terça-feira, 26 de junho de 2012

Pondé, Adorno e Onfray: modelos (falhos?) de desgraça

Paulo Ghiraldelli Jr.*

 
Há um tom estranho no modo como Luís Felipe Pondé fala de sua infância. Ele diz em um livro seu que não há nada de bom nas suas recordações infantis. E isso não porque ele é desmemoriado. Ele insiste nisso: nada de bom. É verdade? Ninguém inteligente acredita nisso. Por uma razão simples: acreditar na sua afirmação nos levaria a ter de acreditar naquele que viesse a dizer que não se lembra de nenhum dia de sol na sua infância, mesmo vivendo sem restrições. É como aquele jornalista que vê no governo só coisa ruim, nenhum acerto, ou o inverso; aos poucos ninguém mais acredita nele porque sabemos que se há uma coisa impossível de fazer é acertar sempre e errar sempre. Tudo leva a crer que Pondé escreveu mais tentando construir um tipo, de modo que esse fulano criado por ele pudesse fazer frases que coubessem num livro que ele destina à estante de filosofia, e que seja provocativo. Talvez esse tipo seja algo como um Cioran tropical.
A saída dele é boa? Ora, para chocar mães culpadas (e como há isso!) e vender livro, foi uma ótima saída. Mas, para convencer quem pensa um pouco, não.
Quando queremos escrever algo chocante, por exemplo, uma vida de desgraças, o melhor que tem a fazer é contar uma boa história, real ou fictícia. O modelo hilariante foi dado por Voltaire, com o Cândido. Mas, é claro, quando se quer chocar com sangue e lágrimas, aí é preciso fazer diferente.
A desgraça completa não é um bom objeto da filosofia. A desgraça talvez, mas a total, jamais. Adorno aprendeu bem isso e descreveu a deterioração do mundo como uma desgraça que lhe atingia o peito. Mas ela não era total. Ele a fez por meio da destruição de uma utopia – a utopia do mundo liberal. Ele idealizou um passado liberal que jamais se concretizou e, então, reconstruiu a filosofia de Hegel não como formação do espírito, mas pseudo-formação do espírito. Assim, o pensamento dava com os burros n’agua mesmo antes de se realizar. A vida liberal pós-sociedade feudal é vista como dando origem à modernização liberal sem, no entanto, termos de considerar a vida liberal como algo historicamente existente. (1) Adorno misturou ficção, realidade e perspectiva filosófica para traçar esse quadro, brilhantemente exposto, principalmente em Mínima moralia, sem dúvida seu melhor livro.
Um filósofo jovem, cuja filosofia eu não acho interessante, ganhou minha atenção por um texto biográfico. Trata-se de Onfray. Ele conta como sua mãe era maluca e o modo como ela o abandonou em um colégio interno, criança ainda. Seu ódio pela mãe se mistura no seu ensaio com pitadas de pena e compreensão-incompreensão de sua doideira, e isso tudo como pano de fundo para os elementos factuais que contam como sofreu durante anos no internato de padres carrascos, seguidores de algo como “mente sadia em corpo sadio”. Onfray é tão convincente que, digo sem medo de errar, que ele faria melhor se só tivesse escrito sobre sua experiência de vida, sem tentar fazer dela a base de uma filosofia que fala do avesso dessa experiência. Sua filosofia é uma espécie de hedonismo popular que soa infantil, anacrônica, após as manifestações todas dos anos sessenta e do mundo regrado ao mesmo tempo pelos idílicos Bee Gees e pela droga já não mais como festa, e sim como morte, dos anos setenta.
Eis aí três exemplos da vida desgraçada: a do tipo criada por Pondé, a da perda inexorável da utopia criada por Adorno e, enfim, a da história de vida convincente, criada por Onfray. Para que servem?
Nos três casos, o objetivo é semelhante: que os ingênuos de plantão não leiam só Locke, mas também Hobbes. Que não leiam só Luis Fernando Veríssimo, mas também Nelson Rodrigues. Que não achem que o lixão da mãe Lucinda é o paraíso escolar que o Atheneu de Pompéia não foi.
Dos três, a tentativa de Pondé soa artificial. A de Adorno é “over” em filosofia. A de Onfray parece ser a melhor, ainda que ele próprio, nessa hora, não seja filósofo. A desgraça escapa pelos dedos dos filósofos. Ela ainda é objeto melhor dos cineastas, talvez dos romancistas.
Nota:
1. Sociólogos de formação estreita ensinaram educadores tolos a ler Adorno como quem estava falando de um tempo liberal existente, que desapareceu diante da “sociedade de massas”. Essa leitura é ruim. Benjamin deu a melhor dica para se ler Adorno e Horkheimer, ao falar de algo como “saudades de um tempo não vivido”. Para escapar da leitura ruim, veja: Ghiraldelli Jr. P. O que é a Dialética do Iluminismo. Barueri-SP: Manole, 2011.
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*Filósofo, escritor e professor da UFRRJ
Fonte:  http://ghiraldelli.pro.br/2012/06/25/

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