sábado, 25 de agosto de 2012

O agora segundo Zizek

RODRIGO OLIVEIRA FONSECA*

Autor esloveno aprofunda crítica da miséria contemporânea em “Vivendo no Fim dos Tempos”, recém-lançado em português pela Boitempo

Como escapar das terríveis mentiras que “espontaneamente” vivemos em nosso cotidiano? Se a maioria silenciosa de hoje não é estúpida, mas cínica e resignada, será possível superar a estranha lacuna entre o que ela pensa e o que ela faz? Seu lema poderia ser: “OK, sabemos que estamos no fim dos tempos, mas... vamos em frente!”. A crise ecológica, as consequências da revolução biogenética, os desequilíbrios do sistema e o crescimento explosivo das divisões e exclusões sociais, nada disso encontra a menor resposta no quadro atual dos poderes globais. E seguimos em frente.

São algumas das questões que o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek desenvolve em seu mais recente livro, Vivendo no Fim dos Tempos (Boitempo). Uma de suas maiores e mais notáveis proezas é nos oferecer uma escrita que instiga e convoca a pensar com Lacan, Hegel e Marx, sem que para isso tenha de se saber lacanês, ter intimidades com “o Espírito” em seu processo dialético ou ser membro do partido.

Ao contrário do que possa sugerir seu título, o livro não é atravessado por um tom apocalíptico, chega a mostrar otimismo, ao lado de um senso de responsabilidade política e desafio intelectual – característica de toda a obra do autor. Sem banalizar o desafio de superar o fim dos tempos, alerta para a necessidade de passarmos pelo ritual do luto, encarando os seus traumas e o seu vazio substancial como oportunidades que não devem ser perdidas. E cita Mao Tsé-Tung: há uma grande desordem sob o céu, a situação é excelente.

O grande mote e elemento estruturador de Vivendo no Fim dos Tempos são os cinco estágios característicos do luto no entendimento da psicóloga suíça Elisabeth Kübler-Ross: negação (“isto não pode estar acontecendo, não comigo”), raiva (“como isto foi acontecer?”), barganha (“deixe-me viver um pouco mais...”), depressão (“vou morrer, então por que me preocupar?”) e aceitação (“já que não posso lutar, é melhor me preparar”).

Esses estágios apareceriam em qualquer tipo de perda pessoal catastrófica, da perda de um emprego à de um ente querido, não necessariamente nessa ordem e sem que todos eles sejam sempre vividos. Para Zizek, estariam aí as cinco grandes posturas da atual cena (pós)política global, tomando a última, a da aceitação, como oportunidade ímpar de um recomeço.

O principal fator de negação do fim dos tempos seria o obscurecimento ideológico e o diversionismo produzido pelos liberais, como no superestimado debate francês acerca da proibição ou não do uso da burca, quando somente uma pequena minoria das mulheres islâmicas no país faz uso da vestimenta.

No discurso de aceitar as pessoas “como elas são” (egoístas e invejosas, como intimamente creem os liberais) e de conceber a si mesmo como promotor de uma “política do mal menor”, o que o liberalismo de fato promove é a indiferença pelo próximo e o silêncio quanto à necessidade de transformação das próprias coordenadas políticas. Arma-se uma infinita “luta contra a discriminação” que adia para todo o sempre o seu ponto final, o de uma sociedade livre de todos os preconceitos morais, ao mesmo tempo em que se projeta uma sociedade condenada a ver crimes e incorreções em tudo.

Temos assim a raiva fundamentalista, não como contraponto, mas como complemento gerado pelo “mundo livre e tolerante” com sua utopia liberal. Como escreve Zizek, “quando os Estados Unidos intervêm no Iraque para provocar uma democracia secular e o resultado é o fortalecimento dos fundamentalistas religiosos e um papel muito mais forte do Irã, isso não é um erro trágico de um agente honesto, mas um caso de um trapaceiro cínico que acaba preso no próprio jogo”.

As religiões podem desempenhar um papel importante na repolitização da política desde que se livrem dos fanatismos. Para Zizek, o apego do fanático à sua Causa não passaria de uma expressão desesperada de dúvida e incerteza, e, como bom hegeliano, ele entende que o sujeito verdadeiramente dedicado a uma causa regula sua fidelidade eterna por meio de questionamentos e traições incessantes.

Coerente com essa visão, o filósofo questiona o marxismo em pontos como a noção clássica de revolução proletária e a própria teoria da exploração diante da ascensão do trabalho intelectual – sendo oportuno notar seu silêncio quanto ao regime de mais-valia relativa, predominante nos países de capitalismo desenvolvido.

No rol de autores como o português João Bernardo, Slavoj Zizek resgata um “Marx não marxista”, sem “cortes epistemológicos”, mas com uma atenção crítica diante de fatores como a tendência tecnocrata (despolitizante) na visão do comunismo como sociedade em que o processo de produção é dominado pelo “intelecto geral”.

Quanto à psicanálise, o autor analisa novas formas de patologia subjetiva, o sujeito pós-traumático (incompreendido por Freud) que sobrevive à sua “morte” sem ser capaz de fantasiar e integrar o trauma. Numa época “desencantada” como a nossa, a violência extrema é vivida de modo muito mais direto, como intromissões sem sentido do real, o que Zizek entende no quadro de uma nova proletarização, inimaginável por Marx, pois de natureza “interior”, reveladora do aspecto mais puro da ideia de cogito cartesiano – seu grau zero, doloroso e perturbador.

Sendo o cogito cartesiano a superposição entre pensar e ser, um “proletariado libidinal” poderia representar a oportunidade de superação do cinismo a que nos referimos no início? Livre da substância dominante do medo, suspendendo a sua eficácia ideológica, teríamos assim um sujeito potencialmente capaz de apropriar-se das suas condições de vida.

Mas Zizek apela para que os meios usados para atingir fins sociais emancipadores exibam estes mesmos fins, manifestando-os, “do contrário corremos o risco de acabar na infame ‘dialética’ stalinista de violência e não violência em que o Estado ‘murcha’ fortalecendo-se (principalmente fortalecendo órgãos de controle e opressão)”.

Fazendo-nos atravessar toda a conjuntura mundial em análises que vão dos porões da Áustria à exploração do Congo, dos novos capitalistas “comunistas” aos antigos adversários de Confúcio na China, por caminhos que mais uma vez passam pelo cinema e pelas artes em geral, Slavoj Zizek se firma como intelectual engajado na busca dos sinais de um porvir que nos obriga a dar passos arriscados... para trás.
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 * Doutor em estudos da linguagem pela UFRGS e mestre em história social da cultura pela PUC-RJ
Fonte: ZH on line, 25/08/2012 
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