quarta-feira, 20 de junho de 2012

Etnocentrismo teológico

José Lisboa Moreira de Oliveira*
A Antropologia nos ajudou a desvendar os mistérios do etnocentrismo. Este consiste em considerar ou afirmar que existem culturas superiores às demais. O etnocentrismo normalmente se manifesta através de comportamentos agressivos e hostis recheados de discriminação, proselitismo, violência e agressividade verbal. É claro que não existem culturas superiores ou inferiores. Cada uma delas deve ser vista dentro daquilo que os antropólogos chamam de interioridade cultural. Por esse motivo jamais se pode afirmar que existem culturas selvagens, bárbaras ou atrasadas.
Toda atitude etnocêntrica precisa ser condenada e rejeitada porque fere o princípio da igual dignidade das pessoas e de todos os povos. A compreensão e a solidariedade são características dos seres humanos, mas nem sempre isso acontece de forma natural. Por essa razão as diferenças e diversidades costumam serem tomadas como pretexto para a geração de conflitos. Neste conflito o diferente é tratado como adversário, como bárbaro, como selvagem. Assim sendo, costuma-se aplicar ao diferente o que é proibido fazer com os que são do mesmo grupo cultural, desde o linchamento até a tortura, a morte, a escravização e o genocídio. Muitas vezes o etnocentrismo costuma ser disfarçado por atitudes que são até louvadas, como é o caso, por exemplo, do patriotismo.
O etnocentrismo é muito antigo e foi praticado no passado por gente famosa. O antropólogo Roque Laraia no seu livro sobre a cultura como conceito antropológico (Rio de Janeiro: Zahar) menciona vários exemplos. No mundo da Bíblia isso é bem evidente. O próprio povo de Israel, com sua pretensão de ser o único povo de Deus, praticou o etnocentrismo. Por isso os profetas tiveram que lembrar aos israelitas que todos os povos eram convidados para o banquete de Javé (Is 24,6-8). Esse tipo de etnocentrismo era tão forte que no início do cristianismo as lideranças oriundas do judaísmo queriam obrigar todos a se submeterem às tradições culturais hebraicas. Paulo e Barnabé tiveram que intervir para defender o direito dos pagãos de não serem importunados com costumes absurdos e alheios às suas culturas (At 15,1-29; Gl 2,1-14).
Durante o período da Renascença, lembram os antropólogos Laburthe e Warnier num livro sobre etnologia e antropologia (Petrópolis: Vozes), houve a discussão acerca dos habitantes da América. Queriam saber se eram homens ou animais, se possuíam alma e se eram descendentes do Adão bíblico. Durante o Iluminismo alguns filósofos afirmavam que os povos e culturas que não tinham alcançado um grau racional idêntico aos europeus eram bárbaros e selvagens. No século XIX e início do século XX chegou-se a criar o mito do "bom selvagem”. Exaltava-se a sua liberdade, a beleza do seu estado natural, para depois se afirmar a superioridade da civilização europeia.
Laraia afirma que o etnocentrismo é universal e seu ponto de referência não é a humanidade, mas o grupo. Normalmente acredita-se que o próprio grupo é o centro do mundo e a expressão única de civilização. Desta forma as pessoas de uma determinada cultura reagem com estranheza diante do diferente, que é visto neste caso como verdadeiro inimigo. Isso depois é usado como pretexto para a prática da intolerância, da discriminação e para justificar o uso da violência contra quem é diferente.
Em pleno século XXI o etnocentrismo não foi superado. Continua presente ainda hoje com toda a sua carga ideológica. Às vezes nos espantamos com o que sabemos do passado, mas, olhando nossas práticas atuais, vamos perceber com toda clareza uma carga enorme de etnocentrismo. Por isso, o trabalho de "descolonizar” certas práticas e opiniões ainda precisa continuar.
O etnocentrismo atingiu e ainda atinge a teologia católica. Mesmo em nossos dias existe na Igreja a prática de considerar a teologia europeia como a mais correta e a mais natural. Isto suscitou e ainda suscita enormes conflitos, uma vez que os etnocentristas eclesiásticos estão convencidos de que os teólogos de outros continentes são inferiores e, por isso, incapazes de refletir sobre os mistérios divinos. Por essa razão discriminam e fazem apreciações negativas acerca das pesquisas teológicas realizadas fora da Europa. Embora feita com métodos sérios e profundamente legítimos a teologia não europeia é olhada com desdém. Acredita-se que somente os métodos europeus são lógicos, racionais e corretos. Os demais são estúpidos e superficiais.
Era de se esperar que em pleno século XXI a hierarquia da Igreja incentivasse entre as diversas teologias aquilo que os antropólogos chamam de "solidariedade cultural”. O normal seria um diálogo mais respeitoso que pudesse resultar numa interação entre elas e até mesmo numa fusão da qual surgisse uma nova teologia para a Igreja, marcada pela contribuição das teologias não europeias. Teríamos assim um sincretismo teológico no qual a fusão de elementos teológicos daria vida a uma teologia cheia de vitalidade e dinamismo.
Porém, o que assistimos ainda hoje é a imposição em toda a Igreja de uma teologia eurocêntrica que despreza, inibe e até proíbe outras formas diferentes de se fazer teologia. Roma impõe seu estilo e obriga as demais Igrejas a abandonar suas tradições teológicas. Isso nem sempre é feito explicitamente, mas através de propaganda ideológica ou de pressões disfarçadas, levando os teólogos, mesmo que de forma inconsciente, a abandonar suas pesquisas. Isso mata a novidade do Espírito, detona o processo de inculturação da fé e obriga os teólogos a serem meros repetidores do Catecismo da Igreja. Tal processo induz as pessoas a considerarem a própria experiência de fé como algo inferior, forçando-as a assimilarem formas de viver o discipulado completamente estranhas à própria realidade. É o que normalmente fazem, por exemplo, os movimentos católicos, todos eurocêntricos ou filoeuropeus. Espalham uma espiritualidade desencarnada, com fortes nuances de alienação, bem distantes do dia a dia das pessoas.
Está, pois, na hora de se praticar no campo da teologia o relativismo cultural. Compreender cada teologia dentro do seu contexto e da sua realidade, segundo seus métodos e processos. Está na hora da hierarquia da Igreja não ver mais as teologias feitas fora da Europa como algo exótico, estranho e insignificante. O relativismo cultural aplicado à teologia permitiria a todos os teólogos, inclusive àqueles oficiais, chegarem para o debate teológico desprovidos de preconceitos e com mais possibilidades de realizar um trabalho científico sério. Num mundo dividido e desequilibrado isso resultaria em um grande benefício para a Igreja Católica, para as demais igrejas e religiões e para toda a humanidade.
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* Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília. Co-autor de Antropologia da Formação Inicial do Presbítero (2011) por Edições Loyola e Universidade em Pastoralidade (2011), Edições Loyola).
Fonte: Adital on line, 20/06/2012
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