto autobiográfico de Erri de Luca, intulado "Caroço de Azeitona". Diz o seu autor: «Como leitor assíduo das Sagradas Escrituras percorro o hebraico antigo das primeiras histórias, dos profetas, e dos salmos recolhidos no Antigo Testamento. Este uso quotidiano não fez de mim um crente. A experiência de ser um marginal provém, para mim, de dois obstáculos. O primeiro é a oração, este poder e possibilidade do crente se exprimir. Tratar a Deus por "Tu", com variações que vão da imprecação à súplica, arbítrio maravilhoso da criatura que regressa à origem e a interroga, chama, agita. Quem exclamou pela primeira vez a primeira oração não a pode ter inventado. Só pode ter reagido a um chamamento com uma resposta. [...] Não o sei fazer, não me sei dirigir a ele. [...] Falo de Deus na terceira pessoa, leio sobre ele, ouço falar dele e sinto outros viverem dele. [...] Com tudo isto permaneço alguém que fala de Deus na terceira pessoa. O meu pé tropeça todos os dias nesta pedra da oração, não a pode ultrapassar, porque a oração é o umbral. O outro obstáculo é o perdão. Não sei perdoar e não posso admitir ser perdoado. [...] Na minha vida existe o limite do imperdoável, do jamais reparável. Não posso admitir ser perdoado, não sei perdoar aquilo que cometi. Eis as minhas pedras de tropeço pelas quais permaneço fora da comunidade dos crentes».

A arte de desejar Deus
Na base da oração está o binómio familiaridade/distância aplicado à relação do homem com Deus. Há uma familiaridade que assinala a crença como convicção de que o destino humano não é indiferente a Deus. A experiência religiosa que, por exemplo, a Bíblia descreve assenta na epifania de Deus na história, manifestação complacente e comprometida com as vicissitudes da condição humana. Deus é o ouvido do homem, o seu refúgio, como o Salmo 18 (2-4.7) literalmente enuncia:
«Eu te amo, ó Senhor, minha força.
O Senhor é a minha rocha, fortaleza e proteção;
o meu Deus é o abrigo em que me refugio,
o meu escudo, o meu baluarte de defesa.
Invoquei o Senhor, que é digno de louvor,
e fui salvo
Na minha angústia invoquei o Senhor
e gritei pelo meu Deus.
Do seu santuário, Ele ouviu a minha voz;
o meu clamor chegou aos seus ouvidos».
O homem é capaz de desejar Deus, é capaz de Deus, porque Deus inclina-se benevolamente para ele. O impressionante conjunto de metáforas que o texto bíblico constrói é uma dicção plástica dessa confiança fundamental que permite que a oração seja um «face a face do homem e de Deus»: Deus é pai e mãe, pastor e rei soberano, Deus é forte como o turbilhão das águas ou misterioso como o sopro ligeiro da brisa, Deus habita o recôndito inacessível do templo ou vem abraçar-se a nós na fronteira noturna, como o soube o patriarca Jacob, numa luta que mais se parece a uma dança...
Mas a familiaridade não elide o sentimento da distância, porque Deus é infinitamente Outro. A oração é um sussurro, um segredo ciciado, uma sugestão da maior intimidade apenas análoga à arte do amor, como nos lembra precisamente no Cântico dos Cânticos («Arrasta-me atrás de ti. Corramos! Faça-me entrar o rei em seus aposentos», Ct 1,4). Mas também é uma exposição, um grito lançado à distância incalculável dos céus, como o testemunham Job ou o grande grito de Jesus na Cruz: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mt 27,46).

O que é o Pai-Nosso?

