sábado, 23 de junho de 2012

Pondé ideólogo, Pondé vítima

Paulo Ghiraldelli Jr.*

“Temos de descobrir qual a ideologia que está por trás”. Eis aí uma frase daquelas que antes confundem que ajudam. Não há nenhuma ideologia que possa estar “por trás” de alguma coisa. O que pode estar por trás são a doutrina e a filosofia. A ideologia é a doutrina transformada em quase propaganda ou então o que Engels chamou de “falsa consciência”, e é o vem na frente, não atrás.
Não gosto dessa metáfora de “frente e atrás”, mas se é o que se usa, então, que usemos corretamente. Quando trabalhamos com ideários, o que chega primeiro não é a doutrina e, muito menos a filosofia, e sim a ideologia. A ideologia é a doutrina sem seus resguardos filosóficos, porque estes são legitimadores da doutrina e, no entanto, mostra-a também com propostas hipotéticas e pressupostos pouco discutidos tanto quanto a doutrina eleita adversária. A filosofia nunca deixa de ser inteligente. Então, se é doutrina – um “o que fazer” – aparece calçada pela filosofia, mostra sua força exatamente na capacidade de não esconder sua suposta fraqueza. A filosofia é sempre ingênua: ela revela os pontos fracos da doutrina que sustenta quer queira quer não. A ideologia faz diferente. Ela não entende a fraqueza da legitimidade da doutrina, não pode entender, toma a doutrina dogmaticamente e, então, sai na frente dizendo ser não uma boa solução, mas a solução verdadeira. O ideólogo não é filósofo.
Um exemplo. Li o professor Pondé (1), da PUC-SP, em que ele diz que a democratização da cultura é sempre uma maneira de tornar os apetrechos culturais capazes de serem oferecidos a mais gente e assim fazê-los necessariamente passar por uma transformação que deve piorá-los. Isso é uma filosofia conservadora ou uma ideologia conservadora? Não é uma filosofia. É uma ideologia, e vem na frente. Vem como propaganda impactante. É uma ideologia porque se mostra dogmaticamente como verdade sem qualquer garantia, a não ser a duvidosa garantia de observações históricas adrede preparadas. Caso fosse verdade, então os livros em que Pondé escreve coisas desse tipo deveriam ser tomados como ruins, pois eles vendem bem e são feitos para isso, para a popularização extremada, não só pela linguagem utilizada, mas também porque há neles uma conversa muito ao gosto do senso comum conservador (contra o politicamente correto, contra direitos de minorias, contra o feminismo etc.). Ora, mas eu não diria que os livros do professor Pondé são um lixo porque são para a multidão. Eu diria apenas que não são do meu gosto porque são de um conservadorismo que já se fez presente entre minhas leituras no passado e já se fez presente no passado de outros bem mais antigos do que eu.
Agora, há filosofia nessa tese de Pondé, contra a democracia?
Bem, sabemos da existência da filosofia conservadora. Sabemos bem que ela está visível na história da filosofia, e a vemos correr séculos dizendo que tudo que é para “os muitos”, sejam eles quem for, será sempre algo banal. Essa filosofia é anterior mesmo à democracia. Ela, a filosofia conservadora, foi posta à prova – e ficou reprovada – quando houve a educação escolar básica popular, entre os séculos XIX e XX, e, então, muitos produtos culturais que pareciam só poderem ser bem apreciados pelos “poucos” foram excelentemente apreciados pelos “muitos”. Vários países da Europa seguiram o caminho americano e se espantaram em ver o resultado, ou seja, de que não necessariamente tudo que se amplia perde qualidade. Até então, as pessoas que advogavam a democracia e tinham apreço pela cultura achavam que uma sociedade democrática só podia ter bens culturais apreciáveis se a democracia fosse bem hierarquizada e, principalmente, fosse algo diminuto, mais ou menos como o modelo de Atenas. Ora, a filosofia sempre trouxe um germe de questionamento quanto a esse modelo, mesmo quando era adepto dele. Isso sempre foi visível em Platão.
A obra de Platão faz um elogio às elites, mostra sua raiva da democracia que assassinou Sócrates e, no entanto, não deixa de escrever a “Carta Sete”, onde mostra a dificuldades maiores que teve com as elites. Também não deixa de elogiar Sócrates, filósofo da rua e, de certo modo, da plebe, e não das elites. E mais: mostra o quanto Sócrates, apostando em Alcibíades, uma pessoa da alta elite, deu com os burros n’água. Assim, em Platão, não há um comprometimento cego com a não-democracia. Sua filosofia tem uma doutrina elitista e, ao mesmo tempo, mostra o quanto o elitismo pode ter pés de barro. Mas, quando o platonismo escapa das mãos de Platão e se transforma em uma doutrina isolada, ele realmente tem tudo para dar origem rápida a uma possível ideologia elitista, a de veneração do Rei-filósofo e coisas do gênero. E isso aconteceu nas melhores casas! Transformada em ideologia, e que passou a ir à frente, o platonismo assim feito conquistou os conservadores. Não à toa os conservadores foram responsáveis por uma historiografia que tentou aposentar Sócrates, tomando-o como um mero personagem de um Platão aprendiz, inicialmente, e depois como um personagem descartável de um Platão já platônico e conservador. Nunca admitiram o Platão com dúvida sobre o platonismo, o que é algo notável para os que efetivamente leram Platão.
