quinta-feira, 26 de julho de 2012

A arte de viver – você a conhece?

Paulo Ghiraldelli Jr.*

 

O filósofo italiano Giorgio Agamben escreve: “a arte de viver é (…) a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa”.[1] À primeira vista, trata-se de uma fórmula enigmática. Mas não é. Agamben explica que o conhecimento parece ter necessidade de um pressuposto, que é a existência de um campo no qual reina o que não é conhecido, um centro do qual emana a ignorância. Sem esse lugar da ignorância, como poderíamos falar de um espaço preenchido de conhecimento. O conhecimento então é conhecimento do conhecido e concomitantemente um saber do que se pode pressupor como existente, embora um campo cheio do que nada sabemos ou ainda não sabemos.
Ah! Mas como é difícil rapidamente deixar a harmonia de lado e acreditar que o campo do conhecimento, sozinho, é o que importa, e o que nos escapa é algo de menos valor. Podemos escapar disso e encontrar a harmonia entre ambos os campos, em favor da “arte de viver” de Agamben?
Na história da filosofia a relação entre Platão e Sócrates faz-me entender Agamben, mesmo que por uma via não indicada por ele.
Sócrates passou uma vida fazendo questões que não foram respondidas. As respostas, como não vinham, alimentavam o campo da ignorância. Ele perguntava, por exemplo, “o que é a coragem?”, e o que se pedia não vinha. Os interlocutores davam exemplos, relatando atos corajosos. Falam historicamente e não filosoficamente. A “natureza mesma da coragem”, pedida por Sócrates literalmente, definia um campo de ignorância. Poder-se-ia saber muitas coisas e ter como alguma coisa conhecida à medida que se soubesse o que era não saber alguma coisa, por exemplo, não saber o que é a coragem. Ora, talvez temeroso de ver seu mestre igualado aos sofistas pela consciência popular, em determinado momento Platão quis romper com esse limite de Sócrates. Em uma dada altura de seus escritos quis um Sócrates que dissesse que a coragem era a Coragem, a forma Coragem, o eidos existente em um campo que já não era o da ignorância, mas o campo em que a forma Coragem sempre compartilhou com as outras formas – matrizes epistemológicas e ontológicas  supra-sensíveis do existente no mundo sensível.
Platão quebrou com a harmonia necessária à “arte de viver”. Platão destituiu de seu status relativamente igualitário o campo do qual emanava a ignorância, transformando-o em um lugar de fonte do saber real, justamente o lugar em que, o que não se poderia ter mesmo era um tiquinho de produção de ignorância. A ignorância, então, ganhou o caráter de falta, carência, defeito ou mesmo produto do erro ou da ilusão – a opinião, então oposta ao conhecimento.
Enquanto Sócrates reinou em Atenas, o erro não era uma falta em si (ainda que o desconhecimento intelectual fosse responsável pela falta moral), mas a indicação de que de um lado havia o conhecimento e de outro um campo em relação aos quais vários emudeciam, o campo produtor da ignorância. A “arte do viver” era equilibrar-se entre saber e não saber. Sócrates não separava filosofia e vida, ou seja, ele inquiria todos procurando o saber que viria das respostas, isso era sua arte de viver e seu filosofar. Era o todo de sua vida. Sócrates nunca disse que só sabia que nada sabia. Ele disse que em relação às perguntas que fazia, ele não sabia a resposta. Mas sabia muito bem o que não sabia, então, sabia algo: sabia o tanto que era necessário para continuar a perguntar, a filosofar, a exercer a “arte do viver”. Ele tinha uma relação altamente inquietante entre saber e não-saber, mas jamais uma relação não harmoniosa.
Sócrates era pobre, feio e plebeu, no entanto, espalhava harmonia em sua “arte de viver”. Platão era rico, nobre e belo, mas, durante um tempo, não conseguiu viver harmoniosamente e, segundo o que se pode inferir de alguns historiadores helenistas e filósofos (de certo modo, a tese Vlastos-Davidson à frente), ao final da vida se arrependeu e tentou voltar a ser socrático.[2] Tentou voltar a acreditar que manter-se com o elenkhós, o método da refutação, e suportar as aporias, não era um negócio ruim, ao contrário, era bom à medida que era o possível dentro de uma razoável “arte de viver”. Arrisco dizer que Platão chegou a perceber que aí cabia uma harmonia que ele havia perdido ou havia desprezado. Ao fim e ao cabo, Platão teria, ao final da vida, abandonado o platonismo, se tomamos este como a confiança no Mundo da Formas como mecanismo para dar respostas às perguntas socráticas. Uma vez mais velho, ele teria, então, se voltado para a retomada de diálogos problematizadores e refutadores, até de si mesmo.