O Novo Testamento fornece duas versões da oração que Jesus ensina aos discípulos: a de Mateus (Mt 6,9-15) e a de Lucas (Lc 11,1-4). Entre elas há pequenas diferenças, nomeadamente quanto à extensão, pois Lucas é mais conciso. Olhemos para o texto, em tradução:
Pai nosso (Páter emôn), que estás no Céu,
seja santificado o teu nome,
venha o teu Reino;
faça-se a tua vontade,
como no Céu, assim na terra.
O nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos hoje;
perdoa as nossas dívidas (tá ofeilémata),
como nós perdoámos aos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação,
mas livra-nos do Mal. [versão de Mateus]
Pai (Páter),
seja santificado o teu nome;
venha o teu Reino;
o nosso pão transcendente (tón epiousión) dá-nos em cada dia;
perdoa os nossos pecados (tàs amartías),
pois também nós perdoamos
a cada um dos nossos devedores;
e não nos deixes cair em tentação. [versão de Lucas]
Tudo na oração do Pai-Nosso, quer quanto às circunstâncias da sua proferição, quer no que toca ao apuro retórico da composição, mostra que Jesus pretende aqui apresentar um modelo. Na tradição judaica onde ele historicamente se move, há correntes orantes diversas e um abundante reportório de fórmulas. Mas Jesus inova: não apenas explica como rezar, mas transmite um ensinamento seu acerca da oração, começando com um eloquente mandato: «rezai assim» (Mt 6,9). Constrói, deste modo nítido, um paradigma.
Ora, cartografando a prece de Jesus, percebemos que tudo se concentra em torno ao sintagma vocativo que abre a oração: «Pai Nosso» (versão de Mateus) ou «Pai» simplesmente (versão de Lucas). É verdade que são referidos depois o Nome, a Vontade e o Reino do Pai, mas é sempre em torno à descoberta do Pai que somos colocados. Mais do que rogar por esta ou por aquela necessidade ou interceder pela colmatação de qualquer carência o que se pede ao Pai é que seja pai. O destinatário da oração, Aquele a quem nos dirigimos, emerge como objeto da própria súplica.
Outro aspeto significativo é que se dispusermos retoricamente esta prece, se atendermos ao jogo do seu alinhamento frásico, detetamos o seguinte: a primeira palavra é "Pai" e a última é "Mal". O desenho retórico aparece por isso investido de valor semântico quando nos revela que o mal surge no extremo inverso ao pai, que o mal é o antipai. O risco do confronto com o mal é uma possibilidade verificável em todas as existências, mas a oração que Jesus transmite pede iluminação para não nos enganarmos no Pai, isto é, para sabermos escolhê-lo a cada momento e não as contrafações que tentam ocultar ou substituir a sua presença estruturante.
Uma oração que relata o drama da paternidade e da filiação coloca-se no âmago da identidade do próprio sujeito. Não é apenas um dispositivo verbal, mas uma expressão de si, uma coreografia relacional do íntimo, uma consciência do ser que se constrói. Oiçamos Emanuel Levinas: «O filho não é apenas a minha obra, como um poema ou um objeto. Também não é minha propriedade. Nem as categorias do poder, nem as do saber descrevem a minha relação com o filho. A fecundidade do eu não é nem causa, nem dominação. Não tenho o meu filho, sou o meu filho. A paternidade é uma relação com um estranho que, sendo embora outrem é eu; uma relação do eu com um si, que no entanto não é eu. [...] O filho não é eu; e no entanto, eu sou o meu filho».
E, no entanto, eu sou o meu Pai, diz-nos igualmente a principal das orações cristãs. Ela, de facto, não é um argumentário, mas a expressão de uma relação confiante. Essa é a originalidade de Jesus. O apelo direto ao Pai é invulgar na tradição judaica. E ele torna-se ainda mais significativo quando, na locução de uma prece tão sóbria como é o Pai-Nosso, Jesus escolhe voluntariamente reconduzir o coração orante à sua essência. Esta concentração, como escreve François Genuyt, culmina «numa demanda que não é apenas dirigida ao Pai, mas é demanda de Pai».