Pondé apresenta, então, uma ideologia conservadora – algo que tem a ver com fantasmas platônicos transformados por séculos de medievalismo e por reacionários mais próximos de nós. Mas Pondé não apresenta filosofia. Caso apresentasse a filosofia que sustenta seu conservadorismo, ela mesma, a filosofia, daria uma série de dicas para ele desconfiar sobre se valeria a pena ele não ter dúvidas quanto ao modo como adota o seu conservadorismo. Mas se tem uma coisa que Pondé não sabe o que é, é a dúvida. Ele diz frases ideológicas conservadoras com a máxima convicção. Às vezes soa religioso na doutrina e, assim, mais ideológico ainda. Sua citação aqui e ali de alguns filósofos não é filosofia ou, digamos, não é suficientemente algo da filosofia de modo capaz a fazer aquilo que a filosofia faz até com os mais renitentes, a de jogá-los para a coceira cerebral, aquela vontade de dizer coisas como “acho que estou errado”. Ele está inebriado com a sua ideologia. Ela, vindo na frente, às vezes mostra que acabou antes ganhando ele próprio, destruindo sua capacidade crítica, deixando em plano até secundário os que deveriam ser atingidos pelos seus textos.
Ora, mas o que faz Pondé ser vítima de sua ideologia? Todos nós estamos à mercê dessa situação. Para cairmos nela, basta tomarmos o lugar que vivemos como sendo o mundo. Pondé toma a PUC como sendo o Planeta. Ele vê no marxista dogmático e na feminista chata não o marxista dogmático e a feminista chata, mas o homem do iluminismo ou do romantismo que tem pendores à esquerda e a mulher moderna sexy e com vocação intelectual. Ele faz de pequenas caricaturas de seu meio ambiente acadêmico os tipos que ele imagina quase universais. E se horroriza com eles – quem não se horrorizaria, já nos anos oitenta? Nisso, ele pensa estar fazendo filosofia, mas está apenas caindo de joelhos diante de sua ideologia. Esta, de tanto ir à frente, funciona como um ectoplasma que ao se lançar no espaço puxa-o pela boca, por um anzol espectral, e o expõe em livros em que ele se lamenta de não ter tido uma infância feliz e, ao mesmo tempo, esbraveja contra mulheres que são intelectuais, que tem tesão, mas que parece que ele não consegue ganhar.
De frase conservadora em frase conservadora, seus livros mais populares o jogam no arrastão de sua própria ideologia. Ao fim e ao cabo, ele começa a pedir desculpas ao leitor, a cada capítulo. Começa a ficar cismado que seu amargor, que seu pessimismo e o que ele chama de “trágico”, não esteja ao gosto de todos os conservadores que compraram seu livro. Cisma que exagerou na dose e, então, pensa que pode perder seus leitores. Nesse instante, em que poderia se enxergar como ideólogo, ainda não se vê, e faz o que o criminoso nazista Rudolf Höss fez em seu livro autobiográfico, escrito na prisão em que esperava a morte (The Commandant): declara-se como uma pessoa não má, como uma pessoa que, afinal, tem ainda uma ética. O livro de Pondé sobre a filosofia politicamente incorreta tem um tom patético quando ele começa, aqui e ali, a se desculpar com o leitor.
A ideologia faz exatamente esse serviço. A filosofia dá condições de autocrítica e, então, abre portas para a mudança, mas a ideologia não. Quando quem está nela é enredado por algum tipo de dúvida, ainda assim não muda, mas passa a se desculpar. Fica com medo de perder possíveis amigos que havia conseguido ganhar por ter formado um público. Tendo um público, passa a gostar das pessoas, a ter sua carência de escritor suprida e, então, age quase igual ao marxista e a feminista que ele denuncia como medíocres e “bregas” por quererem “um mundo melhor”. De lobo mau que se imaginava trágico vira uma vovozinha cambaleante que, ao final, parece que quase irá acender uma vela e iniciar uma oração pela própria alma.
A ideologia está na frente. Se há algo atrás, é o ideólogo – antes arrastado pela ideologia que como o seu produtor.
(1) Li dele dois livros de sucesso editorial: Contra um mundo melhor e Guia politicamente incorreto da filosofia, ambos da editora Leya.
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* Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/22/ponde-ideologo-ponde-vitima/

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