A “arte de viver”, no lema de Agamben, não é aceitar a ignorância. Longe dele a resignação do tipo “há ali um campo misterioso” e inexpugnável que deve ser idolatrado ou mistificado. A “arte de viver” não é isso, pois a harmonia de duas coisas não é simplesmente o aceitar de uma ou das duas. Harmonia é ter certo que dois campos podem se relacionar e devem se relacionar sem que um elimine o outro com bofetadas ou até mesmo com beijos sedutores ou o subsuma com discursos laudatórios. Sócrates não voltava para casa contente por não ter obtido respostas ao que perguntava, dizendo então que o campo da ignorância havia sido aceito. Ele voltava para casa contente, às vezes, quando via que ao não ter conseguido resposta, também não havia perdido as respostas que já possuía e nem se via impedido de colocar as mesmas perguntas, ou semelhantes, novamente.
Hannah Arendt nos lembra da necessidade que Sócrates sempre teve de concordar com aquele que vivia consigo, lá na sua casa. Este “aquele” nada seria senão alguém que nós, do nosso ponto de vista moderno, dizemos que seria ele próprio, Sócrates. O problema que Sócrates se punha era o da impossibilidade de viver com alguém, ele próprio, que não concordava com o que ele pensava e fazia. Manter-se assim, de modo possível e harmonioso no “dois em um”[3], era uma forma de harmonia e, de certo modo, de exercer uma boa “arte de viver”. O “dois em um” aparecia nos momentos em que o diálogo já não era com alguém exterior, mas aquilo que Platão chamava de uma “conversa silenciosa” interior à alma. Nesse sentido, Sócrates dizia mais ou menos assim: o que sei é, então, o que procuro refutar em mim para ver se sei mesmo e para me certificar que se sustenta como crença, ou se, diante de mecanismos de negação, vão me escapar. Essa é a regra da atividade do “dois em um”. Não posso falhar nisso, porque o que sei e acredito não pode ser desprezado como mera opinião, uma vez que moral é conhecimento. Quando não sei, erro, e erro moralmente; ora, como conviver com alguém, em nossa própria casa (nossa alma), que comete erros que não suportamos. Dormir sob o mesmo teto, por exemplo, com um assassino, não é algo bem incômodo?
Talvez essa atividade tão corriqueira que nos é exigida por estarmos vivos seja uma das mais difíceis: ter uma “arte de viver”. Como ter uma “arte de viver” e exercê-la se isso depende cotidianamente de mantermos os campos do saber e da ignorância sem que um colonize o outro? Fazer isso pressupõe não tomarmos o conhecimento como rei absoluto e absolutista e o não-conhecimento como pobre e pecador. O não saber não é plebeu, alguém pobre que, não raro, vai acabar fazendo alguma oposição ao rei ou à ordem (o que dá no mesmo) e, então, ser decapitado. O não saber não é pecador, alguém insensato que vai errar sabendo que assim o rei o punirá com a pena de morte e a própria sociedade salgará suas terras e amaldiçoará sua família até sei lá quantas gerações. Nada disso! O campo do não-saber pode muito bem ser apenas pressuposto para que o campo do saber seja o campo do saber. Uma educação baseada nesse tipo de ética ou de “arte do viver” pararia de fazer a apologia do acerto pelo acerto nas salas de aula, mas o tomaria, de modo melhor, como o que só tem sua existência pelo não-acerto, o erro, o desconhecimento, o que nos escapa.
Se a sala de aula quer ter alguma coisa a ver com a vida, no sentido da vida que quem a vive é quem precisa de uma “arte do viver”, ela tem de dar um estatuto ao não saber, ao que nos escapa, ao erro inclusive.

[1] Agamben, G. Nudez. Lisboa: Relógio d’Água, 2010.
[2] Ver Ghiraldelli Jr., P. A aventura da filosofia. Barueri-SP: Manole, 2011; e também Ghiraldelli Jr., P. Dossiê Platão. São Paulo: Universo dos Livros. 2010.
[3] Ver o capítulo sobre Sócrates em Arendt, H. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Agora também como cartunista no http://gametas.blogspot.com
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/07/25/a-arte-de-viver-voce-a-conhece/

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