sexta-feira, 20 de julho de 2012

A morte perdoa os pecados?

Felipe Varne

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Obituários nos jornais tendem a engrandecer as figuras públicas se esquecendo - ou deliberadamente omitindo - passagens não tão glamorosas de sua trajetória


Uma piada contada em Proshai, Livushka, um dos melhores episódios da terceira temporada de Família Soprano, a consagrada série da HBO, fala sobre um funeral no qual um rabino, novo na cidade, deve exaltar as qualidades do falecido aos presentes na cerimônia. “Eu não o conheci. Vocês que o conheciam, digam algo sobre ele”, diz o rabino. Um minuto de silêncio se passa, seguido de outro, e mais outros, até que um dos presentes se manifesta: “Seu irmão era pior”.
É possível relembrar a trajetória de uma figura notória da sociedade deixando de lado porções nebulosas de seu passado? Será que após a morte, as virtudes de uma pessoa pública se tornam tão mais dignas de lembrança que seus momentos menos louváveis? Estamos transformando em regra o ditado atribuído a Quilon de Esparta: “Não fale mal dos mortos?”
A morte de Sua Eminência Reverendíssima, o Arcebispo-emérito da Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, foi marcada por obituários nas páginas dos jornais, e também aqui no Opinião e Notícia, que descreviam o cardeal como uma figura marcada pela defesa dos perseguidos políticos durante o período dos regimes militares na América do Sul. Não demorou muito, porém, para que nas mídias alternativas surgissem depoimentos contrariando a imagem de defensor da liberdade que os jornais deram ao falecido arcebispo.
O professor José Ribamar Bessa Freire, da UERJ e da UNIRIO, comparou os elogios post-mortem a Dom Eugênio Sales ao filme Uma Cidade sem Passado, de Michael Verhoeven, no qual uma estudante alemã, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing, considerada até então um exemplo da resistência antinazista, descobre – depois de um longo processo no qual as instituições locais lhe fecham as portas – que sua cidade sediara um campo de concentração, um fato que os moradores de Pfilzing trataram de varrer para debaixo do tapete após o fim da guerra. Em seu artigo, Freire afirma, sem titubear, que Dom Eugenio Sales era – com todo o respeito – “o cardeal da ditadura”. Já no Globo, o imortal da ABL Luiz Paulo Horta louvou a trajetória de Dom Eugenio que, por não bater de frente com o regime militar, como Helder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns, pode discretamente ajudar a abrigar refugiados chilenos, argentinos e uruguaios. Os números dos supostos ajudados pelo arcebispo do Rio variam entre 4 e 5 mil, de acordo com os relatos.
Não é o caso aqui de julgar se o arcebispo foi um colaborador do regime militar ou se na verdade foi um Oskar Schindler sul-americano, e sim de analisar o comportamento da grande imprensa, que parece ter ignorado o silêncio de Dom Eugênio Sales durante os anos de chumbo, e que o pintou como um progressista apesar de sua conhecida reputação de conservador – o arcebispo, juntamente com o cardeal Ratzinger, que posteriormente tornaria-se o papa Bento XVI, foi um feroz opositor da Teologia da Libertação, vista por uns como uma aproximação da Igreja com os pobres, e por outros como “marxismo cristianizado” – após a sua morte. Talvez falar mal dos mortos ainda seja um grande tabu. Talvez os pontos altos da vida do arcebispo, como a introdução da Campanha da Fraternidade, tenham sido muito mais importantes que sua omissão durante o regime militar, ainda que esse mesmo regime não tenha poupado nem mesmo alguns de seus colegas católicos. Mas para muitos, ficou a impressão de que a história estava sendo reescrita ou contada pela metade.
Um caso semelhante aconteceu no período de lançamento do documentário Ninguém Sabe o Duro Que Dei, que narra a ascensão e queda do cantor Wilson Simonal. A tentativa (na qual, novamente, o Opinião & Notícia está incluído) de apresentar Simonal como uma vítima de um boicote da mídia esquerdista, parecia se esquecer de que ele fora vítima de si mesmo. Informante do DOPS ou não, Simonal pagou o preço por alardear, ele mesmo, suas relações com o regime militar, e nenhum dos que o defendeu anos após a sua morte parecia muito disposto a fazê-lo quando ele estava vivo e esquecido, sendo destruído pelo alcoolismo e o ostracismo. Atitudes que confirmam a velha máxima de que, no Brasil, aquele que morre vira santo.
Ao contrário de Simonal, Dom Eugênio Sales teve suas façanhas louvadas ainda em vida, é verdade. Em 2000, o Jornal do Brasil publicou uma entrevista do arcebispo ao jornalista Fritz Utzeri, no qual Dom Eugênio falava da ajuda que  prestara aos perseguidos políticos (oito anos mais tarde as mesma informações foram publicadas pelo Globo, que deu a elas um tom de “revelação bombástica”). No entanto, nenhum dos muitos obituários que engrandecem a figura do arcebispo traz um só depoimento de algum desses milhares de refugiados abrigados pela sua arquidiocese. Já do outro lado, existem vários testemunhos que revelam uma outra faceta do cardeal, como o da jornalista Hildegard Angel, filha da estilista Zuzu Angel, que conta que sua mãe teria procurado Dom Eugênio, em busca de informações sobre seu filho Stuart, preso e assassinado pelos militares, mas que o arcebispo teria se recusado a vê-la. Há muitos outros depoimentos como esse, que mostram um Dom Eugênio Sales bastante diferente do arcebispo sacralizado nas páginas dos jornais, e estes vêm com nome e sobrenome dos envolvidos.
É certo que o que ficará para a posteridade são as grandes ações do arcebispo, como a criação dos sindicatos rurais no Rio Grande do Norte, e das pastorais da saúde, do trabalhador e do menor; assim como o grande legado de Simonal será o incrível suíngue de suas canções, e não os choques elétricos que seus amigos do DOPS aplicaram no contador Raphael Viviani. Mas isso não significa que seus erros tenham sido apagados da história, e que esta possa ser reescrita para amenizar fatos, ao contrário do que tentaram, anos atrás, fazer os homens do Vaticano ao propor a beatificação do papa Pio XII, que teria – secretamente – salvo a vida de milhares de judeus, mas que até 1942 evitou condenar publicamente o nazismo que vitimou tantos outros.
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Fonte:  http://opiniaoenoticia.com.br/brasil/a-morte-perdoa-os-pecados/20/07/2012
 

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