sexta-feira, 20 de julho de 2012

Por que você critica o “consumismo”?

Paulo Ghiraldelli Jr*
 

Está na moda a crítica ao “consumismo”. Mas, de onde vem essa crítica? Poderíamos investigar como ela se tornou tão popular a ponto de todos, em determinado momento, acharem que estão falando algo grandioso, “intelectual”, moralmente sadio ao dizerem com boquinha torta: “isso é consumismo”.
Tenho algumas pistas.
É claro que a pista mais fácil é vermos nossas raízes católicas. A Igreja sabia-se uma instituição feudal e, quando veio a sociedade de mercado, ela logo percebeu que viria também a “sociedade de massas” e a “sociedade de consumo”, e que nesse novo mundo todos se relacionariam com todos segundo regras dadas pelo mercado e pela política nele envolvida, não mais pelo fio religioso. O mundo de príncipes e servos, todos cristãos antes de serem qualquer coisa, e todos obedientes ao Papa, terminaria. Então, a Igreja foi condenando como pecado tudo que poderia ser visto como próprio desse novo mundo. Ela sabia que perderia a batalha, mas sempre esteve disposta a retardar o máximo a sua derrocada. Condenou a usura, o dinheiro se reproduzindo por ele mesmo, sem a mão divina como o que pode criar. Também condenou o consumo, a satisfação com bens materiais “efêmeros”, que desviaria a idéia de felicidade para outra coisa, o prazer, e não mais a contemplação do Bom, Belo e Verdadeiro que é Deus.
Uma das críticas ao “consumismo” e mesmo ao consumo vem dessa mentalidade. Mas é só? Não! Um dos inimigos da Igreja, o marxismo, também deu seu empurrão na mesma direção.
Marx considerou a sociedade de mercado como sendo ela própria geradora de ideologia, ou seja, falsa consciência. Como tal falsa consciência se manifesta? Ora, pela alienação: as pessoas que trabalham e produzem as coisas são alienadas dessas coisas e estas, então, não mais como produtos, mas como mercadorias, vão para o mercado e aparecem para as pessoas, seus antigos fabricadores, como aquilo que as comanda. Por que as coisas é que comandam? Porque se tornam elas próprias coisas desejáveis, necessárias ou não, e então aparecem como seres vivos diante do seu antigo produtor, agora alienado delas e com poder de compra limitado. Essas coisas, obtendo assim poder de comando, exigindo das pessoas que as levem para casa, ganham feição de sujeitos, de coisa viva, e as pessoas que as querem obedecer, ou seja, levá-las para casa, são então, nessa relação, transformadas em objetos, passam a ser a parte morta da relação. As coisas são fetichizadas e as pessoas são coisas, isto é, reificadas. Inverte-se a relação entre o homem e os objetos. Cria-se aí uma segunda alienação: a alienação da própria consciência, ou seja, a consciência dominada pela ideologia. A consciência humana, agora como falsa consciência, toma o mercado e as coisas nele não como o que realmente dá ordem para tudo, mas segundo a ilusão de que não são as coisas que dão ordens, mas que ainda é cada homem que vai comprá-la o seu senhor.
Aliás, é por causa disso que o liberalismo, que prega a idéia de indivíduo autônomo como um direito, é tomado por Marx como também ideologia. Pois na sociedade de mercado essa crença na autonomia individual humana não estaria ocorrendo.
O consumo aparece aí, então, como uma parte da ideologia: tomo-me autônomo e passo a exercer essa autonomia, falsamente, no lugar em que menos sou autônomo, o de consumidor. Reifico-me cada vezmais se deixo meu desejo, que não seria provocado por um desejo real, natural, mas forçado ideologicamente, a alimentar a segunda alienação. Fico iludido. Há momentos em que percebo isso, quando estou abarrotado de coisas em minha casa sem utilidade ou quebradas ou coisas que eu nem gosto, mas que me foram empurradas goela abaixo por eu ter vivido a situação invertida. Assim, o consumismo foi visto pelo marxismo como um coadjuvante do pecado maior do mercado, a produção desse tipo de ideologia.
Assim, padres e marxistas, pessoas “espiritualizadas” e “materialistas”, deram as mãos para alimentar a mentalidade que vê erro moral no consumo, quase sempre tomado como “consumismo”. Aliás, fala-se em “consumismo”, mas, para essas duas doutrinas, o consumo e consumismo pouco se diferenciam, uma vez que os dois surgem da mesma fonte para ambos: o mercado ou, como dizem “o capitalismo” – palavra que pronunciam como quem pronuncia o nome de Lúcifer.