Uma página da autobiografia espiritual

A descoberta que Simone Weil faz do Pai-Nosso ocupa uma das páginas mais intensas da sua autobiografia espiritual. Tudo começa por um desejo, manifestado ao seu conselheiro espiritual, o Padre Perrin. Ao longo do ano de 1941, ela declara a necessidade de voltar a uma atividade dos verãos da sua adolescência: contactar diretamente com a terra, colaborando no trabalho de produção dos alimentos. Não é um projeto fácil de explicar este de se tornar uma rapariga do campo, quando os amigos mais próximos fazem coro para que ela se concentre nos seus domínios de saber: a filosofia, a poesia, a escrita e a palavra. Nesses meses ela multiplica-se em cartas e em razões, para justificar que a purificação do esforço agrícola lhe traz instantes de alegria profunda, uma seiva que ela não encontra em mais lado nenhum. É então por sugestão do Padre Perrin que ela contacta Gustave Thibon, que tanta importância viria a ter na difusão do pensamento da jovem filósofa. Thibon era, já naquela altura, um filósofo camponês que chegava às academias, mas a partir de um improvável baluarte: uma quinta agrícola em saint-Marcel-d'Ardèche. Simone aportará ali nos começos de agosto de 1941 onde passa dois meses. Há ainda um primeiro incidente a resolver: ela rejeita ficar na casa grande da quinta e vai residir num precário barracão solitário e sem grandes condições, deixando contrariados os seus anfitriões. Mas Gustave Thibon conta que num desses primeiros dias, quando não sabia bem o que pensar daquela rapariga, viu Simone, pendurada no tronco de uma árvore, a contemplar em silêncio o vale: «eu vi - há de testemunhar mais tarde - o seu olhar emergir pouco a pouco da visão; a intensidade e a pureza deste olhar eram tais que sentia que ela contemplava abismos interiores ao mesmo tempo que o esplêndido horizonte se abria a seus pés. A beleza da sua alma correspondia a terna majestade da paisagem». Foi o selar de uma grande amizade. Nessa estação Simone encontra-se com o Pai-Nosso, talvez por um inusitado caminho. Ela conta:
«O verão passado, estudando grego com T.... (Thibon), passei-lhe palavra a palavra o Pater em Grego. Tínhamo-nos prometido aprendê-lo de cor. Creio que ele não o fez. Eu tão pouco, até essa altura. Mas, algumas semanas mais tarde, folheando o Evangelho, disse-me a mim mesma que, uma vez que mo tinha prometido e que assim estava bem, devia fazê-lo. Fi-lo. A doçura infinita deste texto grego tomou-me então de tal forma que durante alguns dias não consegui impedir-me de o recitar continuamente. Uma semana depois, comecei a vindima. Recitava o Pater em grego todos os dias antes do trabalho, e repeti-o não poucas vezes na vinha. Desde então, impus-me como única prática recitá-lo uma vez, cada manhã, com uma atenção absoluta. Se durante a recitação a minha atenção se desvia ou deixa adormecer, mesmo que de modo infinitesimal, recomeço até que tenha obtido, por uma vez, uma atenção absolutamente pura. Acontece-me então, por vezes, recomeçar, uma vez mais, por puro prazer, mas só o faço se o desejo me instiga.
A virtude desta prática é extraordinária e surpreende-me toda e cada uma das vezes, porque apesar de a experimentar todos os dias, ela ultrapassa sempre, de cada vez, o que era a minha expectativa. Por vezes, logo as primeiras palavras arrancam o meu pensamento ao meu corpo e transportam-no a um lugar fora do espaço onde não há nem perspetiva nem ponto de vista. O espaço abre-se. A infinidade do espaço normal de perceção é substituída por uma infinidade elevada à segunda ou, por vezes, à terceira potência. Ao mesmo tempo, esta infinidade da infinidade preenche-se, de um extremo ao outro, de silêncio, um silêncio que não é uma ausência de som, que é objeto de uma sensação positiva, mais positiva que a de um som. Os ruídos, se os há, não me chegam senão depois de atravessarem este silêncio. Por vezes também, durante esta recitação ou noutros momentos, Cristo está presente em pessoa, mas a sua presença é infinitamente mais real, mais lancinante, mais clara e mais plena de amor do que a daquela primeira vez em que me tomou».

