sábado, 28 de julho de 2012

Um amigo patologista

 J.J. CAMARGO*
 
Fidel Camacho, o cirurgião torácico colombiano mais famoso do século XX – escalado para ser o presidente da sessão em que eu faria uma conferencia num Congresso na Cidade do México – entrou no salão à minha procura. Assim que nos encontramos e trocamos as primeiras palavras, ele confirmou uma história de dar inveja: tinha mesmo operado o câncer de pulmão do Gabriel Garcia Márquez, 12 anos antes. E se isso não bastasse, ainda tinha ficado amigo dele! Com esta introdução e uma paixão literária em comum, foi fácil perceber que ali estava um amigo em potencial.

Quando lhe contei que, apesar de menos conhecido, Ninguém Escreve ao Coronel era o meu livro preferido, ele ficou deliciado com a coincidência, e me contou que quando fizera esta mesma confidência ao mestre, ele rira dizendo: “Entonces, somos dos.”

Três anos depois, num congresso pan-americano em Cartagena de las Índias, Fidel me levou para jantar na casa de Gabriel Garcia Márquez. Fui apresentado como o brasileiro que diz que leu toda a sua obra e um “Además ahora somos trés”.

Dessa noite inesquecível, sempre vou recordar o brilho do olho do Gabo quando lhe disse que Úrsula Buendía, de Cem Anos de Solidão, era a minha personagem feminina preferida da literatura. Visivelmente emocionado ele me assegurou: “Sempre que um personagem é muito forte, ele é mais do que um personagem”, ficou a sensação de ele queria contar mais e não contou.

Na última vez que encontrei Fidel Camacho, ele estava contente com a formatura do filho médico e me contou que fora operado de um tumor de rim.

Passados dois anos, com uma tosse persistente, desceu ao subsolo da grande clínica em que trabalhava em Bogotá e fez uma tomografia que ele mesmo visualizou no computador, com incontáveis metástases pulmonares.

Voltou ao seu consultório e, durante quatro horas, atendeu nove pacientes. As evoluções nos prontuários foram muito extensas e minuciosas, encaminhamentos detalhados e recomendações com cara de despedida. Terminado o ambulatório, abriu a ampla janela do nono andar e saltou para a morte.

No receituário ele deixou o último recado: “Sou grato à vida porque sempre acertei nas minhas escolhas. Perdoem, mas prefiro morrer no comando”.

Quase compreendo seu desejo de morrer como um protagonista, mas perdi um amigo. Daqueles que marcam as nossas vidas, não pelo tempo de amizade, mas pela intensidade do convívio.
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* Médico.
Fonte: ZH on line, 28/07/2012

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