Felizmente, há uma terceira pista para a crítica do consumismo. Digo felizmente porque dela podemos aprender algo interessante para nossas vidas. Não vejo qualquer graça nas anteriores. Elas me parecem um tanto que fantasiosas demais. Possuem dados reais, mas, no todo, não ajudam muito a vivermos melhor.  A terceira pista é a da crítica antes à “atitude do consumo” que ao consumo ou consumismo e está ligada ao nome de Hanna Arendt.
Começo com um exemplo. Li no Facebook, num post que tinha lá o rosto da Fernanda Montenegro, a frase “A beleza só importa nos primeiros quinze minutos, depois é necessário oferecer algo mais”. Embaixo da frase tinha lá umas garotas dizendo “aí Fernanda” aplaudindo e gritando. Talvez a mesmas que, não raro, aparecem também no Facebook se descabelando contra o tal “consumismo”. É exatamente isso que Arendt tomou como sendo a “mentalidade do consumo”: a perda da capacidade de poder apreciar e admirar, pois, logo depois (Fernando deu quinze minutos), é necessário outro entretenimento, pois o tédio voltou, uma vez que a própria beleza não é mais admirável. Perdi a educação dos olhos para contemplar a beleza, de vê-la sob diversos ângulos, de viajar mundos por ela aberto enquanto beleza, enquanto pura estética, que exigiria da minha capacidade saber valer o juízo do belo de Kant: apreender sem interesse. Ou dizendo de uma forma minha, própria: tomar o interessante pelo que ele é interessante e, no entanto, desinteressadamente. Quem perde essa capacidade ou quem nunca a adquiriu é chamado por Arendt de o filisteu.
O filisteu da cultura pode ser inculto e culto. Ambos só olham o que tem para eles alguma utilidade imediata. Consomem no sentido de devorar, de fazer acabar, de fazer desaparecer. E querem então passar para outro entretenimento, para outro consumo. O primeiro faz isso dentro de seus limites. O segundo faz isso até com a cultura sofisticada. Ele a entende, mas não consegue vivê-la e vivenciá-la, porque a toma como mera utilidade para sua ascensão social, para seu status, para o seu proveito que não é o proveito da admiração, mas exterior, o de poder se por socialmente distante do filisteu inculto e parecer ser aquele que realmente aprecia o que lhe é oferecido.
Fernanda Montenegro, ao menos no cartaz do Facebook, é a filistéia cultivada. Ela vê a beleza como o que só dura quinze minutos. Toda beleza. Depois, é preciso servir outro prato, algo novo. A indústria do entretenimento, ao pegar um livro e resumi-lo numa peça modernizadora do clássico, faz exatamente isso. Transforma o produto cuja beleza exigia disciplina e compreensão da objetividade da obra – suas razões de existir – por um novo produto que pode ser consumido em quinze minutos, porque depois a indústria já terá outro tipo de coisa a oferecer – ou deverá ter. Vivacidade será o próximo atrativo, talvez? Charme, talvez? Espírito? Sabe-se lá o que se pode oferecer depois! E será que essas coisas seriam perenes? Ledo engano pensar que seriam mais importantes ou mais duradouras dentro do clima de quem não conseguiu dar mais que quinze minutos para a beleza. Ou Fernanda perceberia que ao dar quinze minutos para a beleza ela talvez não consiga dar vinte minutos para outros “atrativos”?
A idéia básica de Fernanda (tenha ela percebido ou não) é de que a mulher deve ser um poço sem fundo de pequenos entretenimentos. Pois só a beleza não basta. Inverte-se a coisa: a beleza, que poderia ser apreciada uma vida, não pode ser apreciada. Gostar dela é vulgar. É preciso exigir da mulher mais e mais. Como quem exige uma sessão corrida de filmes na TV, sem muito se importar com o conteúdo. Eles precisam entreter e divertir. Esse é o “espírito da sociedade de massas” e da “sociedade de consumo” de Arendt. É nessa “atitude de consumo” que mora o problema e onde se baseia a melhor crítica do consumo ou consumismo. Penso que é por aí que Olgária Matos iria, ao falar contra a “sociedade de consumo”, ainda que, às vezes, ele case isso com as regras da sociedade de mercado.
Em todo caso, tenho minhas dúvidas que as pessoas que falam contra o consumismo tenham uma postura realmente crítica em relação a ele. Penso que falam por falar, e que as mentalidades acima descritas são confusas nas suas cabeças. Talvez se perguntarmos a cada uma delas por que criticam o tal “consumismo”, não tenham nada a dizer.
 --------------------------
* Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Acompanhe o filósofo agora também como cartunista,
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/07/19/por-que-voce-critica-o-consumismo/

Nenhum comentário:

Postar um comentário