sexta-feira, 22 de junho de 2012

A imortalidade risível? (2)


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Homo Sentimentalis

Aqui Kundera indaga sobre o amor, distinguindo o amor-sentimento do amor-relação. A personagem Bettina é o paradigma de um amor autossuficiente, sem retribuição do outro, sem partilha: o amor é apenas uma ideia que se persegue e não a pessoa em si. O sentimento é apenas imitação que degenera em histeria sentimentalista? “Devemos definir o homo sentimentalis não como uma pessoa que experimenta sentimentos, mas como uma pessoa que os erigiu em valores. Porque “o sentimento, por definição, surge em nós sem disso nos apercebamos [...] A partir do momento em que queremos experimentá-lo, o sentimento já não é sentimento, mas a imitação de sentimento, sua exibição”. E como desvelar o amor que se esconde por detrás do sentimento? “Talvez seja necessário despojarmo-nos de muitas coisas e tornar a vestir as vestes da inocência para que o amor nos possa ser revelado" (António Alçada Batista, O riso de Deus).

O Acaso
O vazio da ocasionalidade das relações humanas é uma constante. As relações entre pessoas que nada têm em comum mas mesmo assim constroem uma falsa relação, em nome de uma ideia vaga de amor. A esperança de entrar no mundo próprio do outro desvanece-se quando se compreende que o ambiente onde cada uma das personagens se situa é totalmente oposto e inconciliável. “Nunca descobrimos como e em quê irritamos os outros, em que é que lhes somos simpáticos e em que lhes parecemos ridículos; a nossa própria imagem é para nós o maior dos mistérios”. Uma vida assim vivida não pode deixar de ser fruto do acaso porque é feita sempre a partir daquilo que o outro possa fazer. “Será pensável o amor sem uma perseguição angustiada da nossa própria imagem no pensamento da pessoa amada? Quando deixamos de nos preocupar com a maneira como o outro nos vê, deixamos de o amar”. Tema este recorrente na escrita de Kundera (Insustentável leveza do Ser).
É o desconhecido que marca as relações que se estabelecem entre os humanos e os acontecimentos que as envolvem. No tipo de relações em que predomina o domínio sobre o outro, o mundo, a vida, o ser vai perdendo o seu encanto. Despersonaliza-se. Deixa de haver razões para existir e o suicídio (exemplo de Laura) aparece como a solução mais plausível. É o desejo da imortalidade que transforma as pessoas em suicidas. A única solução é deixar-se embalar pelo acaso, pela quietude, pela passividade, pela eternidade do tempo. Uma vida assim vivida considera o outro como um estranho, sem hospitalidade, nem solidariedade. “O mundo perde a pouco e pouco a sua transparência, torna-se opaco, faz-se ininteligível, precipita-se no desconhecido, enquanto o homem traído pelo mundo se evade para o seu foro íntimo, a sua nos­talgia, os seus sonhos, a sua revolta e, atordoado pela voz dolorosa que sobe dentro dele, deixa de saber ouvir as vozes que de fora o inter­pelam”. Um progressivo autofechamento que conduz progressivamente à morte, ao caos interior e à destruição da vida presente e futura.
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O Mostrador e a Celebração
Nada é tão inútil como o desejo narcisista de esperar uma imortalidade vazia de sentido. Esta só se encontra na expressão máxima da Arte e do Belo. “A vocação da poesia não é deslumbrar-nos com uma ideia surpreendente, mas fazer com que um instante do ser se torne inesquecível e digno de uma insustentável nostalgia”. A frivolidade dos sentimentos, do amor, do não-gosto, do vazio relacional trazam consigo a dor, o caos e a indeferença perante o que é o verdadeiro amor. Kundera associa a este amor a importância do rosto do outro como algo que dá significado às relações.“Quando amamos alguém, amamos o seu rosto e tornamo-lo assim diferente dos outros”.
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O desejo de imortalidade, que de certo modo atinge a todos, só é percetível quando encaramos a morte como uma possibilidade bem real. “Até certo momento, a morte é uma coisa demasiado distante para nos ocuparmos dela. É não-vista, é não-visível. É a primeira fase da vida, a mais feliz”. Ao eternizar as nossas ações nesta vida, porque vivemos com medo desse futuro que não conhecemos, tornamo-nos seres superficiais e acabados. O desejo de imortalidade resulta do tédio e da motonia com que a vida é encarada. “Só temos uma vida! É preciso assumi-la! Apesar de tudo, devemos deixar qualquer coisa atrás de nós”. Ou como diz Bonhoeffer: “nós vivemos no penúltimo e acreditamos no último” (Cartas da prisão) ou ainda segundo a genialidade de Agostinho “o teu hoje é a eternidade” (Confissões XI). Quando sorrimos somos humanos e o humano é o que fica de nós como digno de ser testemunhado, agora e na posteridade!
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João Paulo Costa
Imagens: Auguste Rodin
© SNPC | 19.06.12
Fonte:  http://www.snpcultura.org/a_imortalidade_risivel_2.html

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