Para uma exegese da alma

O Comentário ao Pater tornou-se, por razões óbvias, um género muito frequentado pela tradição cristã, do oriente e do ocidente, da antiguidade patrística até aos autores modernos. M.-E. Boismard mostra bem como praticamente a propósito de cada palavra dessa oração saíram a terreiro importantes teólogos numa discussão que se prolongava desde as precisões filológicas aos vários e escondidos sentidos espirituais. O primeiro a redigir um comentário exaustivo foi Tertuliano, entre 198 e 200, numa obra intitulada "De Oratione", e destinada aos catecúmenos.
Há afinidades flagrantes entre o texto de Simone e o de Tertuliano. Afinidades no método de abordagem verso a verso; afinidades na forma condensada e lapidar; afinidades nisso que o dramaturgo contemporâneo Valère Novarina chama «la rude tendresse de Tertullien».
Para Simone o Pater «está para a oração como Cristo para a humanidade» e «é impossível pronunciá-la uma vez que seja e trazendo a cada palavra a plenitude da atenção sem que uma mudança talvez infinitesimal, mas real, se opere na alma». Este enunciado, que remata o seu exercício exegético, elucida bem o alcance da pesquisa que propõe. A Simone Weil interessa sondar a eficácia da palavra orante na alma, isto é, a sua aguda performatividade espiritual. Não lhe importa o comentário histórico crítico, mas a vertigem, o clarão, o fulgor que o verbo desperta. Nesse sentido, a sua pesquisa guarda ao mesmo tempo uma dimensão especular (na oração observamos a paisagem interior da alma) e uma abertura ao mistério, não apenas como pressuposto filosófico, mas como atualidade, como drama. Ela pode descrever com grande simplicidade a mecânica da própria oração, pois está consciente que a sua arquitetura continuará secreta e viva:
«Os seis pedidos correspondem-se dois a dois. O pão transcendente é a mesma coisa que o nome divino. É este que opera o contacto do homem com Deus. O reino de Deus é a mesma coisa que a sua proteção estendida sobre nós contra o mal; proteger é uma função própria do rei. O perdão das dívidas aos nossos devedores é a mesma coisa que a aceitação total da vontade de Deus. A diferença é que nos três primeiros pedidos a atenção se volta apenas para Deus. Nos três últimos, fazemos voltar a atenção sobre nós próprios a fim de nos obrigarmos a fazer desses pedidos um ato real e não imaginário. Na primeira metade da oração, começa-se pela aceitação. Depois, permite-se um desejo. Depois, corrige-se este voltando à aceitação. Na segunda metade, a ordem muda; acaba-se pela expressão do desejo. É que o desejo tornou-se negativo; ele exprime-se como um receio; por conseguinte, corresponde ao mais alto grau de humildade, o que convém para terminar»1
A prece tem uma natureza transitiva, faz-se, apaga-se, refaz-se. Cada termo, isoladamente tomado, é uma etapa provisória, sempre prometida a uma seguinte. Mas há um momento em que, mais do que as palavras, o que conta é o estar ali em relação. Recomenda o místico Eckhart, mestre amado de Simone Weil: «É preciso que haja tranquilidade e silêncio ali onde essa presença deve ser percebida. Não podemos chegar a ela de maneira melhor do que através da tranquilidade e do silêncio; ali a compreendemos de maneira correta: na ignorância! Quando não sabemos mais nada, ela deixa-se ver revela-se. [...] É partindo do conhecimento que devemos chegar ao não conhecimento! Pois essa é uma forma superior de conhecimento».

Capa 
Capa do livro que contém o texto

Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé.
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José Tolentino Mendonça (Teólogo. escritor. poeta).
In Simone Weil - Marginalidade e alternativa, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, ISBN 978-972-8531-85-0
20.05.11

Fonte:  http://www.snpcultura.org 21/08/2012

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