quinta-feira, 19 de julho de 2012

'Minha profissão é escrever sem camisinha'

 
Para Lobo Antunes, 
que redige seus livros a caneta, 
criar na tela do computador é como
 fazer sexo com preservativo
Autor define a criação como momento 
de angústia e solidão; na infância, 
apaixonou-se pela obra de Lobato 
Folhas de papel A4 e caneta esferográfica. É o que basta para António Lobo Antunes escrever os seus livros. Avesso a celulares e cartões de crédito, ele não usa o computador para produzir.
"Gosto de desenhar as letras, de bordar. Ver vidro é como fazer amor com camisinha. Minha profissão é escrever sem camisinha", conta. "Nos dias bons a mão fica a fluir e escreve sozinha." Às vezes saem só cinco linhas em um dia.
Mas escrever, propriamente, não lhe dá prazer, revela ele. "Quando não escrevo me sinto culpado. A criação é um mistério. Há alturas de uma felicidade intensa, mas a maior parte do tempo é angústia. De tentar encontrar a palavra e a música e a cor. Talvez escrever seja a arte dos corantes."
E por que escreve dessa maneira, misturando poesia, prosa? "É a minha maneira. Nunca penso se é poesia ou prosa ou o que for. O importante é que sejam aquelas as palavras."
Seu mais recente livro, que será lançado neste ano em Portugal, chama-se "Não É Meia Noite Quem Quer". "É uma mulher falando o tempo todo. O livro não tinha título. Peguei um verso do [francês] René Char", explica.
Próximos livros? "Sei que precisava de mais 200 anos, mas não sei para escrever o quê. Cada livro é o primeiro. Porque a experiência é como os flutuadores dos hidroaviões. Não servem para nada quando você está no ar. E você está sempre muito sozinho quando está fazendo um livro", desabafa.
Nascido em plena ditadura de Salazar, foi lendo uma fábula de La Fontaine que Lobo Antunes aprendeu o que era democracia. "Tinha um verso em que um cão podia olhar para um bispo. E aqui os bispos é que podiam olhar para os cães."
LOBATO E MACHADO
Na biblioteca do pai se apaixonou por "Saci", de Monteiro Lobato. Lia José de Alencar, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia, Machado de Assis. Aos 7 anos viajou pela Europa.
"Fui acumulando experiências de toda a ordem desde muito cedo. Ficava tudo dentro de mim. Aos 3 anos tive uma tuberculose e fiquei deitado numa cama durante um ano. Era um menino horizontal no meio de gente vertical", lembra.
De estudar ele nunca gostou. "Estava sempre procurando tempo para escrever", recorda. Quis fazer letras, mas acabou cedendo à pressão do pai, que o queria seguindo a tradição da família na medicina.
E foi um choque. "Os primeiros tempos eram só cadáveres, cadáveres, cadáveres. Para mim a morte não existia. Era o filho mais velho dos filhos mais velhos. Quando nasci, minhas avós tinham 40 anos. Então os mortos eram senhores de bigode nos retratos", conta.
E essa experiência na medicina foi importante para os seus escritos? "Não. Se tivesse sido engenheiro ou outra coisa teria sido igual. Drummond era farmacêutico", responde. E ele, que estudou psiquiatria, como define esses doutores? "Os psiquiatras são loucos tristes", ataca.
Como médico, Lobo Antunes foi com as tropas portuguesas para Angola, que lutava pela independência.
"É horrível, porque ninguém ganha uma guerra; todos perdem. Foi um desafio a mim mesmo. Aprendi o valor da coragem", afirma.
Na mesma época, do outro lado da batalha, com o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), estava Pepetela, hoje escritor como Lobo Antunes. Ambos venceram o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa.
Beirando os 70 anos, como sente o envelhecer? A resposta é inusitada. "Cada pessoa tem a idade com que nasceu. Se nasceu com 20 anos, tem 20 anos; se nasceu com 80, tem 80." E com quantos anos Lobo Antunes nasceu? Ele escapa. "Essa é uma pergunta muito íntima."
Hoje, ele corre regularmente às margens do Tejo -"só o suficiente para ficar bonito".
Está curado do câncer? Sim. Depois de uma pausa, emenda: "Se é que alguém alguma vez fica curado seja do que for. Você se cura de um grande amor? Não sei."
(ELEONORA DE LUCENA)
SÔBOLOS RIOS QUE VÃO
AUTOR António Lobo Antunes
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 29,90 (192 págs.) 

 O escritor português António Lobo Antunes, que lança agora no Brasil o livro "Sôbolos Rios que Vão"
 O escritor português António Lobo Antunes, que lança agora no 
Brasil o livro "Sôbolos Rios que Vão"

O texto transborda lirismo e é um turbilhão de memórias entrelaçadas em vários tempos. No leito de um hospital, um homem com "cancro" lembra sua trajetória, projetando um transe.
Assim é "Sôbolos Rios que Vão", livro do premiado escritor português António Lobo Antunes, lançado agora no Brasil pela Alfaguara. O título vem de um verso de Luís de Camões (1524-1580).
Sôbolos é uma antiga contração de "sobre" com "o"; significa em cima. No poema e no livro o leitor navega pelas turbulências da vida.
Ligo para Lisboa e pergunto a Lobo Antunes se o livro é autobiográfico, já que ele também teve um câncer anos atrás e o narrador aparece como sendo "Antoninho".
"Não, mas tem tudo a ver com a minha experiência, porque nós só falamos de nós mesmos. A imaginação não é mais do que a forma como você arranja os materiais da memória. Não há imaginação. Há memória", pontifica.
E explica: "Foram os neurocientistas que descobriram isso. Se uma pessoa tem um acidente vascular cerebral e fica privada de memória, não consegue escrever. Fica sem imaginação".
Câncer, tuberculose, guerra -o escritor já viveu fortes experiências. Mas, para ele, "o que marca profundamente uma pessoa são coisas nas quais não reparamos quando vivemos; coisas pequeninas, um olhar ocasional na rua. O problema é transfigurar isso".
Lobo Antunes acha que o seu trabalho é como o das pessoas que vagam pelas ruas remexendo latas de lixo. Naquilo que os outros jogam fora é que ele diz buscar material para escrever.
E o que ele escreve? "Tenho dúvida se se pode chamar de romance o que escrevo. Não me interessa contar uma história. Não me interessam personagens. A única coisa que me interessa é tentar colocar a vida inteira dentro das capas de um livro."
Ele rejeita a crítica de que seus livros são difíceis. "O problema é que o leitor normalmente abre o livro com sua chave, feita das suas experiências. Um livro bom tem a chave dele. Então é preciso abrir o livro com a chave do livro, não com a sua."
Lobo Antunes conta que a primeira vez que leu Joseph Conrad (1857-1924) não percebeu nada. "O livro não é uma coisa que fala, é uma coisa que ouve. É a orelha que você encosta na terra para ouvir o mundo. Você tem que ficar doente do livro."
Para ele, "normalmente o livro começa a caminhar dentro de você quando a leitura acaba. Os livros bons são os que têm insônias. Você se levanta à noite para beber água e passa na biblioteca às escuras. Os livros estão a dormir. Mas 'Os Irmãos Karamázov' estão a olhar para você".


 Raio-X - António Lobo Antunes
VIDA
Nasce em Lisboa em 1942
PRINCIPAIS LIVROS
"Os Cus de Judas" (1979), "As Naus" (1988), "Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo" (2003)
PRÊMIO
Vence o Camões em 2007
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 Reportagem por ELEONORA DE LUCENA
Fonte: Folha on line, 19/07/2012
Imagem da Internet

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